“Dolores foi feita com uma sensibilidade poética”, afirma Bernard (Jeffrey Wright) em certo momento do sétimo episódio dessa nova temporada. Divertido notar a sutil semelhança que esta frase guarda com o como Westworld fora concebida: uma série com uma sensibilidade poética. Isto é, a forma de trazer assuntos tão presentes no gênero da ficção científica mais sofisticadamente. Sendo assim, fica óbvio entender a construção de um mundo que dialoga tanto com o western, representando a dissociação entre a evolução tecnológica e a simplicidade humana; afinal, em um futuro onde prédios parecem raciocinar sozinhos, quem iria optar pelo mundo do oeste? Aliás, os anfitriões do parque, que representam um dos marcos mais importantes da relação entre humanos e tecnologia, foram criados por um homem culto e ambicioso, atraído pela arte, que buscava em suas criaturas muito além da pura diversão perversa. Estes exemplos, entre outros, representam como Westworld tratou de sensibilizar sua abordagem à histórias que poderiam soar previsíveis e clichês.
Agora, o cenário que antes nos aproximava da humanidade, é substituído pelo ambiente pautado pela tecnologia. O mundo real parece menos real do que dentro do parque recreativo criado pela Delos; há um tom ameaçador nas arquiteturas rebuscadas e detalhadas dos prédios e monumentos, o elemento humano é pouco presente e quase desaparece nas cidades, a representação perfeita da ínfima relevância que o fator humano tem em um cenário controlado, onde o artificial e o real se confundem. Essa aproximação à estética cyberpunk cria um contraste interessante com o que vinha sendo o padrão de Westworld. Contudo, a luta de Dolores se mantém a mesma.
Dolores é a figura feminina mais bem trabalhada nas produções audiovisuais recentes. Embora a sua busca por emancipação esteja em um contexto amplo da consciência, e não puramente social, é notável ver como o protagonismo feminino da série cutuca assuntos atuais. Após anos tendo sido imposta a narrativas diversas, arquitetadas, tendo seu comportamento moldado e constantemente supervisionado, a sua vida no mundo real parece ser libertadora. Não há mais cordas e amarras, sua batalha será trilhada por si própria, e o objetivo de criar uma revolução sem precedentes é o grande foco da temporada. Enquanto nos habituamos com o novo cenário e alguns novos personagens, acompanhamos o desenrolar do plano de Dolores e entendemos gradualmente as intenções pouco óbvias da personagem. Esse mistério acerca da trama de Dolores nos deixa inquietos com uma indignação razoável: até onde valeria a luta pela nossa independência? Talvez a resposta seja cruel demais.
Além disso, o figurino de Dolores dá preferência a roupas mais escuras – distanciando-se do vestido azul predominante no parque -, refletindo o raciocínio da produção, que busca diminuir a aparência humana no cotidiano das cidades. Com o estilo pautado nas temáticas da história, o desenvolvimento da protagonista ganha volume e seriedade com a incrível atuação da Evan Rachel Wood, que já vinha de um trabalho fabuloso nas últimas temporadas, mantendo a expressividade dúbia que a carrega emocionalmente, e acompanhando o amadurecimento de suas convicções, estas, que colocam Caleb (Aaron Paul) na jogada.
Caleb é um ex-soldado do exército americano, onde sofreu perdas irreparáveis. Se o compararmos com qualquer outro arco de Westworld, é o personagem que mais se distancia dos eventos ocorridos no parque. Entretanto, é parecido com tantos outros do gênero, melancólico e isolado, além de guardar experiências traumáticas providas pela guerra civil que participara. Aaron Paul, prestigiado após Breaking Bad, mantém o nível – sempre alto – das performances do elenco, mesmo que a direção não consiga acompanhar as reviravoltas o envolvendo.
A participação de Caleb adiciona um contexto político e militar pouco aproveitado nas temporadas anteriores, e Serac (Vincent Cassel), assumindo o papel do “antagonista” (entre aspas, já que Westworld nunca propôs lados definidos, deixando o espectador julgar livremente as ações – discutíveis – de todos os envolvidos), amplia o tema para a influência do corporativismo na política mundial. Qualquer mundo cyberpunk tende a mostrar empresas privadas manipulando as políticas públicas em prol de seus próprios interesses e convicções. As redes de dados se tornaram arma fundamental para a prática do imperialismo das empresas, espalhando zonas de domínio com imposição de poder. E, se os dados providos pela Delos, ao estudar seus integrantes, tinham destinos pouco compreendidos por um momento, o que descobrimos sobre eles é completamente sórdido.
Serac também tem um panorama emocional profundo e bem detalhado. Apesar de apresentar certos clichês do “empresário malvado”, o seu passado meio obscuro e relatado em alguns flashbacks – e a possível guerra química ocorrida na França poderia ser explorada adiante -, ajudam a compreender as ações dele. Ademais, é responsável pela construção da inteligência artificial Rehoboam, capaz de, através de dados e estatísticas, projetar a narrativa de vida de qualquer ser humano. O que, certamente, impacta na liberdade individual do mundo (real?).
Mesmo com novos integrantes, Westworld tenta manter sua identidade com Maeve (Thandie Newton) e Bernard. Ambos ainda estão muito conectados com as vidas nos parques, e, de certo modo, precisam tomar atitude e escolher um lado na luta de Dolores. Infelizmente, Maeve é bem subaproveitada, enquanto fora um dos pilares da segunda temporada, aqui é só uma ninja que pouco compreende o porquê de estar lutando. Bernard idem, já que se transporta de locais com uma facilidade absurda e pouco agrega narrativamente. Contudo, nem todos os personagens já conhecidos pelo público são subaproveitados. Charlotte Hale, interpretada por Tessa Thompson, revela a dificuldade de conciliar seu comportamento ao estilo de vida da contraparte humana. As consequências severas dos atos de Hale irão refletir nos próximos anos.
William, interpretado magistralmente por Ed Harris, é o melhor personagem, com o melhor arco, da terceira temporada. Depois de passar duas temporadas tentando compreender a rebuscada história arquitetada pelo Dr. Ford (Anthony Hopkins) e Arnold, o Homem de Preto precisa entender a si próprio, combatendo seus demônios internos – entende-se como suas versões antigas. William nunca se encontrou na realidade, entendendo que o parque era o que mais o aproximava da vida, ao mesmo tempo que almejava a destruição dos anfitriões e o fim do labirinto de Arnold. Como um pequeno anfitrião, reprodução de um Dr. Ford criança, profetizou, o jogo encontraria William, que assume o papel do Homem de Branco, aquele que salvará o mundo da ameaça artificial.
A transformação do Homem de Preto e as reviravoltas de Caleb, contudo, são um pouco prejudicadas pelos mesmos responsáveis por deixar tantos personagens subaproveitados: diretores e roteiristas. O primeiro parágrafo fala, justamente, sobre a sutileza poética de Dolores e de Westworld, e o que vemos nesse terceiro ano é o desgaste dos responsáveis criativos. Em busca pela maior linearidade da história – requisitada por muitos, após episódios que abordavam linhas temporais diversas e que, em certo momento, se entrelaçavam – o roteiro força momentos que aparentam ter revelações bombásticas, ou sínteses dignas de um Pulitzer, mas que, na verdade, apresentam frases clichês e excessivamente expositivas. Enquanto, na direção, vemos uma narrativa apressada e deslocada – a pós-crédito é exemplo disso -, não conseguindo imprimir ritmo e tom harmônicos, atrapalhando a coesão e certas construções de personagens.
Nessa terceira temporada, o que vemos é a busca pela linearidade afetando a estética narrativa, trunfo de Westworld. Embora ainda mantenha ótimos personagens, tramas emocionalmente eficientes e um futuro promissor, há um notável desgaste na criatividade e na sensibilidade. Buscar novamente a essência de uma história que discute humanidade e consciência através da ficção, da perversão, da política e da arte, deve ser o objetivo principal dos criadores. Esse resgate trata de reconhecer a importância dos temas levantados por Westworld, comprovada na imagem sutil da abertura: uma mão artificial tocando um piano, até deixá-lo tocando sozinho. Existe maior representação de livre arbítrio do que essa?