Após um espaço de quase cinco anos a contar do lançamento da primeira parte no Brasil, a Veneta traz o segundo e derradeiro tomo da saga contada pelo veterano quadrinista Milo Manara a respeito de seu compatriota Michelangelo Merisi de Caravaggio, pintor renascentista cuja obra garantiu sua imortalidade em museus e igrejas desde o século XVI. Neste segundo volume, Caravaggio se empenha em suas pinturas em busca de seu perdão espiritual. Em maioria focadas em temas religiosos, essas podem ser um deleite para os que apreciam, mas dificilmente entregam o calvário de seu autor para concluí-las.
Para surpresa de quem já teve contato com a bibliografia de Manara, aqui sua mais famosa característica quase não é vista. O autor é conhecido por transformar inclusive seus roteiros adaptados em contos eróticos (Gulliveriana) e pornográficos (A Metamorfose de Lucius), mas aqui sua marca está em segundo ou terceiro plano, sendo apenas a nudez presente e ainda assim de forma pontual. O foco está na mente perturbada de Michelangelo Merisi de Caravaggio e seu comportamento explosivo que lhe devolve como frutos mais e mais problemas em sua vida.
Inclusive este foco maior no âmbito psicólogo e menor no físico pode ser considerado raro quando trata-se de uma obra “solo” de Manara. Em sua extensa carreira, suas obras onde a mente dos personagens é melhor explorada quase sempre acontece quando outro artista faz o roteiro e ele cuida apenas da arte. Quando trabalha sozinho, o quadrinista já várias vezes caiu em sua própria armadilha de valorizar somente o prazer e fetiche do erotismo, resultando em roteiro de histórias medianas e até fracas como em Clic, Kama Sutra e Encontro Fatal, este último talvez seu trabalho mais chocante. Em Verão Índio, El Gaúcho, Viagem a Tulum e Borgia temos uma faceta totalmente diferente, mas muito por estas terem roteiros assinados por Hugo Pratt, Federico Fellini e Alejandro Jodorowski. Em Caravaggio, Manara consegue um êxito no roteiro que poucas vezes conseguiu sozinho, a vasta bibliografia sobre o pintor rebelde descrita ao fim da publicação claramente ajudou nesta construção.
Em um estilo de traço usado desde Borgia, sua série anterior, temos uma progressão na arte de Manara que pouco se vê ou até se espera de alguém já nesta fase de sua carreira. Note-se que, quando a publicação de Borgia teve início, posteriormente resultando em quatro partes, Manara já era um sexagenário e por uma expectativa um tanto pejorativa que naturalmente que o ser humano faz, espera-se que o desempenho de uma pessoa em diversas áreas, inclusive na ilustração, esteja em uma descendente com o avanço da idade.
Não é o caso aqui. Seu traço só evoluiu desde então e em Caravaggio visualmente podemos contemplar o, por enquanto, auge de sua carreira nesse aspecto, pois mesmo após uma breve observação nas páginas pode fazer pensar que este possa ser a conquista do topo de sua escalada como artista, não se pode duvidar que o autor ainda possa extrair mais de si mesmo. Aqui suas cores são densas e vivas, ganhando maior profundidade e expressão, assim como Caravaggio fazia em suas telas. Como o período histórico deste título é o mesmo de Borgia, é possível ver referências em comum nos dois trabalhos, como se Caravaggio fosse uma sequência de Borgia dentro de um “Manaraverso”.
Neste período, o interessante é ver como a transição da Idade Média para a Idade Moderna não é muito diferente do que se vê hoje no alto patamar da sociedade. A hipocrisia sempre esteve presente com líderes religiosos que sequer cumprem os Dez Mandamentos Bíblicos, que recriminam manteúdas e meretrizes mas de certa forma as aceitam como modelos para obras de arte com cenário angelical. Caravaggio está oscilando neste limiar, e isso é o que mais o perturba.
Chega a dar angústia acompanhar o sofrimento do pintor em seus últimos anos de vida. Seu talento na pintura era diretamente proporcional ao de conseguir desafetos, por isso viveu como nômade entre várias cidades-Estado da hoje República Italiana, necessariamente fugindo de seus problemas e não teve seu trabalho reconhecido em vida como pensou que deveria, deteriorando cada vez mais sua condição mental.
Caravaggio – O Perdão é o quarto título de Manara publicado pela Veneta. Da extensa obra do autor, uma grande parte já foi publicada no Brasil, algumas inclusive em mais de uma edição e/ou editora. Porém, justamente outra história sua que tem o meio artístico como tema principal teve apenas uma tímida publicação por aqui e parece ter caído no esquecimento. Trata-se de Rever as Estrelas, uma narrativa da série Giuseppe Bergman que foi publicada no Brasil somente uma vez na revista Heavy Metal nº22 em 1998. Nesta obra, Bergmann segue os passos de uma mulher obcecada por quadros retratados em um livro. Não satisfeita, esta recria a cada momento poses e cenários das vênus presentes em cada uma delas. Assim como todo o material da saga de Giuseppe Bergman, esta história merece ser republicada em uma nova edição por aqui.
A obra de Caravaggio ganhou toda posteridade da História humana. Inclusive no Brasil seus quadros foram tema de uma disputada exposição no Museu de Arte de São Paulo em 2012 alavancando para o recorde de 556 mil o número de visitantes do museu naquele ano, marca só superada em 2019 com mais de 729 mil. Os números mostram que, mesmo que não precisasse pedir, Caravaggio já foi perdoado há muito tempo. Manara “apenas” fez sua parte para ajudar nesse propósito.
Caravaggio – O Perdão
Milo Manara (roteiro e arte)
Michele Vartuli (tradução)
Lilian Mistunaga (letras)
Andréa Bruno (revisão)
64 páginas
31 x 24 cm
R$94,90
Capa Dura
Veneta
Data de publicação: 03/2020