Stanley Kubrick tinha certas obsessões em sua curta, porém excepcional, filmografia. Em sua primeira empreitada no mundo cinematográfico, abordou questões envolvendo a militarização no filme Medo e Desejo (1953). Após alguns anos, fez um drama se utilizando da temática de guerra, Glória Feita de Sangue, em 1957. Pouco menos de dez anos depois, em 1964, Kubrick se dispôs a discutir e colocar o seu ponto de vista sobre a moralidade das potências bélicas acerca do conflito por zonas de influência ao redor do mundo, na sátira Dr. Fantástico.
Mesmo depois de três filmes abordando assuntos semelhantes, o diretor lançou mais duas obras que iriam retratar as suas antigas obsessões: Barry Lyndon, de 1975, e, se consagrando como o seu último filme de guerra, Nascido para Matar, uma carta de ódio aos responsáveis pela Guerra do Vietnã – o momento que intensificou a frágil relação entre Estados Unidos e União Soviética durante a conhecida Guerra Fria. Impondo um ritmo particular e construindo uma atmosfera ameaçadora, Kubrick entrega sua visão sobre ocorrido de maneira ácida, crítica e extremamente dolorosa.
A sequência inicial sugere o tom irônico e crítico que irá permear a obra; alguns planos focados nos personagens tendo seus cabelos raspados, concretizando a entrada no ambiente militar, enquanto, ao fundo, ouve-se Hello Vietnam (Johnny Wright), criando o contraste entre o tom sereno da música e a expressividade vazia dos atores. Logo depois, há uma das sequências mais memoráveis da história, onde o Sargento Hartman se encontra pela primeira vez com o pelotão. Tratando a cena a partir de um senso técnico apurado, Kubrick entende como aproveitar ao máximo o monólogo apavorante de Ronald Lee Ermey (repare os planos sequência que acompanham o ritmo do Sargento e o ambiente (as janelas e o verde claro), que refletem a frieza do momento), intérprete de Hartman e que foi Sargento na vida real, durante sua passagem no Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Por essa experiência, ficou fácil transmitir em suas falas e gestos toda a rigidez necessária, onde ações agressivas, psicologicamente e fisicamente falando, apelidos maldosos, e pressões constantes são elementos totalmente normalizados.
O pelotão é constituído por Leonard Lawrence, apelidado de Pyle, interpretado por Vincent D’Onofrio – que marcaria a carreira com este filme -, por J. T. Davis (Matthew Modine), o Joker e pelo Cowboy, de Arliss Howard; além de outros que servem como elenco de apoio. Pyle é o soldado que demonstra dificuldades mentais e físicas na conclusão de tarefas do treinamento. As dificuldades passadas por ele são exaltadas pelo comprometimento absurdo de D’Onofrio ao papel, ficando entre os melhores personagens da filmografia de Kubrick. A falta de determinação e os obstáculos vividos pelo soldado transformam o treinamento militar em um espetáculo conduzido por Hartman, ao passo em que ele constantemente zomba e abusa psicologicamente de Pyle. Contudo, os que acabam sofrendo as consequências pelos atos falhos de Pyle são os integrantes do próprio grupo.
Dessa maneira, Kubrick trata de observar a academia militar para a Guerra do Vietnã por uma perspectiva altamente combativa, ridicularizando – de maneira sutil – o preparo para o Vietnã. Contudo, não é porque o assunto é tratado com certa ironia, que o diretor esquece de discuti-lo com seriedade. O que vemos, primeiramente, como uma simples – se podemos chamá-la assim – pressão e rigidez militar, se transforma em uma conclusão verdadeiramente diabólica. A trama parece que se estenderá do começo ao fim do filme, porém, termina em apenas 45 minutos, na mais pura e brilhante “linguagem kubrickiana”. Quando Alfred Hitchcock fez Psicose (1960), e gravou a famosa cena da banheira – violentíssima para a época -, ele queria incutir uma certa angústia aos espectadores, que se sentiriam durante o resto do filme ameaçados com a promessa de uma cena ainda mais assustadora, mas que nunca iria se cumprir. O que Kubrick faz é justamente isso, criando uma sequência angustiante, e que fica conosco até os últimos minutos, embora nunca mencionada posteriormente.
Linguagem kubrickiana, isto é, a linguagem rebuscada e perceptível com certa regularidade nos filmes de Kubrick. Porém, após os primeiros quarenta e cinco minutos, Nascido para Matar vira um filme de guerra extremamente competente, mas não tão único como outras obras que só Kubrick faria, já que encontramos similaridades em relação a outros do gênero. O ambiente do campo da marinha dá lugar ao campo de guerra que se tornou o Vietnã, e Joker reaparece como jornalista militar. Embora não tenha detalhes minuciosos, há diversos toques provenientes da genialidade do diretor. Enquanto a tropa, constituída por Joker e Cowboy, integram missões potencialmente fatais, ocorre uma cobertura jornalística auxiliada por câmeras e microfones, na qual a metalinguagem trata de exemplificar como a guerra também era vista através da teatralidade propagandística. Onde os relatos dos soldados fizessem alusão a estrutura de um reality show.
Outra ferramenta para criticar o genocídio que a Guerra do Vietnã se tornou é o uso das personagens femininas. A primeira mulher que realmente tem certa importância narrativa é uma vietnamita que está sendo prostituída por vietnamitas locais em troca de armas e dinheiro. Contudo, o que se vê é o embate constrangedor entre soldados – às vezes até pelo tamanho do órgão – para ver quem seria o primeiro a ter chance com a moça, fundamentando a imbecilidade e a selvageria que o exército americano carregava. No terço final do filme, há a morte de uma jovem vietnamita que marca todos os soldados profundamente, e que Kubrick se utiliza dos mesmo planos inicias – da raspagem do cabelo – para julgar os responsáveis por aquele ato violento. De certa forma, Kubrick tenta iluminar a consciência dos protagonistas com um “tapa na cara” moral, esvaziando o imaginário perverso da guerra, e entregando a dura e crua realidade.
Podemos pensar em Pyle, nas vietnamitas, ou até no Sargento Hartman, e todos terão o mesmo destino sombrio e cruel. A intenção de Stanley Kubrick, portanto, é produzir um incômodo profundo na mente do espectador, deixando-o pensar em como a guerra pode trazer consequências duras e difíceis para aqueles que estão diretamente ou indiretamente ligados à ela. É ironizar – e até mesmo satirizar – passagens marcadas por ódio e violência, seja o ríspido Sargento como caricatura, ou os soldados durões que só conseguem se provar por meio do tamanho do membro. Nascido para Matar serve justamente para destruir essas concepções imaginárias sobre a postura e a moralidade do homem, evidenciando o que elas tentam esconder: a mediocridade humana.