Primeiro livro da série Crônicas das Trevas Antigas, Irmão Lobo (Wolf Brother, no original) é uma obra extremamente surreal que te leva a lugares inimagináveis.
A autora, Michelle Paver, consegue transformar a época da idade da pedra em algo civilizado, de certa forma. Onde os supostos homens das cavernas moravam em civilizações subdivididas por clãs, tinham suas próprias leis, magias, profecias e cada um venerava o espírito de um animal. A série se baseia na história do jovem Torak, do clã do Lobo. Um garoto com apenas doze verões de idade que fora criado com o pai na floresta, longe de outros clãs e pessoas.
Atenção: a partir deste ponto teremos alguns spoilers!
Torak e Pa (seu pai) estavam acampando à noite, sozinhos, como sempre viveram. Mas aquela não era como as outras noites: era o momento em que Torak iria realmente seguir o destino que estava traçado a cumprir. Com o aparecimento de um urso com a cara da morte, possuído por um espírito maligno e disposto a matar tudo o que vê pela frente, o pânico toma conta do cenário e Pa, mesmo com habilidades de caça e combate, é gravemente ferido. Nesse momento a autora consegue expressar o medo e o desespero dos dois, passando aquela sensação para o leitor, e ao mesmo tempo deixando uma dúvida martelando na cabeça; coincidentemente, a dúvida que fará o desenvolvimento do livro.
Com a gravidade do ferimento, Pa percebe que não sobreviverá e faz um último pedido ao filho: que encontre a Montanha do Espírito do Mundo, um lugar que ninguém nunca encontrou. Quando o garoto pergunta por que ele encontraria, Pa diz que Torak achará um guia. Nesse momento da morte de Pa, percebe-se também uma parte da tradição da época, como na hora em que, quando está a beira da morte, o pai pede para que o filho troque sua faca com ele. Isso para Torak significava um ponto final, seria o recebimento da sua herança.
Torak se vê sozinho e aflito sobre o que fazer. Acabara de perder a única pessoa que conhecia, estava com pouca carne seca estocada e não sabia como encontrar o guia que o levasse para a montanha, como havia dito seu pai. Descendo a floresta ele encontra “Lobo”, um filhote que estava mexendo em cadáveres de sua espécie. Nesse momento acontece a primeira mudança de visão no livro. O diferencial da série Crônicas das Trevas Antigas é que os livros são narrados em duas visões diferentes. Em meio aos capítulos, o leitor vê a cena tanto na perspectiva de Torak, quanto de Lobo, transformando os dois em protagonistas da trama. Na perspectiva de Torak temos uma visão humana, mais racional, contendo falas e palavras diretas, já na visão de Lobo temos algo mais instintivo. A autora, para demonstrar seus pensamentos não utiliza substantivos simples, mas prosopopeias, por exemplo: para se referir a humanos é usado o termo Alto-Sem-Rabo, ou para se referir a uma fogueira o termo usado é Brilhante-Besta-Que-Morde-Quente. Também um quesito importante a citar, é que como Lobo é um filhote, o leitor consegue acompanhar todo seu processo evolutivo até chegar à sua maturidade.
Assim que começa a mudança de visão, entendemos mais sobre a história do jovem animal. Ele estava feliz, brincando com seus irmãos em meio a matilha, até que uma enchente inesperada arrasa toda a floresta na qual viviam e deixa um único sobrevivente: Lobo. Esse momento pode ser considerado o mais dramático do livro, onde vemos lobo sem entender o que tinha acontecido à sua família. Ele começa a cutucar com a cabeça um irmão, perguntando porq ue não queria brincar mais, porém o filhote não se move. Lobo repete os cutucões com todos da família, mas ninguém se move. Foi nesse tempo que apareceu o Alto-Sem-Rabo.
Inicialmente, com a fome que estava, Torak pensa em matar e comer o filhote de lobo que encontrara, mas acaba tendo visões sobre ele, e começa a entender o que o animal grunhia. Um pouco confuso sobre o que estava acontecendo, ele começa a pensar que além de pertencer ao Clã do Lobo, uma parte dele também era animal.
A medida que Lobo seguia Torak, a relação de preocupação e ajuda entre os dois aumentava. Para o filhote, Alto-Sem-Rabo podia o alimentar e o proteger, e para o humano o pequeno lobo tinha um faro muito bom para mostrar onde está a comida e o perigo.
Após uma longa febre que teve graças a um ferimento da luta conta o urso, Torak é capturado pelo Clã do Corvo, com a acusação de estar caçando em seu território. Nesse momento de captura descobrimos como é uma civilização do universo das Crônicas das Trevas Antigas, e suas duras leis. Por caçar um veado na região do Clã do Corvo ele foi condenado à morte, porém, para não morrer, o garoto pede um julgamento por combate. Seu oponente era Hord, um de seus captores. O momento da luta é longo e como está lutando com um oponente mais forte e não tendo nenhuma experiência em combate, Torak conseguiu vencer através do intelecto.
Mesmo vencendo Hord em combate, não libertaram-no. Após observarem que o garoto conseguia se comunicar com seu animal de clã, Renn (irmã de Hord) acusa Torak de ser o “ouvinte” de uma profecia na qual dizia que: “Uma sombra ataca a floresta, ninguém consegue se opor a ela”. Essa primeira parte se referia ao urso, “então vem o ouvinte, ele luta com o ar e fala com o silêncio”, “luta com o ar” foi o que Torak fez na luta contra Hord, usou vapor d’água e cegou o oponente para ganhar, e “fala com o silêncio” se refere a um apito que o prisioneiro usa para chamar o seu animal de clã. Torak havia o confeccionado quando Lobo sumiu enquanto estava com febre. Ele pergunta o que acontece com o ouvinte no fim e recebe o final da profecia: “O ouvinte dá o sangue do seu coração para a montanha. E a sombra é esmagada.”
Após ser preso novamente e esperar que decidam seu futuro, Torak busca respostas sobre a sua vida e várias pontas soltas deixadas tanto em sua cabeça quanto na do leitor são explicadas, como: Quem foi seu pai, por que viviam isolados do restante dos clãs, o que houve a sua mãe e como o urso foi criado.
Depois de grandes revelações, Torak consegue fugir do acampamento com a ajuda de Renn. Ela disse que o estava ajudando porque acreditava que somente ele acharia a montanha e que não seria o seu sacrifício que destruiria o urso, mas a ajuda do espírito do mundo. No caminho em busca da montanha, Renn diz que não seria simples assim pedir a ajuda do espírito, que Torak teria de provar que era merecedor de receber a ajuda e o único modo de provar, era recolhendo as três partes do Nanuak: os olhos do rio, o dente de pedra e a lamparina. Começa mais uma grande aventura. Sem saber onde vão achar os pedaços do Nanuak, ou a montanha, Torak, Lobo e Renn chegam ao limite.
Conseguindo as partes do Nanuak, são assaltados por Hord que os seguiu. Ele conta que o urso atacou o Clã do Corvo e que Fin-Kendin (Líder do Clã) está gravemente ferido. Renn volta ao clã, e Torak continua a busca com Lobo. Finalmente, quando encontram a montanha, retornam ao acampamento do Corvo e descobrem a história sobre os devoradores de almas: “Os devoradores de almas… Eram sete magos, cada qual de um clã diferente. No início, não eram maus. Ajudavam seus clãs. Cada um tinha sua habilidade particular. Um deles era ardiloso como uma cobra, sempre pesquisando a sabedoria de ervas e poções. Outro era forte como um carvalho; desejava conhecer as mentes das árvores. Uma outra pensava em voar mais veloz que um morcego. Adorava enfeitiçar pequenas criaturas para cumprirem suas ordens. Um deles era orgulhoso e ambicioso, fascinado por demônios, sempre tentando controla-los. Dizem que um outro podia convocar os mortos… Muitos invernos atrás, eles se uniram em segredo. A princípio chamaram a si mesmo de curadores. Iludiram a si mesmos, acreditando que queriam apenas fazer o bem; curar doenças, proteger contra demônios… Em pouco tempo estavam chafurdando o mal, pervertidos pela sua fome de poder…Acima de tudo, os devoradores de almas queriam poder. Era o motivo de suas vidas. Governar a floresta. Forçar todo mundo a fazer o que eles queriam. Então treze anos atrás, aconteceu algo que abalou o poder deles… Houve um grande incêndio e os devoradores de almas se dispersaram. Alguns ficaram seriamente feridos. Todos seguiram pra esconderijos… O homem que criou o urso era um deles.”
No outro dia após ouvir a história, Torak e Lobo sobem a montanha. Hord mais uma vez tenta roubar o Nanuak para ele derrotar o urso com as próprias mãos, mas acaba sendo morto quando o mesmo aparece. Lobo leva o Nanuak para o topo da montanha e enfim o espírito do mundo mata o demônio.
O livro tem um final considerado um pouco fraco para alguns, porém quando você começa a ler, percebe que há varias pontas soltas no decorrer da obra e que com certeza haverá uma continuação. A autora sabe mexer com as sensações do leitor. ao começar a descrever uma cachoeira, consegue-se sentir respingos d’água; quando descreve o orvalho, se sente um pouco de frio e o corpo úmido, deixando o leitor imerso na história. Irmão Lobo é o tipo de livro que você sempre quis ler mas nunca encontrou.
Sobre a autora:
Michelle Paver nasceu na África Central, mas foi para a Inglaterra ainda criança. Após obter um diploma em Bioquímica na Universidade de Oxford, Tornou-se sócia de um escritório de advocacia em Londres, mas acabou abandonando-o para se dedicar a escrever em tempo integral.
As Crônicas das Trevas Antigas nasceram da paixão de toda uma vida por animais, antropologia, e sempre pelo passado distante. As viagens pela Noruega, Lapônia, Islândia, pelos montes Cárpatos, e em particular o encontro com um enorme urso num vale remoto do sul da Califórnia, serviram também como fonte de inspiração.