“O tempo todo estou tentando me defender. Digam o que disserem, o mal do século é a solidão. Cada um de nós imerso em sua própria arrogância. Esperando um pouco de afeição”.
(Esperando por Mim – Legião Urbana)
Saber quem você é e se aceitar como é. Esse é o principal ponto que Justin da quadrinista francesa Gauthier trata na graphic novel lançada pela Editora Nemo aqui no Brasil. No resumo da história, Justine é uma menina, que durante a sua infância começa a sentir, digamos, “incomodada” pelo corpo que tem. Ela então entra em uma jornada para procurar o que lhe deixa feliz, o que lhe satisfaz, mesmo sem entender o que está acontecendo. O que acaba incluindo psicólogos, bullying dos amigos, pressão e decepção dos pais. Mas Justine tem uma característica de ser decidida. Ela tem seus momentos em que a dúvida paira sobre sua cabeça. Mas também tem atitude em diversas ocasiões. E isso é encorajador para diversas pessoas no mesmo caso.
Em uma rápida pesquisa no Google, você pode ver como casos como esse são rotineiros. Pessoas que começam a se incomodar com o próprio corpo como se existisse um grito de socorro dentro delas. Algumas decidem lutar para serem felizes. Outras, por um medo compreensível da sociedade, escondem-se atrás de mentiras e passam a vida assim. Algumas delas chegam até ao suicídio.
“Bobeira é não viver a realidade”. (Malandragem – Cazuza)
A transexualidade é um assunto extremamente polêmico e muito menos discutido do que deveria ser. Talvez por isso, por não entendermos exatamente do que se trata, essa condição seja motivo de tantos casos de preconceito. Transexual é aquela pessoa que nasceu com um determinado sexo, mas não se identifica com ele. E esse sentimento diferente com mudança de comportamento leva a pessoa a procurar tratamentos hormonais e até fazer cirurgias para mudar o corpo. Tratada por muitos como um transtorno, são recomendados acompanhamento psicológicos ou até mesmo com remédios.
Mas onde fica a linha tênue que separa se é transtorno ou apenas um grito pedindo liberdade de uma pessoa?
Gauthier trata disso em Justin. A trama começa na década de 80, quando os sentimentos e as dúvidas começam a aflorar em Justine. Todos os elementos que compõem essa “Ópera da Negação” estão na HQ. A negação dos pais, a negação da sociedade, a negação da família, a negação de profissionais e a negação da própria Justine. Em poucas páginas, a graphic novel, revela e conta sobre como é dolorido e pesado o fardo de tentar se posicionar em um mundo que simplesmente não te aceita. A trama mostra que muitas vezes você será chacoteado, humilhado… mas ao mesmo tempo ela te dá coragem para seguir para o que quer de verdade. E imagina você, amado leitor, que se hoje em dia a transexualidade é ainda um tabu, pense como era em 1983.
Sempre foram casos tratados como “sem-vergonhice”; “ah é falta de um bom homem”, “falta de porrada”, e essas canalhices que todos já escutaram diversas vezes. O tambor de ódio e incompreensão sobre esse assunto e outros semelhares já transbordou há tempos, e ainda mais no momento em que vivemos onde ter ódio parece que ficou na moda. Mas exemplos de publicações como Justin são essenciais para sabermos com tratar essas mazelas e não alimentar o preconceito. Táoquei?
A arte de Justin é simples com traços normais, sendo até mesmo infantis às vezes, mas o que é bom para a graphic novel. O assunto em si é pesado, e os desenhos com as pessoas sendo retratadas como bichinhos dão a leveza necessária para a carregada história. O ponto fraco é que o desenvolvimento é muito rápido pela trama ser curta (se é que isso é um ponto fraco). Às vezes a gente fica pensando “como é que chegou assim, já?” Mas nada que te deixe extremamente confuso com a trama.
“Olhos nos Olhos, quero ver o que você faz. Ao sentir que sem você eu passo bem demais”. (Olhos nos Olhos – Chico Buarque)
O ponto forte é Justine. Ela é uma protagonista, que de forma simples, você abraça e fala: “estou contigo até o fim”. Ela passa por todo um processo onde ela se deprime, fica decidida no que quer, fica confusa, ela revida o ódio, se apaixona, se descobre sexualmente e se coloca em xeque. Toda essa salada de sentimentos sinceros da protagonista acaba estreitando o caminho dela com o leitor.
O trabalho editorial da Nemo aqui está incrível, o que não é nenhuma novidade se tratando desta editora. A publicação é prazerosa de se ler. O acabamento é de primeira linha como todos os trabalhos da Nemo. Sempre dando esse deleite para o seu leitor.
Justin é uma história que nos faz pensar. Ela traz para a mente aquela velha questão: e se acontecesse comigo? Se por acaso uma pessoa próxima a mim, como por exemplo, um membro da família se descobrisse transexual, como agiria? Você pode ter uma mente aberta, ser sem preconceitos, mas será que diante de um caso tão próximo, você seria como a mãe da Justine? Ou aceitaria de braços e coração abertos? Faça esse exercício.