Já consagrado como um dos maiores autores modernos do mercado de quadrinhos da Europa, Christophe Chabouté entrega em Solitário o que se assemelha a uma junção de suas duas obras publicadas no Brasil anteriormente pela editora Pipoca e Nanquim, com a ambientação marítima e desoladora de Moby Dick e a sensibilidade humana de Um Pedaço de Madeira e Aço.
Tal qual a deusa mitológica do destino Dalia, a embarcação Dahlia possui em suas mãos o destino do solitário morador de um farol. E assim como a deusa, esta embarcação – com sua tripulação composta por apenas dois homens – é a responsável por fornecer bens materiais, essenciais para a sobrevivência de Solitário. E as semelhanças não se limitam a estes aspectos, visto que Dalia (filha de Dievas), é muito mais uma executora das vontades de Dievas do que tomadora de decisões. A Dahlia desta história executa as vontades de um pai falecido. Além do destino, o pai de Solitário garantiu que Dahlia seria a incumbida pela riqueza material que forneceria a vida ao isolado faroleiro que não tem seu nome revelado, nesta narrativa que também não possui recordatórios, desenvolvendo todo o álbum com sua arte magistral e nada além de poucos balões de fala ou páginas de impressos.
Ao longo das mais de 370 páginas que compõem o livro seu criador de forma inventiva estabelece a rotina de um personagem curioso, uma figura rejeitada pela sociedade de maneira já conhecida pelo inconsciente popular por histórias como a do Homem Elefante, que consagrou-se através do filme de 1980 dirigido por David Lynch. E o autor não sente a menor pressa para ambientar o leitor, já que através de seus traços característicos e exímio uso de chiaroscuro se utiliza de muitas páginas de pura contemplação através de transições de momento a momento e ação a ação quando em ambientes abertos ou centrado em figuras específicas, e também de aspecto a aspecto quando inserido em ambientes mais fechados, tornando tangível este local.
Notem que o céu de Chabouté quase sempre é aberto e extrapola os limites dos quadros, como é o céu sobre nossas cabeças. As gaivotas são livres para voarem para onde bem entenderem, criando um contraste doloroso quando em comparação com a figura central que vive em sua ilhota, perdido em sua rotina de descobrimentos e imaginando determinadas cenas ou frustrando-se por não conhecer (ou não entender) certos assuntos da vida. O mar em toda sua imensidão traz no balanço de suas ondas um universo de itens perdidos à porta de Solitário, que geram uma miscelânea de descobertas e ligações. E as novidades que descobre não significam nada para a magnitude do oceano, apenas para o sonhador enigmático.
Os enquadramentos tomados pelo autor são extremamente exitosos em garantir uma sensação de liberdade ou claustrofobia, enquanto o céu e o mar rompem as linhas dos quadros e a solidão do farol é retratada quase sempre com suas paredes limitando o ambiente. O autor também brinca com a maneira como Solitário mergulha em seus pensamentos, em cenas como as das páginas 66 e 123, onde a imaginação do protagonista começa a fluir das margens do quadro para o interior, entrando diretamente na vivência limitada em aprendizado e tomando forma somente após um quadro de transição.
A solidão nesta obra não soa forçada. Não é piegas, demasiada melosa ou impalpável. O farol em que vive o protagonista é um verdadeiro labirinto, pois dele aparentemente não há saída. Em seus quadrinhos conhecidos pelo público brasileiro até então, Chabouté abordou aspectos extremamente humanos, como a possessão e sede de vingança, os pequenos momentos que devem ser valorizados, amizades, amores e perdas. Esta parece ser a máxima de suas criações, a capacidade de transmitir sensações reais ao seu leitor. A rotina narrada em Solitário não é cansativa, monótona ou chata para quem a acompanha. A curiosidade até faz com que, nos momentos finais, haja certa apreensão em saber o que acontecerá a seguir.
E somente um verdadeiro mestre e estudioso da nona arte é capaz de unir tamanha imersão narrativa à uma poderosa lição. Não é o destino que o fará repetir os mesmos erros por toda sua vida, e a solidão pode ser apenas autoimposta. A realidade em que você está vivendo pode parecer confortável ou sua única opção, mas ela definitivamente pode não ser a melhor para sua vida. E as pessoas ao seu redor são capazes de desempenhar um papel importantíssimo para melhorar seus sentimentos.
A edição nacional está caprichadíssima, com encadernação em capa dura com soft touch e verniz aplicado apenas no título, no logotipo da editora e na janela do farol, dando um aspecto brilhante para a única fonte de luz natural que ilumina o ambiente escuro. A tradução do meu querido amigo Pedro Bouça é sempre um primor, e não encontrei erros de revisão.