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O órfão de dois pais

É triste dizer, mas em paz não existiriam heróis. A figura do herói, que vem de ἥρως (heros: Protetor, em grego) surge somente perante um momento crítico. Na vida real ou ficção, tendemos a torcer pelo herói, o protagonista de uma situação dramática que esperemos que acabe bem. O herói de um pode ser o vilão de outro e por isso vemos tantos heróis surgindo após tragédias pessoais.

Quem nunca ouviu falar do Homem-Morcego? É um clichê absurdo já há mais de meio século afirmar que Batman, o Cavaleiro das Trevas e alter ego de Bruce Wayne, é um fenômeno cultural. Pudera: sem contar as diversas HQs que a cada mês são publicadas no mundo inteiro (sendo atualmente sete títulos mensais ligados ao Batverso disponíveis em seu país de origem), o cidadão de Gotham City que se tornou órfão ainda jovem possui 39 jogos de videogame; 12 filmes de longa-metragem em formato live-action (marca registrada no Guinness, o livro dos recordes), sendo 10 desses como único protagonista e mais 38 filmes em animação; Séries de TV que transformou quem o representasse em celebridades instantâneas, com legados intactos mesmo após sua morte; Diversos licenciamentos como cadernos, brinquedos, lancheiras, toalhas, cobertores, e até produtos alimentícios. A lista é imensa e aumenta a cada dia. Todo esse legado, que teve início com a morte de Martha e Thomas Wayne obviamente não pode ser creditado apenas a Joe Chill, assassino dos pais de Bruce. Ele não apertou o gatilho sozinho.

Existem heróis esquecidos e, em determinados casos, o esquecimento é proposital. É o caso de Bill Finger. Finger criou grande parte do personagem que conhecemos hoje. Criou sua ideia de uniforme, os roteiros de suas primeiras histórias, Robin, a batcaverna, o batmóvel e até mesmo Gotham City. Mas viveu como um anônimo até para quem lia seu trabalho.

Uma das tentativas de consertar este anonimato é o lançamento pela prataforma de streaming Hulu do documentário Batman & Bill dirigido por Don Argott e Sheena M. Joyce com apresentação de Marc Tyler Nobleman. O trabalho também faz uma retrospectiva da carreira de Finger na indústria e sua relação com Bob Kane, intercalado por simulações em forma de animação e depoimentos dos quadrinistas Kevin SmithTodd McFarlane e Roy Thomas, além de  familiares de Bill.

O documentário foi lançado em 6 de maio de 2017 porém está disponível apenas nos Estados Unidos e Japão, únicos países onde a Hulu opera.

Mais de um

Graças à um acordo entre Bob Kane e os editores, apenas o nome de Kane apareceria nas páginas de Detective Comics e também nos créditos posteriores de histórias do Batman. Essa prática, mesmo que vista como absurda hoje em dia, era comum na era de ouro e prata das HQs. “Com frequência escritores foram passados para trás sobre receber créditos em co-criações, como foi o caso de Bill Finger. Também foi o caso de Gardner Fox ter crédito em Flash e não no Gavião Negro, etc. Às vezes os artistas é que eram cortados, como H. G. Peter no novo filme Mulher-Maravilha que, por outro lado, tem George Pérez, Robert Kanigher, Ross Andru e etc. Todos creditados e nem uma palavra sequer sobre a pessoa que, mesmo que a [família] Marston sempre tenha negado, seja o co-criador da MM. Quem está do lado do Bill Finger deveria também direcionar sua indignação nesse caso, mas possivelmente não vão”, declara Roy Thomas, escritor e editor de quadrinhos desde os anos 70 em entrevista exclusiva.

Dentre profissionais e fãs, Thomas foi um dos poucos que tiveram contato ou ao menos conheceram Finger pessoalmente. O evento aconteceu pouco antes de sua primeira e única aparição pública. Segundo Thomas, ele acabou chegando atrasado em um painel que também contou com a participação de “Jerry [Bails], Gardner [Fox], Otto Binder e Mort Weisinger” na Comic Con de Nova Iorque em 1965, ocorrida em 31 de julho e 01 de agosto no Broadway Central Hotel. O local não existe mais, uma vez que por problemas estruturais, veio abaixo em 3 de agosto de 1973 matando 4 pessoas e ferindo outras 12. “O conheci em julho de 1965, até onde me lembro na noite anterior ao início da convenção de Nova Iorque, em seu apartamento. Eu estava na companhia de Jerry Bails, meu então colega de quarto David Kaler e (talvez) mais duas ou três pessoas. Jerry e/ou Dave marcaram o encontro. Jerry conheceu Bill em fevereiro de 1961 quando visitou o escritório da DC Comics e manteve contato com ele desde então por cartas.”

Jerry Bails já nos anos 60 defendia o nome de Bill Finger nos créditos do personagem quando suspeitou que Bob Kane possivelmente não era o único autor de tantas histórias. Bails tinha um fanzine onde em 1965 escreveu um artigo sobre o assunto batizado de “If The Truth be Known OR Finger in Every Plot“, fruto de contatos que teve com a DC Comics e então descobriu a participação de um autor que não aparecia nos créditos. Recentemente, essa página original foi republicada na edição 139 da Alter Ego, revista especializada em quadrinhos e editada pelo próprio Roy Thomas, que ainda lembra vagamente no encontro com Bill Finger de “Jerry e Bill mostrando uma folha de papel em que os nomes alternativos para o Robin eram mencionados (Wildcat, Tiger e etc.) e foi isso. Acho que ficamos por lá por cerca de uma hora.” Thomas ainda diz que o foco em seu então novo trabalho na Marvel o distraiu sobre ser mais curioso em relação ao assunto naquele período, inclusive sobre a contribuição de Finger em outros dois conhecidos personagens da DC Comics: Lanterna Verde (Alan Scott) e Pantera, hoje membro da Sociedade de Justiça.

Artigo original de Jerry Bails na primeira tentativa conhecida de nomear Bill Finger como co-autor do Batman (Reprodução: noblemania.blogspot.com)
Sequência (Reprodução: blogs.larepublica.pe/comics_info/)

 

O mais cedo possível

Esse foi o principal alicerce para a criação do livro Bill The Boy Wonder, também de autoria de Marc Tyler Nobleman. O livro contém ilustrações de Ty Templeton e publicado em 2012 pela editora norte-americana Charlesbridge Publishing. Segundo o autor, sem o sem o artigo de Bails seu livro possivelmente não existiria.

O livro, em capa dura e com 48 páginas é voltado ao público infanto-juvenil, com cores leves e traços de linha clara. A ideia de atingir este público em específico veio da urgência dos fãs saberem o quanto antes sobre esta história. Em conversa com a Torre de Vigilância, Nobleman informa que “[a primeira vez que ouviu falar de Bill] foi entre o fim dos anos 90 e começo dos anos 2000. Comecei a restaurar o legado de Bill em 2006 quando iniciei as pesquisas para meu livro. O documentário [Batman & Bill] começamos a fazer em 2008, dois anos antes de eu conseguir o contrato para a publicação do livro! Mas não deu certo e comecei de novo com outras pessoas em 2011. Dessa vez, também não foi longe… mas quando em 2015 a alteração dos créditos aconteceu, começamos a trabalhar nele de novo.”

Capa do livro Bill The Boy Wonder (Reprodução: noblemania.blogspot.com)

Apesar de BTBW ser um livro presumivelmente voltado para crianças, Nobleman o rotula como “um livro ilustrado para todas as idades. Escrevi alguns outros livros para crianças antes desse então eu já estava acostumado aos desafios. Crianças são inteligentes. Há uma forma sensitiva de dizer à elas quase tudo. Este é um conto cauteloso. Espero que crianças aprendam a não tratar os outros como Bob tratou Bill e não deixar que as pessoas as tratem do jeito que Bill deixou Bob fazer.”

Bob Kane viveu uma vida de celebridade: Sempre era visto em programas e eventos relacionados ao Batman que faziam o personagem se tornar uma marca ainda mais valiosa. Apesar das denúncias, continuava a declarar que era o único criador do personagem e que Finger “estava tomando mais crédito do que merecia”. Aproveitando o sucesso, Kane vendia telas com ilustrações do Batman no estilo que o consagrou na era de ouro e prata. Porém, a autoria destas telas é discutível. Tom Andrae, co-autor do livro Batman & Me, autobiografia de Bob Kane publicada em 1989chegou a dizer que tais pinturas não eram da autoria de Kane, mas não se sabe ao certo quantas telas foram produzidas nem o nome de seu(s) autor(es). Em um evento de exposição destes quadros até Tim Burton, diretor dos filmes do Batman de 1989 e 1992, esteve presente. Como homenagem póstuma, Kane teve seu nome imortalizado na calçada da fama em Hollywood.

Bob Kane com algumas telas de autoria contestada (Reprodução: popculturesafari.blogspot.com)

Tais problemas em relação aos devidos créditos a produtos relacionados gerou inimizade de Bob Kane com outros autores, como por exemplo, Jim Steranko. Ainda em sua autobiografia, Kane chega a informar que Bill Finger teria “50% ou mais” de participação na criação de Batman. Apesar de tentar consertar a falta de crédito dada a Finger, Kane no mesmo livro publica uma folha com sketches datada de 1934 com várias características ligadas ao que se tornaria o Homem-Morcego inspirada nos esboços que Leonardo da Vinci fazia para suas criações.

Sketches datados de 1934 (Reprodução: www.entrecomics.com)

 

“Super-heróis são ficção. Seus criadores, claro, são reais, o que os fazem ser humanos e o que tornam imperfeitos. Não espero que ninguém seja perfeito mas espero que todos sejam bons e justos, até se você NÃO criou personagens que são conhecidos por serem bons e justos! Eu não respeito Bob pelo desrespeitoso jeito que ele tratou Bill e outros que o ajudaram em sua carreira”, completa Nobleman que, com seu trabalho no livro e no documentário, teve acesso a arquivos de áudio com conversas de Bill Finger e conheceu uma neta de Bill que até então não sabia que existia.

Depois de tudo

Além de seu trabalho como roteirista nos quadrinhos, Finger também foi parar na televisão, inclusive escrevendo o roteiro de dois episódios da série de TV Batman dos anos 60 (The Clock King’s Crazy Crimes / The Clock King Gets Crowned, respectivamente, 11º e 12º episódios da 2ª temporada). Ainda nos quadrinhos, tentou no início dos anos 70 trabalhar para a Marvel de acordo com Roy Thomas, que tem “certeza que foi na época (se não, um pouco antes) de eu ser o editor-chefe, mas eu não me lembro do Stan [Lee] sugerindo a mim interesse em ter Bill escrevendo para a Marvel. Estranho… porque por mim poderíamos usá-lo nas [então] novas revistas em preto e branco, ao menos. […] eu gostaria de por conta própria ter buscado Finger para escrever algo ou que ele tivesse vindo até mim em meados de 1972 (quando eu me tornei o editor-chefe) porque eu poderia ter oferecido algum trabalho à ele ou então sugerir a outros (como Marv Wolfman) para fazer. Claro, ele morreu não muito depois… então não posso sequer ser 100% seguro que ele estava procurando trabalho naquele dia que ele (provavelmente a seu próprio pedido) ter se encontrado com Stan, embora é difícil imaginar qualquer outra razão pela qual ele estava lá. Porque Stan não o referiu a mim, eu não sei…”

Bill Finger morreu pobre e solitário em 18 de janeiro de 1974, num apartamento em Nova Iorque com sua TV em preto e branco ligada em um canal fora do ar. Seu cadáver foi encontrado por Charles Sinclair, um amigo que tinha a cópia da chave do apartamento. O laudo médico apontou causas naturais. Sua morte deixou no ar vários mistérios, um deles, por que nunca reivindicou um direito maior sobre suas criações. Uma suspeita é que sua condição financeira não permitiu.

Por muito tempo veiculou-se que Finger foi enterrado como indigente, porém em Batman & Bill é informado que seu filho Fred Finger atendeu o desejo do pai de ser cremado e espalhou suas cinzas em uma praia sob uma marca na areia em forma de morcego. A informação não é dada diretamente por Fred Finger, que morreu em 1992 devido problemas de saúde ocasionados por ser portador do vírus HIV. Fred era bissexual e teve uma filha chamada Athena, nascida em 1976 que lutou para o nome de seu avô ser creditado nas publicações relacionadas ao super-herói, cujo acordo firmado teve início nas edições Batman and Robin Eternal nº 3 e Batman: Arkhan Knight – Genesis nº 3ambas datadas de outubro de 2015.

Uma das primeiras HQs a darem crédito a Bill Finger, mais de 40 anos após sua morte (Reprodução: comixology.com)

Intermináveis agradecimentos a Roy Thomas e Marc Tyler Nobleman pela ajuda na realização desta matéria

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Estivemos no lançamento de Valerian da SESI-SP Editora

Após meio século de seu lançamento original, Valerián finalmente é publicada no Brasil em coletâneas para as livrarias. Para celebrar este feito, a SESI-SP Editora promoveu um evento dia 13/05 da Livraria Cultura da Avenida Paulista.

Era uma manhã de sábado daquelas que é complicado levantar da cama. Ainda mais quando a página oficial sobre o evento no Facebook pouco (ou quase nada) informava sobre como seria a cerimônia de lançamento do álbum. Mas, para quem gosta de quadrinhos e foi ao evento, com certeza saiu satisfeito.

Apresentado por Silvio Alexandre, o evento começou com a exibição de slides para se ter uma ideia do que se trata essa obra de ficção científica. A cada imagem que passava mais e mais “coincidências” com o universo de Star Wars eram apresentadas. Inclusive, uma charge feita pelo próprio Jean-Claude Mézières, ilustrador da série:

Até os próprios autores já brincaram com as semelhanças de cenário, trajes e personagens de Valerian e Star Wars.

Além disso, vídeos foram exibidos, um deles possivelmente o principal motivo para Valerian finalmente ser publicada no Brasil: A adaptação cinematográfica baseada na série que tem data de estreia marcada para 10 de agosto de 2017 no Brasil, e o mais interessante para os fãs de HQs: Um trecho do documentário L’Histoire de la page 52, lançado em 2013 que mostra parte do processo criativo entre os dois autores.

Depois das devidas apresentações, veio o mais interessante de todo o evento: Um debate sobre a obra e outros assuntos relacionados à HQs e cinema com o ilustrador Marcelo Campos, o colunista de quadrinhos e cinema Roberto Sadovski, o tradutor de Valerian no Brasil Fernando Paes e o editor da SESI-SP Rodrigo de Faria e Silva. Sidney Gusman, jornalista e hoje editor-chefe da Maurício de Sousa Produções estava também escalado para participar mas não pôde comparecer por problemas de saúde dos quais já está se recuperando.

Campos comentou que descobriu Valerian nas páginas do jornal O Globo, que publicou uma parte da saga nos anos 80 no suplemento O Globinho. A obra chamou sua atenção por tratar de assuntos sérios e críticas sociais mesmo sendo uma ficção científica com um traço mais cartunesco. Característica também vista nas páginas de Tintim, trabalhos de Moebius e Asterix, porém esta última sendo voltada ao humor. Na época ainda poderia ter acesso a este material nas bancas do país. Hoje, quadrinhos europeus são exclusivos de livrarias e lojas especializadas. Campos também informou que hoje em dia 60% das HQs vendidas em banca são provenientes de São Paulo. E desta fatia, 90% das bancas situadas na Avenida Paulista.

Mais semelhanças com Star Wars.

Sadovski manteve seus comentários direcionados à adaptação cinematográfica de Valerian. Afirmou que o diretor Luc Besson possui vasta bagagem cultural e pegou os elementos da HQ que podem ser transpostos ao cinema, pois hoje absolutamente mais nada é impossível de ser feito nas películas. Também informou que existem roteiros há mais de 25 anos engavetados por, na época, não ser possível fazer adaptações cinematográficas que atendessem o proposto. Respondendo uma perguntada plateia sobre o possível plágio que Star Wars pode ter feito em cima de Valerian, Sadovski acredita que não seja um plágio propriamente, e sim uma inspiração entre várias que George Lucas teve em sua biblioteca privada, que é uma das maiores coleções do mundo.

As notícias mais animadoras vieram de Faria, que edita quadrinhos no SESI desde 2013 após conversas com a Quanta Academia de Artes inicialmente de publicar obras autorais. Diferente dos lançamentos da editora até então, Valerian segue a versão Integrále publicada na França. Versões Integrále são como “encadernados” de quadrinhos franceses, contendo geralmente mais de três álbuns por edição. Esse formato já se tornou tendência nas editoras francesas. Faria afirmou que esta decisão foi feita por decisões comerciais, pois sairia mais barato esse tipo de publicação. Dos cinco Integráles publicados até agora na França, três já foram comprados pela SESI-SP e o volume 2 já foi traduzido, com data de publicação prevista para o fim de 2017.

Sobre a tradução, Fernando Paes lembrou que o maior desafio em traduzir a HQ foi encontrar expressões equivalentes às expressões francesas da época, e que foram necessárias, no total, 20 a 30 horas de trabalho para traduzir cada álbum.

Outro responsável pela SESI-SP que estava na platéia (mas não no palco), José Carlos Júnior respondeu a uma pergunta do público sobre distribuição de outras formas além de livrarias. Respondeu que a editora já tem contrato com a Dinap e pode nos próximos 2 meses iniciar sua distribuição de títulos em bancas, porém estes diferentes do que vemos nas livrarias e lojas especializadas. Um dos citados é O Garoto Vivo, mas não deixou claro se são novas edições ou a já publicada. Júnior explicou que a operação é custosa e um problema é ter apenas um distribuidor hoje em dia e o fato do retorno financeiro de uma banca hoje ser 20% comparado com o retorno de 20 anos atrás.

Perguntei se o formato Intégrale será adotado em mais publicações da editora e Faria informou que serão feitas enquetes por parte da SESI-SP para saber o que o leitor prefere. Blacksad, por exemplo, está para ser lançado e vai adotar a publicação de álbuns individuais. Em outra pergunta realizada pela platéia, respondeu que Marsupilami deve estar entre as opções das enquetes a serem realizadas sobre futuros títulos da editora.

Valerian – Volume Um já está disponível nas melhores livrarias, como Amazon, Fnac e Saraiva. O encadernado contém 160 páginas encadernadas em capa cartão, com orelhas e laminação brilhante, no formato 28,8 x 22 cm. O preço de capa sugerido é R$ 58,00.

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Torre Entrevista | Paul Pope

Há um bom tempo queria entrevistar o Paul Pope. Dono de um traço original e versátil, suas histórias chamavam minha atenção. Nos encontramos em uma cafeteria no meio de uma tarde chuvosa em São Paulo e Pope, muito atencioso como em todas as vezes em que conversamos, falou sobre suas experiências com a Marvel e DC, trabalhos passados, sobre a tão aguardada conclusão do segundo volume de Bom de Briga, projetos futuros, artes e muito mais que você confere logo abaixo, na PRIMEIRA entrevista concedida por ele em 2017!


Muitas das suas HQs são ligadas aos quadrinhos underground pelo estilo do seu traço, que apesar de ter influências de Hugo Pratt, Victorio Girardino, Alex Toth e etc. tem um quê de alternativo. Você já se sentiu como um ”estranho no ninho” ao trabalhar para grandes editoras como Marvel, Dc, Kodansha, Dargaud…?

Às vezes. Vejo a Marvel e DC como se fossem selos de gravadoras. Assim eu seria como um músico de jazz em uma gravadora de música pop. Porque meu estilo é bem diferente comparado ao que é publicado no mainstream americano.

Você já trabalhou para mercados dos Estados Unidos, Japão e Europa. Como essa mistura de ideias e cultura influenciaram em suas histórias?

Sempre me interessei em procurar uma síntese de estilo, quando se tira os melhores elementos de Bande Dessineé, Mangá e os quadrinhos americanos. Deste último, mais precisamente os quadrinhos clássicos e underground, como os do Robert Crumb. Assim se constrói um novo estilo.

MARVEL+MASHUP
Capa de Strange Tales #1 (Marvel Comics, 2009)

Lá pelo ano de 2010 você fez apresentações como DJ. Essas, eram acompanhadas de um vídeo. Algo interessante é que esse vídeo não está disponível em lugar algum. Você também já disse que gosta que as pessoas imaginem como é algo que não é tão fácil de se obter…

Sim, acho importante. Principalmente nessa era onde está tudo tão fácil disponível online acho bom que ainda haja algum mistério. Também acho que há um grande valor em não ter acesso a tudo pois assim pode exercitar sua imaginação. O vídeo ao qual você se referiu tem cerca de 30 minutos de duração e é uma série de trechos de filmes de ficção científica e documentários sobre explorações espaciais, porém exibidos em um ritmo mais lento. São luzes, lens flares, planetas e imagens cósmicas. Uma espécie de filme impressionista para reagir com a música…

…é por isso (o não tão fácil acesso às coisas) que o protagonista de Bom de Briga tem um passado obscuro? Algo que não acontece com a Aurora West, que tem uma HQ contando seu passado?

Acho que porque o Bom de Briga é descendente de deuses; A Aurora, de humanos. Aurora representa heróis como o Homem de Ferro ou Batman, que não têm superpoderes, apenas trajes e aparatos modernos. Pelo BB ser um Deus acho que é necessário ter um quê de mistério sobre suas culturas, por isso não vemos muito sobre ele.

Você costuma desenhar ouvindo música. Em imagens do seu estúdio já vi pedais de distorção e cabos de amplificador pelo lugar. Música é seu Heavy Liquid (referência a uma HQ homônina de Pope. Inédita no Brasil)? É como o Robin que seu Batman na história Teenage Sidekick precisa para não se tornar um Coringa?

[Risos] Eu vim de uma família de músicos. Sempre gostei de tocar e gravar. Essas coisas estão lá porque costumo usá-las. Já fiz trilhas e vários amigos meus de Nova York são músicos e compositores de Jazz e Rock. Sou muito influenciado por música pois não há aspectos visuais nela, apenas sons. Por sua vez, quadrinhos não tem som. Por isso penso que música pode ser um complemento para a arte de fazer HQs.

Uma grande influência sua, Hugo Pratt, depois que criou o Corto Maltese se tornou mais sério perante seu público. Ele achava que não levariam a sério o Corto caso os leitores percebessem que seu autor era frívolo. Algum personagem ou autor influenciou sua forma de pensar e agir depois de você ler suas histórias?

Você diz sobre a relação entre arte e o autor ou sobre mim mesmo?

Pode ser sobre as duas coisas.

Pratt é intrigante porque ele é uma figura tão internacional. Admiro muito ele e Moebius, que deixaram seu país para ir a outros lugares. Também vejo isso em Attilio Micheluzzi, que era arquiteto na Líbia até  Muammar Gaddafi chegar ao poder e aí [voltando à Itália] começou a fazer quadrinhos. Outro é Daniel Torres, que foi escultor na Espanha. Como minha formação é de História da Arte e Artes Visuais, comecei nos quadrinhos após 8 anos de faculdade, onde eu pintava esculpia e fazia coisas do gênero. Dessa forma, me sinto mais como um autor europeu, desses autores que transitaram entre outras artes antes ir aos quadrinhos…

Por isso você se tornou um quadrinista ao invés de músico?

De certa forma. Quando eu era mais jovem toquei muito. Tive bandas, fiz shows. Era necessário muito tempo dedicado para ambas as artes então tomei a decisão dos quadrinhos ser a arte dominante. Já fiquei sem tocar guitarra por 2 ou 3 anos daí voltei. Hoje em dia voltei a fazer e gravar música. É interessante, porém não tem como tomar a maior parte do meu tempo. Também tenho interesse em esculturas. Estou fazendo esculturas de brinquedo, porém não tenho tempo de fazer algo em bronze ou outro tipo de metal.

Quando Escapo foi reeditado, sua publicação veio em cores. A primeira era preto-e-branco. No posfácio da edição em capa dura você diz que obras em cores vendem. São mais atrativas aos leitores.

Saíram duas histórias de Escapo. Existe uma terceira história dele que devo publicar quando os direitos sobre o personagem voltarem para mim. Quando eu reeditar, vai ser em preto-e-branco novamente. Alguns projetos levam muito tempo para serem concluídos. Comecei as histórias do Escapo em 1995; A segunda história saiu em 2001. Por volta de 2008 voltei a mexer com Escapo, quando finalmente tive ideias para uma nova história. Portanto, demorou quase 20 anos para chegar ao fim.

É por isso (sobre o uso de cores) que Bom de Briga tem um traço mais limpo, sem muito uso de preto e sombras? Mas porque Rise of Aurora West é em preto-e-branco?

[sobre Bom de Briga] Sim, é isso mesmo. [sobre Aurora West] foi uma decisão editorial, não minha. Assim como o formato de Bom de Briga. Não gosto muito daquele formato publicado. É muito pequeno. Mas estou conversando com a editora para ter edições publicadas em um formato maior.

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Capa de Fall of the House of West (First Second books, 2015)

Mas esse formato não foi uma ideia para poder encaixar em estantes de bibliotecas?

Sim. Nesse sentido, isso é muito bom porque a First Second (selo da editora Roaring Brook Press que publica Bom de Briga nos Estados Unidos) é bem conservadora. Publicaram diversos livros mas apenas recentemente começaram a publicar Graphic Novels. Mas acho que precisamos, além de experimentar esse formato que custa em média 10 dólares e de disponibilidade em bibliotecas, também ter publicações em formatos maiores e em preto-e-branco atrativo a outros públicos, que gostam de apreciar a arte. Por isso estou conversando com a editora para tornar isso possível.

Agora que você finalmente está concluindo Bom de Briga, você mira fazer desta obra algo imortal, uma HQ para ser lembrada para esta e as próximas gerações. Quais obras você considera neste nível?

Os quadrinhos d’O Pato Donald feitos por Carl Barks, o Tintim de Hergé, qualquer obra do Katsuhiro Otomo ou [Osamu] Tezuka, Robert Crumb, o Bone de Jeff Smith, espero que Bom de Briga… Tudo que Jack Kirby fez para a Marvel nos anos 60 e começo dos anos 70, qualquer uma feita por Moebius, como Incal… acho que essa já é uma boa lista.

Você considera Bom de Briga sua obra mais pessoal? Pelo tempo dedicado, ideias colocadas na história e etc.

Acho que foi a mais exigente, porém não a mais pessoal. Tenho um projeto com a Dargaud chamado Psychonaut que considero muito pessoal. É sobre sonhos e análises sobre os mesmos. E isso é um contraponto com Bom de Briga que é algo mítico, uma jornada heroica ou a minha versão a respeito disso. Por isso [em BB] tentei colocar tudo que acho bacana e que não existe em quadrinhos para leitores mais jovens. Algo contemporâneo e ainda assim clássico. O lado interessante da publicação é que tenho conhecido leitores de cerca de 12 anos de idade que leram BB e essa é a única HQ que eles têm até então. Isso é ótimo, um jeito de apresentar graphic novels a uma nova geração.

Curiosa essa resposta porque eu estava para perguntar sobre um projeto da Dargaud antes chamado La Chica Bionica. O que aconteceu com esse projeto? E qual é o novo nome?

Agora se chama La Bionica e é um tipo de ópera. No momento tenho dois contratos com a Dargaud: Um para Psychonaut, outro para La Bionica. Sobre o cronograma, ambos são projetos exigentes. Psychonaut se tornou mais dominante. Então, estou terminando Psychonaut junto com Bom de Briga e La Bionica virá depois. Desta última, tenho cerca de 30 páginas finalizadas de um total de 76. Psychonaut é um pouco maior e faltam, talvez, 10 a 15 páginas para terminar.

Há algum prazo para o lançamento de tal?

Não. Haverá quando sabermos exatamente onde acaba e quando eu puder entregar estas páginas. É o mesmo com Bom de Briga no momento, que está em processo de enviar das páginas para os próximos estágios de produção. Em BB a história já foi escrita e estou terminando as páginas do segundo volume mas não há como colocar no programa de lançamento antes de tudo estar finalizado e daí podemos trabalhar a respeito disso. Eles [os editores] não querem que eu divulgue exatamente quando a HQ deve sair ainda mas acredito que no próximo ano, provavelmente.

Bom de Briga é para todas as idades, igual várias séries animadas do Cartoon Network (Hora de Aventura, Apenas um show…). Qual foi a parte mais difícil de agradar todos os públicos, sendo que hoje a média de idade dos leitores de quadrinhos nos EUA varia de 27-35 anos para homens e 17-26 para mulheres? A DC Comics já recusou um projeto seu sobre o Kamandi por este motivo (não coadunar com o público-alvo).

Respondendo a primeira parte da pergunta, eu procuro não me preocupar sobre às expectativas do público. A parte mais difícil de Bom de Briga além da história por completo, o quanto levará para ser feita e todos os diferentes altos e baixos tem sido a necessidade de compromisso com a editora porque também sou diretor de arte, todas as minhas HQs têm se saído bem e eu tenho controle sobre o design de minhas publicações e, à partir do momento que não tenho é muito frustrante para mim porque é limitar o que os leitores mais jovens estão aptos a ver sobre o potencial da obra. Por isso também estão disponíveis apenas estes volumes menores por enquanto, mas como eu disse, estou trabalhando para mudar isso. E é verdade, eu tive conversas com a DC sobre uma publicação dedicada um público mais velho. Na época, era para ser do Kamandi mas, conversando com Frank Miller e tendo em vista a repercussão da minha HQ do Batman [Ano 100] e o potencial de trabalhar com uma grande editora, esta dentre as seis maiores do mundo [Holtzbrinck Publishing Group, atual dona da Roaring Book Press] com possibilidade de licenciamento em diversos idiomas ao redor do mundo e a chance de minha publicação sempre estar em circulação, acho que esta foi a decisão mais sábia, especialmente considerando quando o projeto do Kamandi não foi adiante e vim com uma ideia original. São meus personagens. Eu poderia fazer um personagem como o Batman mas ELE é o original. Ele é diferente. Acho que os mais jovens estão procurando por isso porque eles já têm o Capitão América, Star Wars, Mickey Mouse… todos estes hoje são da Disney. Então eles precisam de coisas novas. Hora de Aventura é este sucesso porque é novo.

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Página interna de Bom de Briga (Companhia das Letras, 2014)

Em uma entrevista ao Omelete durante a Comic Con Experience de 2016, você disse que só recentemente estava descobrindo novas HQs graças a todos esses anos dedicados a esta graphic novel. Qual foi a última grande HQ que você descobriu?

Acabei de comprar aqui uma HQ muito perturbadora chamada Psico Sour [de Ronaldo Bressane e Adams Carvalho]. É uma história muito pornográfica e violenta, mas que prende muito sua atenção por ser poderosa. Esta é literalmente a última HQ que comprei. O Daniel Semanas [que estava presente na cafeteria durante a entrevista] também acho que é um talento muito promissor. Gosto também do Bruno Seelig, que visitei esta semana. [Rafael] Coutinho também gosto muito. Acho que aqui no Brasil há muitos artistas talentosos. Essa uma das razões porque estou investindo tempo aqui além de ter amizade com artistas como Rafael Grampá, Fabio Moon e Gabriel Bá. Estou interessado em conhecer mais artistas aqui porque acho que têm uma cultura e abordagem diferente de fazer quadrinhos. Não me sinto tão à vontade, por exemplo, comparado aos quadrinistas independentes dos Estados Unidos e Canadá, apesar de por lá conseguir trabalhar sem problemas no mainstream.

Você planeja falar sobre este sincretismo da sua arte com a forma que fazemos quadrinhos aqui durante a sua Masterclass no b_arco*?

Espero que sim. Pretendo focar em compartilhar ideias fundamentais sobre como desenvolver um estilo. Quando eu estava na Escola de Artes sempre tínhamos críticas sobre pintar e até passávamos o dia debatendo ideias de como fazer e entregar esse método de trabalho. Acho que essa é a coisa mais importante para alguém: Esse senso de processo pessoal. De você saber como desenvolver, produzir e sobreviver nos quadrinhos, design, Graphic Novels ou mesmo enquanto se administra [estas artes] com outro trabalho. Tudo que pode te ajudar a se tornar melhor no que faz penso que é importante. Até de forma comercial, talvez.

Para finalizar, uma bem rápida: O que você acha que precisa ser feito para, igual sua mensagem ao fim da história Teenage Sidekick, fazer as pessoas lerem mais quadrinhos?

Pessoas precisam continuar fazendo material surpreendente e recompensador [de ser lido]. Continuar inventando. Eu estou tentando o meu melhor, Bom de Briga é novo e chegou ao topo dos mais vendidos  do New York Times em sua categoria, é publicado em vários idiomas, possui contrato para a produção de um longa-metragem que está em desenvolvimento pela Paramount, há uma linha de brinquedos a serem lançados em breve… há muita energia em volta de Bom de Briga. Novos desafios necessitam mais tempo e concentração nas novas áreas da franquia, mas no fim das contas estou escrevendo e desenhando uma história original então procuro balancear todos estes elementos.

*Nota: A entrevista foi concedida na véspera da Masterclass  na escola de artes b_arco, ocorrida em 27 de abril de 2017.