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Games Torre Entrevista

Torre Entrevista – Alexey Pajitnov

Conforme visto em matérias anteriores, a Torre de Vigilância tradicionalmente cobre a Brasil Game Show há muitos anos. Apesar de vários textos, testes de jogos, fotos de Cosplay etc., nunca havíamos entrevistado um convidado internacional da maior feira de videogames da América Latina. Porém, em 2023 a escrita foi quebrada: pela primeira vez conseguimos uma conversa exclusiva com um ilustre convidado, e foi justamente com o russo Alexey Pajitnov, engenheiro de computação criador de Tetris, um dos jogos mais populares de todos os tempos.

Quase 40 anos após a criação que mudou para sempre a vida do Moscovita de 68 anos e do mercado de jogos eletrônicos em geral, Alexey nos conta sobre de suas impressões sobre o Brasil, os segredos de Tetris e ideias para novas conquistas dessa marca tão icônica não só nos games, mas na cultura popular. Confira!

Bem, Alexey: antes de tudo, muito obrigado por aceitar conversar conosco. Como você está aproveitando sua estadia no Brasil? Tem planos para visitar outras cidades?

Sim, muito obrigado a você por vir e fazer esta entrevista. É minha primeira vez no Brasil e estou muito contente por estar aqui. Infelizmente, ainda não consegui ver muita coisa pois estive muito ocupado com a Brasil Game Show, porque me querem por aqui a todo momento, mas estou com expectativas de também visitar o Rio [de Janeiro] por alguns alguns dias e aproveitar o que o Brasil tem a oferecer.

Existe uma situação muito interessante a respeito de Tetris: várias franquias de jogos deixam seu público saturado por isso acabam entrando em hiato, como Tony Hawk’s Pro Skater e Guitar Hero. Por que você acha que Tetris sobreviveu de forma ininterrupta por gerações?

Bem… esse é um grande mistério e eu não tenho uma resposta precisa para dar a você. A primeira coisa é que basicamente as outras propriedades estão relacionadas à técnicas modernas, hardware e coisas do gênero. Tetris tem como base elementos mais simples e pode rodar em qualquer plataforma ou sistema. É algo muito universal e por isso mesmo o torna muito popular. Outra coisa é que [Tetris] mexe muito com o nosso cérebro, o hardware muda com frequência e por isso temos que a toda hora mudar nosso raciocínio, isso é uma grande qualidade para um jogo manter-se popular por tanto tempo. Mais um elemento é seu conteúdo deveras abstrato: não é igual outros gêneros como, por exemplo, jogos de Terror, que têm força em seu nicho específico, mas que representa somente uma parcela de uma audiência total. Já Tetris é destinado à todos, especialmente ao público feminino, o que é bem importante.

É mesmo?

Sim, nos primeiros anos da indústria dos videogames a audiência por gênero girava em torno de 95% homens e 5% mulheres; Para Tetris, nosso publico era 55% homens e 45% mulheres. É um baita de um feito. Existem outros fatores [para usar como resposta], mas vamos ficar somente nesses.

Desde 2010 existe o Campeonato Mundial de Tetris, competição disputada a versão do Nintendo Entertainment System (NES), e você já esteve envolvido com o Torneio, inclusive com aparições virtuais…

Exato, eu já entreguei o troféu ao campeão!

Ah, ao Jonas Neubauer! Além do Jonas, tivemos outros vencedores, como Joseph Saelee e Michael Artiaga, o atual Campeão. Como você vê hoje os E-Sports? Você imaginava que hoje Tetris estaria nesse mesmo meio?

Sim, era um projeto em curso há muito tempo. Tetris é um jogo muito apropriado para estar no muito do E-Sport: é muito popular, tem uma marca forte, pessoas o reconhecem instantaneamente, é muito viciante e o público ama jogar. Basicamente é isso e tivemos experiências maravilhosas com as edições do torneio até agora. Bom, não temos muita variação do jogo, mas vou dizer qual é o segredo na minha opinião de tudo isso: o jogo acaba requerendo todos os seus recursos, toda a sua atenção, concentração e velocidade. Logo, quando jogado em modo multiplayer você não tem como ficar acompanhando o jogo do seu oponente, então cada jogador acaba focando em sua própria partida. Diferente de outros jogos em grupo, não há como você fazer uma estratégia de jogada que desfavoreça ou atrapalhe o adversário, prever o movimento do outro, alternar em ataque e defesa ou situações assim, muito presente na dinâmica do modo multiplayer. Quando chegarmos a um recurso em Tetris para que um jogador possa influenciar a jogada do rival, acho que estaremos por completo no mundo do E-Sport. Mas o primeiro passo foi dado, estamos conquistando mais público e temos a atenção de uma audiência expressiva. Hoje em dia é difícil manter a atenção de alguém por mais de 30 segundos, e a equipe do Campeonato Mundial de Tetris está fazendo um grande trabalho nesse sentido de conquistar e prender a atenção do público.

Tetris hoje faz parte de maneira expressiva de nossa cultura popular. Temos trailers amadores envolvendo Tetris, o jogo batizou uma condição clínica chamada O Efeito Tetris. Como você vê essas adaptações de Tetris fora do mundo dos jogos? Você já assistiu a alguma dessas produções feitas por fãs?

Além disso, existe o filme oficial do Tetris. Você conhece?

Sim, e além desse existem os caseiros, uns deles bem curiosos e engraçados…

Ah, mas esses são coisa menor. A produção original tem mais força. Mas, sim: é parte da nossa cultura e estou muito lisonjeado e existem situações nem divertidas como, por exemplo, existe o verbo Tetris em inglês, que significa arrumar de forma eficiente peças de algum produto em um espaço limitado. Está de fato em nossa cultura e acho que há nada de errado a respeito disso.

Antes tínhamos a dependência de jogar em consoles, sejam eles para a TV ou portáteis. Hoje podemos jogar Tetris até online. Como você vê a modernização da sua criação? Além disso, em contrapartida dos jogos longos e de mundo aberto como Grand Theft Auto, Tetris continua sendo um jogo de partidas predominantemente curtas…

Acho que é perfeito, pois temos uma indústria muito rica! Temos vários gêneros de jogos e todos são igualmente valiosos. É perfeitamente viável termos jogos mais divertidos e curtos e outros mais longos e densos. Faz parte da natureza da indústria e do seu desenvolvimento e na minha opinião, que pode ser considerada bem forte, videogames são a melhor forma de entretenimento, porque mantêm o espectador ativo no assunto. Não é igual assistir à televisão por horas e não poder interagir [com o programa transmitido], mas sim ter a chance de participar e também de praticar. Por isso, todos os gêneros dentro do mundo dos videogames são legítimos e bem-vindos.

Portanto, Tetris pelo visto ainda viver por muito tempo. Muito obrigado pela entrevista!

Muito obrigado pela oportunidade!

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Para mais informações sobre a Brasil Game Show 2023 e o mundo dos games em geral, fique ligado aqui na Torre de Vigilância!

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Conan, O Cimério vol.3 em pré-venda pela Pipoca & Nanquim

Já está em pré-venda o volume 3 da coleção Conan, O Cimério – Edição Definitiva pela Pipoca & Nanquim. Neste terceiro tomo, são compiladas as histórias Os Profetas do Círculo Negro, de Sylvain Runberg, Park Jae Kwang e Ooshima Hiroyuki, Inimigos em Casa, de Patrice Louinet e Paolo Martinello, e O Deus na Urna, de Doug Headline e Emmanuel Civiello, todas inicialmente publicadas na Europa pela Éditions Glénat.

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A coleção original conta com 14 volumes avulsos no total, sendo os oito primeiros já lançados pela P&N nos dois primeiros volumes da versão brasileira com quatro histórias cada. Dessa forma, a previsão é de apenas mais um volume para a coleção brasileira alcançar a europeia e ter na íntegra todas as aventuras da obra máxima de Robert E. Howard contadas pela ótica do Velho Mundo.

Para adquirir o seu volume basta clicar aqui!

Conan, o Cimério – Edição Definitiva Vol. 3 tem formato europeu de 23 x 31 cm, capa dura, 212 páginas coloridas em papel offset e uma galeria de extras com textos, ilustrações e esboços sobre a criação das histórias com tradução de Fernando Paz e previsão de lançamento para 28 de fevereiro de 2023.

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Corra para alcançar Easy Breezy

Muitas vezes nossas vidas se resumem a uma constante correria. Não raramente, corremos contra o tempo para trabalhar, estudar, pagar contas e todas as outras tarefas que encontramos como obstáculo para o nosso dia a dia e, assumindo função parecida aos de cavalos de jockey, acreditamos em nossas escolhas e saímos em disparada para cruzar as linhas que representam o alcance de nossas conquistas e apostas.

Da mesma forma, a editora Comix Zone agora também aposta na jovem quadrinista sino-italiana Yi Yang e traz seu quadrinho de estreia em nosso território: Easy Breezy, uma narrativa intensa e viciante como o ritmo frenético de nosso cotidiano.

Dois estudantes de ensino médio. Um, aluno inteligente e aplicado; outro, um valentão que na maior parte do tempo foge da aula para aplicar golpes com seu tio. Em situação comum nos ambientes escolares de todo o mundo, um seria o alvo favorito do outro. E, de fato, assim aparentava ser em Easy Breezy. Aparentava, mas não é.

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Precisando de dinheiro, Li Yu e seu tio encontram em uma van estacionada na rua a oportunidade perfeita de conseguir lucro. Para seu total azar, um garoto testemunha toda a ação enquanto tranquilamente saboreava seu lámen: Yang Kuaikuai, justamente o desafeto de Yu.

Sem ter escolha, Yu acaba arrastando Kuaikuai para dentro na van com medo de que seu arquirrival o denuncie e seguem em disparada, tal qual uma corrida de cavalos, acelerando pela cidade para vender a van e fugirem do motorista anterior, que parte em perseguição de todos. Para piorar a situação, pouco depois do início da corrida, percebem que o veículo contava com mais um passageiro: Yun Duo, garotinha que foi vítima de sequestro pelo motorista original e estava dormindo no banco de trás. Agora, os dois garotos e o senhor de meia-idade são procurados por mais uma atividade criminosa, que dessa vez não cometeram.

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Toda a trama é ambientava em Benxi, cidade natal da autora. Seu cenário, casas e prédios são baseados em sua memória de cidadã-nativa da região. Interessante para o leitor, pois temos aqui um cenário incomum no mundo dos quadrinhos e, sempre contando com sua abrangência, a narrativa gráfica mostra-se adaptável a qualquer cultura, narrativa ou condição geográfica, independentemente de onde vier.

A arte de Yi Yang mescla várias escolas diferentes de quadrinhos. Temos um pouco de mangá, de manhwa, comics… todas as suas influências são misturadas como em um liquidificador e servidas similarmente a uma vitamina com muitos ingredientes, porém que curiosamente pode-se perceber a presença de todos ao experimentar. Sua arte lembra principalmente a de Taiyo Matsumoto (Tekkon Kinkret, Sunny) e a velocidade com que narra sua história, contando com muita ação e onomatopeias que praticamente saltam para fora dos quadros, mostra o sincretismo de uma produção asiática no mercado europeu, onde a autora iniciou sua carreira.

A edição da Comix Zone é muito parecida com o que encontramos normalmente em mangás: formato A5, capa cartonada e papel offset. É o que basta, não é necessário luxo tampouco invenções para uma história de leitura tão rápida e despretensiosa. Seu objetivo principal é divertir e não ter um acabamento destoante dos demais.

Easy Breezy é uma grata surpresa pois passa longe de ser mais um quadrinho asiático (ou seria europeu?) dentre tantos que enchem nossas bancas e livrarias. Seu elemento mais presente foge dos mangás ou manhwas mais tradicionais e sua direção versa ao underground da mesma região. Foi dada a largada, prepare-se para correr e ler mais esse lançamento o quanto antes ou chegará atrasado.

 

Easy Breezy
Yi Yang (roteiro e arte)
Fernando Paz (tradução)
Comix Zone
Capa cartonada
184 páginas
15 x 21 cm
R$74,90
Data de publicação: 09/2022

 

 

 

 

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A organização de Julie Doucet só é possível através do caos

Formato pouco maior que A5, capa cartonada, papel pólen… bem longe dos formatos de luxo que hoje entopem o mercado de HQs brasileiro. Seria então esse, um projeto aparentemente tímido da editora Veneta, a forma correta de apresentar ao Brasil a mais influente quadrinista norte-americana e atual vencedora do Grand Prix de la Ville d’Angoulême?

Poderia ter sido antes, muito antes. A ideia inicial do editor Rogério de Campos consistia em estrear Julie Doucet no Brasil em 1999 dentro de Comic Book – O Novo Quadrinho Norte-Americano, antologia feita especialmente para o Brasil que introduziu ao mercado nacional quadrinistas como Daniel Clowes, Peter Bagge, Adrian Tomine e Joe Sacco. Era um novo mundo que chegava até nós: além de ser o primeiro título da editora Conrad voltado às livrarias, tais autores de editoras como Fantagraphics e Drawn and Quaterly finalmente pareciam estar ao nosso alcance.

IMAGEM: veneta.com.br

A premissa era verdadeira, mas não em sua totalidade: Sacco chegou até nós, assim como Clowes, Chester Brown e encontraram outros que já estavam, como os irmãos Hernandez e Robert Crumb; outros, só fizeram uma visita. Por que tantos, assim como Doucet, só vieram depois, uns nunca mais voltaram e outros sequer chegaram? A resposta é bem mais simples do que se imagina: tal mercado norte-americano é muito extenso e ao mesmo tempo específico demais para somente uma ou outra editora brasileira explorar. Por isso mesmo, somente em tempos recentes a situação ficou mais favorável para nós, com mais editoras dividindo uma tarefa hercúlea e conquistando definitivamente as livrarias e plataformas de financiamento coletivo.

Passados os obstáculos, chega até nós uma obra com três histórias de duração variada entre 6 a 50 páginas cada, publicadas originalmente em Dirty Plotte, um fanzine que depois originou a revista homônima em um total de 12 edições. Aqui, a autora abre totalmente sua vida pessoal ao leitor, com experiências abrangendo sua primeira relação sexual com um total desconhecido, convivência com amigos nos tempos de Universidade e, principalmente, a vida em Nova York com um namorado tóxico e mal sucedido financeiramente que tenta controlar sua vida, ao mesmo tempo que não faz cerimônias para aceitar que ela pague suas contas.

IMAGEM: veneta.com.br

Os intempéries também dão espaço a situações memoráveis que podem até passar despercebidos: ao narrar encontros Art Spiegelman, Glenn Head, Leslie Stenberg, Kaz, John Porcellino e tantos outros,  desfila-se diante de nossos olhos os embriões que deram origem justamente ao até hoje considerado Novo Quadrinho Norte-Americano, crescendo até formar as já citadas Fanta e D&Q e, por extensão, trouxeram o conteúdo necessário para dar a luz justamente à antologia montada por Rogério de Campos, que até hoje bebe dessa fonte em vários lançamentos da Veneta e influencia outras editoras do nosso mercado.

Apesar do expressivo espaço temporal até finalmente sair no Brasil, Meu Diário de Nova York passa longe de ser uma obra datada. O pioneirismo da autora reflete-se inclusive em sua mais recente conquista: as três histórias que compõem o volume foram produzidas entre 1993 e 1998, período que, até então, agraciou apenas quadrinistas homens com o Grand Prix d’Angouleme. Florence Cestac, a primeira mulher a ser premiada, teve a honraria concedida em 2000 e, desde então apenas Rumiko Takahashi (2019) e Julie Doucet (2022) foram reconhecidas, totalizando apenas três mulheres em um total de 55 premiados, discrepância que inclusive trouxe crise ao festival em um passado recente.

Mesmo, à primeira vista, parecendo simples, a arte de Doucet tem particularidades interessantes, como o uso constante de sombras e, principalmente, a impressionante quantidade de itens espalhados pelos cenários, fazendo destes ambientes como os livros infantis Onde Está Wally? e a comparação não é à toa: cada item espalhado pelo chão, mesa, sala, quarto, banheiro e etc. está milimetricamente presente em cada um dos quadros da cena, seja uma garrafa de cerveja, colheres, instrumentos de ilustração até os mais interessantes, como discos, livros e quadrinhos, nos colocando cada vez mais antenados com o mundo da autora.

IMAGEM: veneta.com.br

 

Dessa forma, apesar de cada uma de suas histórias sempre apresentar uma desorganização absoluta, o louvável empenho da quadrinista em retratar fielmente cada cena nos deixa, curiosamente, mais à vontade a cada página que avançamos, nos familiarizando e encontrando gostos em comum à sua bagagem cultural. Há quem diga que quadrinhos são, mesmo quando biográficos, ficção e fantasia. Se assim for, a fantasia de Doucet é ela mesma e suas desventuras imersas em sua desorganização organizada.

Apesar do recente lançamento de Time Zone J, a autora havia anunciado sua aposentadoria dos quadrinhos há quase duas décadas. Se o mais recente lançamento representará uma atualização no atual status, é necessário de mais tempo para saber, porém o que já foi feito traz para tudo que veio depois no mundo dos quadrinhos um legado mostrando que é possível alcançar seu espaço na nona arte, não importando seu gênero, origem, condição financeira e formato de publicação. Há uma Julie Doucet em cada um que tenta fazer quadrinhos em sua mesa suja e desorganizada.

Esqueça o luxo, a arte mais trabalhada ou o roteiro complexo, porque nada disso de forma alguma é estritamente necessário. No fim das contas, tudo que Julie precisa é de uma vida conturbada, materiais para desenho encontrados em qualquer papelaria e uma mesa bagunçada. Não fosse assim, não seria ela, não seria verdadeira, não seria honesta.

Meu Diário de Nova York
Julie Doucet (roteiro e arte)
Cris Siqueira (tradução)
Rogério de Campos (diretor editorial)
Rômulo Luis (editor assistente)
Veneta
Capa Cartonada
104 páginas
17 x 24 cm
R$ 44,90
Data de publicação: 06/2022

 

 

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Balada Para Sophie toca cada um de nós

Ninguém alcança a glória sem antes passar pelo inferno.

Não conheço o autor, não encontrei os devidos créditos e o único registro que tenho da citação acima foi em uma chamada televisiva para o longa-metragem Whiplash – Em Busca da Perfeição quando estreou no canal de TV à cabo HBO.

Eu poderia escolher outra frase para iniciar? Sim.

Uma boa opção seria algum autor célebre daqueles que são compartilhados à exaustão nas redes sociais? Sem dúvida.

Então por que ignorei todas as opções pomposas e fui parafrasear um (suposto) anônimo? Porque eu quis.

Apesar de tudo, minha escolha não é tão vaga quanto parece. Whiplash é um filme sobre um garoto que sonha em ser um grande baterista, mas para isso precisa vencer seu professor e seus métodos de ensino, digamos, agressivos. Aprender a tocar um instrumento musical não é fácil como faz parecer os registros fonográficos ou apresentações ao vivo, seja em um couvert artístico de restaurante ou em megafestivais. É preciso tempo, paciência, horas, dias, semanas, meses e anos. Eu mesmo já tentei e, bem… quem sabe outro dia tento novamente senão terei que rivalizar com o Chatotorix.

Todos esses percalços rendem ótimos histórias. Por isso mesmo, em Balada Para Sophie, temos a saga da repórter Adeline Jourdain para entrevistar o agora idoso Julien Dubois, célebre pianista cuja vida, repleta de intempéries, já rendem grandes sinfonias por si só.

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Desde pequeno, Dubois é forçado por sua mãe a ser um grande músico. Dessa forma, é submetido a horas de estudo e treino sob a guarda de um rígido professor, representado graficamente como um demônio.

O tempo passa, o período da 2ª Guerra Mundial abate a Europa e a genitora de Dubois torna-se uma “boa samaritana” para os nazi-fascistas que invadem sua região. O tratamento privilegiado dado pela dama aos combatentes de extrema-direita invade suas vidas até sua casa, sua sala, seu quarto, sua cama. Dessa forma, o jovem pianista logo cedo encontra-se sozinho no mundo e sem rumo.

As metas de Dubois mudam a partir do momento em que descobre que tem um, de certa forma, rival: François Samson, outro jovem pianista cujas execuções demonstram o que seria a perfeição alcançada na arte da música. Assim, o que Dubois mais quer é se tornar Samson, não só na precisão musical, mas como um todo.

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A obsessão de Dubois por Samson é tão expressiva que até a esposa do segundo é tomada como amante pelo primeiro. O objetivo de Dubois é ter não só o talento de Samson, mas sua vida. Vida que revela-se repleta de surpresas, inclusive envolvendo a jovem Adeline, que inicialmente aparentava apenas escrever um artigo a respeito do pianista.

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Toda a trama, apesar do conteúdo ora delicado, ora pesado, possui como principal artifício a deslumbrante arte de Juan Cavia, que une seu traço ao uso de cores extremamente preciso e aprazível aos olhos de quem lê o texto de Filipe Melo. Assim, o roteiro e arte regem a narrativa tal qual as Variações de Goldberg mesclando entre impacto e delicadeza.

A edição brasileira dispensa comentários. Trata-se de um conjunto pensado nos mínimos detalhes, como é uma canção erudita. Inclusive, nos créditos finais, é possível escanear um código que leva o leitor ao programa de música por streaming Spotify para ouvir a trilha sonora apropriada para a obra. Além disso, temos capa dura, papel offset, lombada ovalada e marca-páginas em forma de fita. Tudo como uma regência orquestrada.

Portando, Balada Para Sophie é, acima de qualquer outro rótulo, uma experiência de efeito sinestésico. De todas as  obras da dupla Melo/Cavia publicadas no Brasil, Balada é incontestavelmente a melhor, e é bem provável que outras publicações dos mesmos autores atravessarão a Europa, vindas de Portugal, nosso país-irmão, até o Brasil. Esteja atento a todos os detalhes, pois cada nota aqui presente constrói sua canção como um todo.

 

Balada Para Sophie
Filipe Melo (roteiro)
Juan Cavia (arte)
Michele A. Varturi (tradução)
Pipoca e Nanquim
Capa dura
324 páginas
17 x 25 cm
R$99,90
Data de publicação: 06/2022

 

 

 

 

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Um processo fora da linha e o resultado é além da compreensão

Na terceira obra do quadrinista franco-belga Marc-Antoine Mathieu publicada no Brasil, sendo a segunda da mesma série, a editora Comix Zone dá sequência ao inovador mundo de Julius Corentin Acquefacques que, a cada nova aventura publicada, surpreende o leitor com novas possibilidades de como se pode contar uma história em quadrinhos.

O Processo é, na verdade, o terceiro tomo da série Julius Corentin Acquefacques, O Prisioneiro dos Sonhos a ser publicado originalmente, no já distante ano de 1993. Por uma sacada editorial, a Comix Zone decidiu momentaneamente pular o “volume dois” para provar que a leitura de cada capítulo é independente e não faz diferença da ordem escolhida. Por exemplo: O leitor pode perfeitamente começar a leitura por O Processo e depois passar por A Origem que não haverá perda no entendimento.

Neste volume, a narrativa inicia filosofando a respeito de que, assim como em nossas vidas, um pequeno mal funcionamento de qualquer engrenagem pertencente a um objeto muito maior (no caso, um relógio), pode desencadear em uma mudança total na ordem de acontecimentos de todas as situações subsequentes. Devido à pequena falha de apenas uma peça no relógio de Julius, o protagonista acaba se adiantando para mais um dia de trabalho. Durante sua rotina matinal, acaba se deparando com uma duplicata de si mesmo que ainda estava dormindo em sua cama. A confusa situação, ocorrida graças a míseros 26 minutos de diferença, não impede “Julius 1” de ir trabalhar ao passo que “Julius 2” tenta o impedir uma vez que percebe que foi justamente um experimento em seu local de trabalho que desencadeou todo o processo, como o próprio título da obra sugere.

Assim como já havia feito em A Origem e também em Deus em Pessoa, Marc-Antoine Mathieu provoca o leitor constantemente, inclusive ao dar a impressão que O Processo seria um tomo inferior ao “anterior”. Que se explique: A leitura começa boa, mas a inquietação de que o volume “anterior” era melhor é constante. O leitor busca a cada momento aquela pitada de inovação que parece não chegar. Mais do que isso: a leitura de O Processo parece totalmente desconexa em várias partes. Porém, tudo não passa de uma peça que foi pregada, e quando já estava quase desistindo, o leitor é surpreendido.

Em mais uma sacada genial de Mathieu, o autor ousa ao repaginar totalmente o corte de uma HQ já na primeira página da parte 5, intitulada Infrasonho ou Ultrarrealidade. Assim como em A Origem, o corte de página é refeito, dessa vez adotando um recorte circular como um redemoinho, mostrando Julius saindo da história em que estava e indo parar em um limbo.

Assim, todas as pessoas que pareciam soltas se encaixam em cada quadro que se segue. Tudo agora faz sentido e dá a vontade de querer se pedir desculpas por parte do leitor pela inicial desconfiaça. De minha parte, peço que Mathieu me perdoe por outrora pensar que o mesmo me decepcionaria e que dessa vez Julius Corentin Acquefacques não teria uma aventura digna de sua fama. Desde o começo a dica estava já na capa e mesmo debaixo de nosso nariz não prevemos a sacada.

A edição da Comix Zone segue o mesmo padrão da anterior em número de páginas, papel, capa dura, formato e, principalmente, nos cortes de páginas inovadores quando assim é necessário. Em A Origem tivemos um quadro recortado no meio de uma página e agora temos um redemoinho em forma de HQ. As sacadas do autor são geniais, mas também deve-se reconhecer a coragem da editora em adotar tal projeto de forma fiel, não só porque se não fosse exatamente desse jeito a história não faria sentido, mas também levando em conta os altos custos desse tipo de produção, ainda mais levando em conta a crise mundial que temos em relação à disponibilidade de papel

Uma ressalva que deve ser feita é que não era necessária a numeração de páginas, visto que a edição original já a possui. Mais do que isso: a partir da página 36 da numeração original (ou 38, com a renumeração da edição brasileira) a numeração desaparece para dar a ideia de que o personagem está fora da história em quadrinhos, mas essa impressão parcialmente some a partir do momento em que há duas numerações diferentes e uma persiste. Uma pena.

Apesar do deslize, O Processo continua sendo uma obra-prima digna de nota máxima e que vale cada centavo investido. É praticamente impossível não colocar a saga como um dos lançamentos do ano e, ao meu ver, a melhor HQ publicada no Brasil em 2022 até o momento. De acordo com a própria CZ, o plano é lançar dois volumes ao ano da série que, ao todo, tem sete. Mesmo entendendo perfeitamente a decisão editorial, fica aqui o desejo que esta seja revista porque, a cada capítulo lido, o leitor fica cada vez mais ávido para saber como o seguinte o surpreenderá.

 

Prisioneiro dos Sonhos Vol. 2: O processo 
Marc-Antoine Mathieu (roteiro e arte)
Fernando Paz (tradução)
Comix Zone
Capa dura
48 páginas
28,5 x 20,5 cm
R$72,50
Data de publicação: 07/2022

 

 

 

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Deste Drácula, não há do que ter medo

Em seu 8º título publicado na que já é informalmente conhecida como “Biblioteca Alberto Breccia”, a editora Comix Zone traz ao Brasil o título Drácula – Dracul, Vlad? Bah… que adapta um dos mais famosos personagens do terror mundial de forma um tanto pitoresca e imprevisível, bem diferente de inúmeras outras versões disponíveis em incontáveis mídias.

Dividido em cinco capítulos publicados originalmente entre 1984 e 1985 na revista Ilustración + Comix Internacional, temos aqui uma versão escrachada do personagem inspirado em Vlad, O Empalador. O Drácula de Breccia é nada mais, nada menos que um total sarro do início ao fim, já a julgar em sua capa que apresenta um protagonista desajeitado e salivando tal qual um recém-nascido.

Aqui, Drácula enfrenta uma versão (posteriormente censura no referente ao seu logo) do super-herói popularmente conhecido como O Homem de Aço, tem medo de uma necessária consulta ao dentista, sofre por saudades de sua amada, sente na pele o assustador autoritarismo em tempos de ditadura e suas desumanas consequências… em cada página que se avança vemos um homem-vampiro cada vez menos fantástico e mais humano, sendo mais uma vítima dos problemas corriqueiros de nossa contemporaneidade e vivendo suas consequências como qualquer cidadão.

IMAGEM: pinterest.com

A arte de Breccia segue sua fase anteriormente apresentada em Era Outra Vez… e que dominou seus últimos anos de carreira, com seu traço psicodélico e cores berrantes que em nada lembram os tempos de Sherlock Time, Mort Cinder, Perramus, entre outras. De forma alguma sua mudança de estilo diminui seu Drácula, muito pelo contrário: por se tratar de uma obra mais voltada para a sátira, o traço mais abstrato se encaixa ainda melhor na ideia proposta, afinal de contas, humor não é elemento de maior presença quando se lembra de suas principais obras e, nessa publicação, foi a melhor decisão e isso é visto em cada capítulo.

IMAGEM: amazon.com.br

Falando em capítulos, apesar do conteúdo ter sua notória qualidade, é uma pena a edição inteira ser devorada em pouquíssimo tempo de leitura: desconsiderando o prefácio e material extra, temos aqui, ao todo, 50 páginas de quadrinhos que, por sua característica proposta de não conter caixas de texto ou diálogo, podem ser lidas em poucos minutos. Dessa forma, o leitor deve ser advertido que, o custo/benefício desta publicação não é dos melhores caso o interessado esteja com baixo poder de compra, inclusive sendo recomendado outros títulos do mesmo autor já lançados pela própria Comix Zone. Drácula serve melhor para aqueles que já estão mergulhados no universo de Breccia, e não marinheiros de primeira viagem.

IMAGEM: amazon.com.br

A edição da Comix Zone segue o mesmo padrão das anteriores, assim reforçando o que já foi explicitado a respeito desta ser integrante de uma, no Brasil, informal coleção. Que se explique: a editora Fantagraphics Books, atual responsável pelos títulos do autor em nos Estados Unidos, oficialmente considera seus volumes parte de uma coleção intitulada The Alberto Breccia Library, cujos títulos quase todos já foram publicados recentemente no Brasil em diferentes editoras, faltando apenas Evita – Vida y obra de Eva Perón, que por lá tem previsão de sair em 2023. Sendo justo, somando todos os lançamentos recentes, incluindo os do catálogo da Comix Zone, nosso acervo de títulos de Breccia à disposição é bem maior se comparado ao estadunidense.

Não tenha medo em desvendar os mistérios que cercam o Drácula de Alberto Breccia, ainda mais porque, na verdade, não encontrará nenhuma dose de pavor, e sim de muitas risadas.

 

Drácula – Dracul, Vlad? Bah..
Alberto Breccia (roteiro e arte)
Comix Zone
Capa dura
88 páginas
28,5 x 21 cm
R$89,90
Data de publicação: 06/2022

 

 

 

 

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Lute para não cair na Obsolescência Programada

Valor que surge mais de uma vez numa distribuição de frequência

Conforme registrado no dicionário Michaelis, a definição acima é um dos significados aceitos para a palavra moda. Entretanto, é preciso admitir que tal sentido é raramente usado em nosso cotidiano, ficando reservado quase que exclusivamente à exercícios em livros e provas de matemática. Não é à toa que esta é provavelmente a menos conhecida acepção do substantivo feminino em questão, e para chegar à mesma, é necessário passar por outras seis explicações a respeito do mesmo vocábulo.

A moda, em conceito popular, remete a ideia de que vários indivíduos estejam usando, agindo, falando ou até mesmo praticando a mesma ação, tornando-a repetitiva em nossas vidas. Pois para alívio dos leitores de histórias em quadrinhos, o que vemos em A Obsolescência Programada dos Nossos Sentimentos, disponível em nosso mercado pela Pipoca e Nanquim, não passa sequer perto de ser redundante.

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Apesar dos pesares, podemos declarar sem medo de errar que tanto Zidrou quanto Aimeé de Jongh estão na moda por aqui. Em um surpreendente ritmo, a quadrinista holandesa natural de Roterdã em menos de um mês teve dois títulos lançados no Brasil e com um terceiro já anunciado previsto para agosto, cada um dos três sob responsabilidade de uma editora distinta. Mesmo que em um intervalo mais espaçado, também podemos considerar o mesmo ao tratar do prolífico roteirista belga: desde 2017, cinco títulos do autor desembarcaram em nossas livrarias e lojas especializadas, seja aquecendo nossos corações com as férias da família Falderáut ou surpreendendo meio mundo com a anunciada biografia de um pintor catalão do século XIX. Assim, um curioso paralelo pode ser traçado entre a dupla criativa e os dois protagonistas presentes na narrativa gráfica aqui idealizada.

Ulisses e Mediterrânea são dois franceses de meia-idade. Ele, um viúvo recém demitido de seu emprego como carregador de caminhões mudança e que envergonhadamente satisfaz seus desejos carnais com uma prostituta bem mais jovem; ela, uma ex-modelo que hoje administra uma queijaria, acaba de perder a mãe e a cada dia que passa se arrepende de não ter vivido tudo que poderia, ao passo que a idade vai avançando.

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Em comum, é vista a notória solidão que assola a vida dos dois, que a veem cada vez mais se escorrer entre seus dedos indo de encontro ao dia em que não estarão mais presentes entre os vivos. Influenciados pela sociedade a qual os arrodeia, ambos pensam que estão ultrapassados, e que nada mais têm a acrescentar nem sequer a si mesmos. Tudo isso muda quando Mediterrânea tem uma consulta marcada com o Doutor Varennes que, por coincidência, é filho de Ulisses. A partir de então, duas vidas que pareciam caminhar para um fim encontram um novo começo.

Da mesma forma que nossos equipamentos eletrônicos se tornam ultrapassados cada vez mais rápido, os seres humanos também estão sofrendo do mesmo mal. Nos enchem a cada dia de etiquetas com prazos de validade, como se tivéssemos um limite de idade para estudar, trabalhar, conhecer pessoas, se apaixonar, namorar, casar, viver… Mas, assim como Ulisses e Mediterrânea, não somos obrigados a seguir a moda. Cada um tem seu tempo de alcançar suas metas e se prender aos padrões sociais traz sério risco de não viver para si mesmo, e sim para os outros, tirando o merecido disfrute que vem com nossas conquistas.

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O único problema de Obsolescência é que, do capítulo 3 em diante, é muito previsível o que se esperar do enredo. Ao final da narrativa, nos surpreendemos uma novidade até então impensada e que não se encontra registro na literatura médica, mas a licença poética dá um ar de renovação à trama. A história de encerra com a mesma exclamação com que se iniciou, agora com significado totalmente oposto, como um paradoxo entre a vida e a morte.

Editorialmente, o trabalho da Pipoca e Nanquim permanece irretocável. Não há nada ao que dizer sobre o tratamento gráfico à publicação: capa dura, papel couché que ressalta as cores vibrantes, tradução e revisão… talvez apenas alguns considerem estranha a escolha de traduzir os versos das canções presentes, uma vez que muitas vezes partes musicais são deixadas de forma ipsis litteris, mas é necessário lembrar que estas originalmente são em francês, idioma com menor número de falantes no Brasil, o que traria difícil entendimento ao público geral e assim faria a história perder parcialmente seu sentido, uma vez que os versos condizem com o ponto em que a trama está quando são apresentados.

Se alguém um dia dizer que seu tempo passou, deixe essa pessoa falando sozinha.  A história de Ulisses e Mediterrânea prova que nunca é tarde para viver e desistir nunca será uma boa opção.

 

A Obsolescência Programada dos Nossos Sentimentos
Zidrou (roteiro)
Aimeé de Jongh (arte)
Pipoca e Nanquim
Capa dura
148 páginas
23 x 15 cm
R$59,90
Data de publicação: 04/2022

 

 

 

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A Origem que não se sabe de onde vem nem até onde vai

Em sua segunda aposta na bibliografia referente ao mesmo autor, editora Comix Zone retorna ao metafísico mundo do premiado quadrinhista francês Marc-Antoine Mathieu com A Origem, a primeira parte da epopeia de Julius Corentin Acquefacques, o Prisioneiro do Sonhos. Dessa vez, temos uma obra que logo de cara se questiona seu formato e número de páginas da edição nacional, mas pouco tempo depois o que se vê é que quem subestima o volume pelas aparências somos nós, os leitores.

Você realmente tem controle sobre si mesmo e suas atitudes? Pensa que é dono de seu próprio destino ou há alguém superior na hierarquia das ações responsável pelo caminho a ser trilhado? No campo espiritual, diferentes povos e culturas têm representações das mais diferentes formas, mas em todas elas é comum acreditar em uma entidade superior que religiosamente decide sobre nosso futuro, como o próprio Mathieu já refletiu em Deus em Pessoa. Passando pelo campo da vida real, durante diversas fases de nosso desenvolvimento somos apenas subordinados, comandados por nossos genitores, educadores, chefes… portanto, nossa liberdade é muito relativa e, por incrível que pareça, em determinados casos é melhor que assim seja para que liberdade não entre em conflito com libertinagem.

Julius é um funcionário público solteiro com sonhos confusos que vive em uma quitinete e trabalha no Ministério do Humor, responsável pela aprovação das piadas e pegadinhas a serem usadas pela sociedade. Certo dia, recebe em seu escritório uma página em quadrinhos de uma história intitulada A Origem, cujo significado é desconhecido em seu mundo.

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Além disso, a página tem curiosamente como protagonista o próprio Julius. Após a estranha surpresa, Julius continua a receber outras páginas da mesma história, devidamente numeradas e contêm situações referentes ao passado, presente e até futuro do protagonista e pessoas próximas a si.

A edição nacional, apesar de também possuir o genial artifício vistos nas páginas 37 e 38 e seguir um alto padrão com capa dura, papel couché, páginas de guarda, mesma fonte de texto usada em Deus em Pessoa e etc., inicialmente assusta por conter apenas um tomo de uma saga publicada desde 1990 e que, até o momento, conta com sete volumes lançados em seu país de, ironicamente, origem. Dessa forma, é natural que se questione porque a Comix Zone não decidiu por compilar mais de um capítulo por edição, assim diluindo os custos de produção e venda. A resposta é simples, apesar de incomum: um número maior de páginas por edição prejudicaria a proposta principal da história, dada a metalinguagem oferecida pelo autor na narrativa. Tais dúvidas renderam inclusive um vídeo no canal oficial da editora, explicando exatamente o porquê de tudo isso.

Assim, a conclusão da leitura de A Origem deixa o leitor já ávido para a leitura do próximo capítulo da saga, que inclusive já foi anunciado pela editora brasileira e tem previsão de lançamento para julho de 2022. Intitulado O Processo, este é na verdade o terceiro capítulo da saga, fazendo propositalmente a a editora brasileiro pular o capítulo dois, batizado originalmente de La Qu…, assim não seguindo a ordem original de publicação. Mais uma vez a surpresa nos acerta em cheio: a saga não obedece necessariamente uma ordem cronológica de leitura, por isso mesmo cada parte pode ser publicada quando for, independente da sequência original.

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Temos uma obra altamente recomendada para quem procura por novas experiências, pois é exatamente o que aqui será encontrado, tal qual em narrativas gráficas como Imbatível, de Pascal Jousselin ou Building Stories, de Chris Ware. É esperar para ver o que mais nos espera na intrigante jornada de Julius Corentin Acquefacques.

Prisioneiro dos Sonhos Vol. 1: A Origem
Marc-Antoine Mathieu (roteiro e arte)
Fernando Paz (tradução)
Comix Zone
Capa dura
48 páginas
28,5 x 20,5 cm
R$72,50
Data de publicação: 06/2022

 

 

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A Cidade Pequenina que se agiganta

Casinhas amontoadas uma ao lado da outra, cadeiras para fora no intuito de observar o movimento da rua, janelas abertas à vista dos olhos de curiosos, brigas de casal que rapidamente viram o assunto favorito da última fofoca municipal, ruas pintadas para eventos esportivos e comemorações religiosas, quermesses com pratos típicos e seus jogos fraudulentos, comprar fiado na mercearia mais próxima, morrer de tédio em dias que se arrastam sem nada para fazer… nascer e crescer em cidades do interior, principalmente as sem conturbação situadas nas entranhas do Brasil dá aos seus habitantes uma visão totalmente diferente do que é o  nosso país. Em mais um título original da editora Pipoca & Nanquim e novamente bem apadrinhado por um prefácio escrito por Robert Crumb, Camilo Solano retorna à colaboração com seu irmão Aldo para compartilhar com seus leitores como foi e é a vida interiorana em que foram inseridos desde os seus primeiros dias de vida e que, entre idas e vindas pelo território nacional, se estende até os dias atuais.

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Em um olhar distante, São Manuel seria apenas mais um dos 87% municípios do Brasil com menos de 50 mil pessoas residentes, fazendo à priori o antonomásico título da publicação não ser por acaso, mas graças a cada história contada de forma independente em seus capítulos, o pequenino cresce e traga quem as lê para uma identificação bem próxima aos causos apresentados: toda cidade tem alguém nascido lá que se torna famoso ao ambiente exterior, o velho rabugento e encrenqueiro, a fofoqueira, a rádio local e muitas vezes comunitária, a cultura do imigrante que resiste por gerações e etc. Porém, a forma única escolhida pelos dois irmãos de narrar suas histórias destaca São Manuel no mapa de uma forma que não se esperava para cidades em que, na maioria dos casos, é muito mais difícil ter acesso a uma boa variedade de histórias em quadrinhos, justamente a mídia que agora coloca seu município em evidência.

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Assim como em O Cortiço, representação máxima do naturalismo de Aluísio Azevedo, Cidade Pequenina demonstra que não é necessário um personagem principal para tocar uma obra. Aqui, o cenário é o mais importante, e não os seres que o rodeiam, fazendo assim cada componente ter a sensação de pertencer a uma távola redonda, onde cada um possui a mesma importância na história.

Ainda no campo literário, cada um dos 19 capítulos pode ser lido em qualquer ordem que o leitor desejar: não há continuidade e a experiência primordial não será quebrada, coincidentemente como foi a ideia de Graciliano Ramos para Vidas Secas, outra obra interiorana. Causos que facilmente cairiam no esquecimento, cenários que passam batido aos olhos menos atentos e pessoas “conhecidas” que “ninguém sabe quem são” brotam com tremenda facilidade na colaboração familiar dos dois irmãos quadrinistas.

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Dentre histórias com número variado páginas, destacam-se as aventuras inseridas em Butina, O Caminhão de Banha, Viva o Delton, Aniversariante do Dia, Vandi e a já clássica A História da Bolachinha preta, em que os próprios autores assumem o papel de personagens e investigam um mistério envolvendo a estranha relação de um célebre artista local com um longa-metragem estrelado por Jerry Lewis.

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Apesar de ser uma publicação inédita, todos esses capítulos fazem o leitor puxar da memória algum caso conhecido em seu particular que lembra as mesmas situações. O desconhecido é muito mais conhecido do que aparenta ser. A colaboração familiar conta com a maioria dos capítulos desenhados por Camilo, mas que curiosamente já não é de hoje: ambos já haviam produzido a quatro mãos Badida, publicado de forma independente em abril de 2017 e que conta com o protagonismo do personagem homônimo reprisado no já mencionado capítulo Aniversariante do Dia.

Cidade Pequenina recupera a boa prosa do cotidiano tão característica de Camilo que, desconsiderando sua recente Graphic MSP, teve uma pouco compreensível experiência narrativa em O Fio do Vento. Hoje desenvolvendo de forma cada vez mais expressiva seu traço em aquarela, Camilo mostra que suas cores digitais também expressam muito bem o que tem a dizer, desempenhando sua arte de forma satisfatória.

Não há como não se apegar à nostálgica ideia proposta em Cidade Pequenina. Mesmo quem viveu e vive desde sempre em grandes cidades se entrega à vida simples e suburbana oferecida aqui pelos irmãos Solano. Pegue uma cadeira ou ponha uma rede na varanda de casa, sinta o vento soprando dos montes ao longe que cercam sua residência e aproveite o que o Brasil de fato é.

Cidade Pequenina
Camilo e Aldo Solano (roteiro e arte)
Pipoca e Nanquim
Capa dura
252 páginas
29 x 22 cm
R$89,90
Data de publicação: 10/2021