Categorias
Tela Quente

Mank: Uma perspectiva familiar do cinema

“Você não pode captar a vida inteira de um homem em duas horas. No máximo pode deixar uma impressão.”, responde Mank ao editor John Hauseman (Sam Troughton) explicando as dificuldades sobre criar um roteiro tão complexo que captasse a essência da vida de um homem. Além de servir como uma contestação interessante e verdadeira, a fala reflete um pontual ato de metalinguagem de seu roteirista Jack Fincher, porque este próprio está tentando deixar a impressão sobre uma figura imprescíndivel para uma das mais revolucionárias obras da história do cinema. No caso, Herman J. Mankiewicz.

Usar a expressão “a mais revolucionária das obras…” pode soar ultrapassado e, realmente, demonstra certa limitação na tentativa de descrever e dar a devida importância à obra. Contudo, o uso da expressão em relação ao filme em que estamos referenciando não é má ideia, pelo contrário, estabelecer Cidadão Kane (1941) como um dos mais revolucionários filmes da história do cinema é responsabilidade de todos que prezam pela inventividade e criatividade artística. E de criatividade, o filme escrito por Herman e o lendário Orson Welles – que também dirige – entende muito bem. Foi o ponto onde a estrutura ímpar do roteiro excedeu as páginas e, através da montagem e edição perspicazes, além da concepção visual de Orson, fizesse com que os elementos básicos e complexos, dos diálogos às descrições de cena, fossem compreendidos e revelados na tela em excelência, resultando na história que marcaria a indústria americana para sempre.

O roteiro de Jack Fincher, pai do diretor David Fincher que faleceu antes de ver seu projeto ir às telonas, imprime o seu próprio vasto conhecimento sobre os bastidores da produção de Cidadão Kane, desde os processos criativos dos idealizadores ao contexto político em que a indústria estava inserida. Mank é, antes de tudo, um material de alta significância histórica, tanto política quanto cinematográfica. A história não só investiga as tramas pessoais de Herman, mas também trata de figuras importantes no meio da época, como donos de grandes estúdios e celebridades que tomariam seu caminho rumo ao estrelato posteriormente, estes que compuseram a classe hollywoodiana por longos períodos. Há de reconhecermos, assim como a vasta quantidade de figuras retratadas, o contexto em que a trama se insere; no quesito sócio-político, a indústria estava sofrendo as consequências decorrentes da Grande Depressão, enquanto na produção de filmes em si,  havia a crescente produção de filmes B por conta do orçamento limitado dos estúdios e a busca por formas mais baratas de manter a produção e a lucratividade.

Em pouco mais de um parágrafo, fica evidente o conteúdo que Jack transborda nas páginas e sua vasta sabedoria sobre os mecanismo e as relações no cinema americano. Contudo, a quantidade excessiva – embora fundamental – de personagens que aparecem na vida de Mank, além das inúmeras particularidades, tanto da época quanto do próprio processo genuíno de idealização do filme, tornam a narrativa demasiadamente complicada e de difícil acompanhamento em inúmeras passagens – e a direção de Fincher não alivia tampouco. Dessa forma, Mank se assemelha mais a um filme para se exibir aos apaixonados por cinema – estudantes e afins – do que àqueles que buscam obras próximas à filmografia marcante do diretor, mais investigativas e, por que não, inclusivas. E outro tropeço que deve ser mencionado é a falta de critérios para escolher os caminhos a serem seguidos, sendo que o maior foco deveria ser a vida e os conflitos do roteirista, mas que perdem espaço e força para os tantos contextos que o roteiro se propõe a retratar.

A vida de Mank nunca foi abordada de forma devida, enquanto Orson Welles sempre foi mais apreciado e paparicado pela mídia. Embora com grande prestígio dentro dos estúdios, conhecido só pelo nome por muitos, Mankiewicz tinha sérios problemas pessoais. Os vícios envolvendo bebidas alcoólicas o colocaram em uma situação de extrema vulnerabilidade e acarretaram em diversos problemas de alcoolismo, inclusive sua própria morte, que ocorre alguns anos após os acontecimentos retratados. Além do vício citado, a personalidade de Mank não era fácil de se lidar idem, havia certa soberba e arrogância que ficavam mais nítidas quando se relacionavam ao seu trabalho escrito. Confrontava diretamente os chefes dos estúdios e tinha uma postura profissional por vezes negligente. Esses problemas na vida de Mank, todavia, não comprometiam sua habilidade única na hora de escrever e trabalhar nos roteiros. Sua fama em Hollywood foi construída a partir do reconhecimento dos ótimos roteiros entregues por ele. O talento nunca foi deixado para trás em detrimento dos seus problemas.

Estas relações conflitantes com os magnatas e mandantes da época foram as principais inspirações da história de Kane, da ascensão ao declínio, que, após Cidadão Kane ser exibido, rendeu diversos problemas e discussões nos bastidores. E é irônico, como contraditório igualmente, que um dos maiores marcos da indústria cinematográfica americana fosse partir de uma reflexão crítica à própria, da escalada ao poder absoluto, os holofotes, a mídia e o capital, à decadência não só econômica, mas moral e ética, a escalada pelo poder é solitária tanto quanto a descida.

Pela complexidade dos aspectos da vida de Mank, o ator escolhido para interpretá-lo não poderia ser alguém que fosse impossibilitado de expressar as emoções do personagem, assim como os reflexos físicos de seus vícios. Gary Oldman foi a opção perfeita, porque sabe entregar qualquer exigência particular dos personagens, exemplo disso é sua dedicada atuação como Winston Churchill, que o rendera um Oscar em 2018. Oldman se entrega totalmente à interpretação, o corte de cabelo, o físico, a postura e o sotaque são transformações fundamentais nesse novo trabalho. Todas as cenas que envolvem diálogos são dominadas em tela pelo ator, é de uma naturalidade assustadora. O particular vício e a vida boêmia que Mank levava talvez fossem o maior desafio aqui, e Oldman sempre parece minimamente alcoolizado, e os excessos acarretam algumas cenas cômicas, mas profundamente trágicas. A sequência que se destaca aqui é o monólogo em uma mesa de jantar, como se todos os demônios de Herman fossem expulsos do corpo através das palavras proferidas.

O enorme foco na vida de Herman, como já comentado, fica disperso em meio de tantos contextos paralelos. Dentro desses contexto, se encontram dois atores que, mesmo com pouco tempo de tela, entregam ótimas performances. Amanda Seyfried, como Marion Davies, é brilhante na forma em que conduz a personagem, e quando compartilha cenas com Oldman expões domínio e química incomparáveis. Outro ponto alto no elenco, e ao mesmo tempo surpreendente, é Tom Burke como Orson Welles. Não apenas pela semelhança na aparência, mas o tom de voz de Burke remete muito ao lendário ator. A voz, por ser marca registrada e inigualável de Welles, é de extrema importância na caracterização, mas, em Mank, há uma importância narrativa pelo fato de que o personagem, primeiramente, faz quase todas suas aparições por telefone, coberto por sombras que entregam a imponência inerente à figura de Welles. Quando o telefone toca, o nervosismo dos personagens ao redor já dão relevância à pessoa que está na linha.

Para todos esses elementos se conversarem como em uma orquestra, só um maestro altamente competente como David Fincher é capaz de dar tom e ritmo imprescindíveis. Primeiramente, construir visualmente o roteiro concebido e criado pelo pai é de uma responsabilidade inigualável, como se a família Fincher escrevesse uma carta de amor ao cinema, e pai e filho trouxessem uma perspectiva conjunta sobre a paixão compartilhada pelos dois. Fincher surpreende em toda sua filmografia pelo fôlego que aplica nas obras, independente se a trama for extensa, complexa, recheada de personagens, o diretor domina tecnicamente e desenvolve uma linguagem particular e cheia de ânimo. Embora não consiga imprimir o mesmo ritmo pelas duas horas seguidas, devido às próprias limitações do roteiro, Mank esbanja domínio técnico. Como em alguns diálogos, onde se adota a metalinguagem, a direção adota-a por completo. O preto e branco habitualmente associado às obras da época, a montagem e a edição repletas de técnicas antigas (o uso dos fades nas passagens de ambiente, os detalhes de exibição das películas) e os movimentos bruscos de câmera, colocam toda a linguagem cinematográfica em prol de homenagear e tratar suas inspirações com reverência.

A trilha constituída por Trent Reznor e Atticus Ross é outro ponto fundamental para a ambientação completa. Confere autenticidade histórica e remete aos acordes usados anteriormente, as músicas nos colocam dentro da época toda hora, como se realmente estivéssemos assistindo a algo das décadas passadas. O diretor de fotografia Erik Messerchdmidt auxilia e aprimora a ambientação e expressa na cinematografia rimas visuais com o clássico Cidadão Kane, retratando e aproximando a vida do artista com a arte em si. Essas rimas, juntas aos trechos técnicos comuns na decupagem do roteiro, aparecendo em tela com objetivo de decretar a mudança dos ambientes em cena, são reflexos de inventividade que Fincher se permite dar, mas seu papel aqui é mais de se submeter e reproduzir uma linguagem anterior do que aplicar a sua.

Mank vai além dos bastidores e da relação acirrada entre Orson e Hellman na criação de Cidadão Kane, isto é, constrói uma observação analítica da indústria cinematográfica e dos integrantes que a compõe. Mesmo que se disperse nas duas horas em tantos contextos distintos, o roteiro trata de engrandecer a figura do roteirista e lhe conferir a devida importância, tratando as particularidades de sua vida como uma forma de expandir nossos olhares sobre um clássico absoluto. Pai e filho não captam a essência inteira do cinema – como se isso fosse possível – em duas horas, mas deixam juntos uma impressão apaixonada e reverente.

Categorias
Tela Quente

Nocturne: O piano, a irmã e o demônio

Se juntarmos Whiplash (2014) e Cisne Negro (2010), teríamos como provável resultado Nocturne. Embora acredite que o filme não seja absolutamente uma mistura dos dois – porque o resultado de uma junção total seria potencialmente melhor -, Nocturne sugere uma história de terror aos moldes dessas narrativas, misturando elementos psicológicos e sobrenaturais, tratando da obsessão em um cenário musical extremamente competitivo, requisitando sacrifícios de seus competidores, sejam eles no âmbito físico, psicológico, ou até mesmo espiritual.

Nocturne se apoia em uma ambientação muito bem fundamentada. Começando por uma cena completamente aterrorizante, onde vemos um corredor vazio fazendo alusão à “perspectiva kubrickiana”, ao passo em que revela uma porta semiaberta e o cometimento de um suicídio sem explicação aparente, nos introduzindo um mistério que perturba tanto o espectador como a própria trama. Esse momento é parte importantíssima da obra, e é tratado pelas pessoas da cidade como qualquer outro personagem genérico do gênero: “Viram que tal moça morreu?”. Apesar de tantas limitações criativas, Nocturne cria um cenário harmônico interessante, onde a obsessão pela perfeição, a tensão competitiva e o mistério sobrenatural se correlacionam. Somos apresentados à Juliet e Vivian, irmãs gêmeas que estudam no mesmo colégio de música e batalham por uma vaga em um instituto altamente reconhecido.

Vivian e Juliet podem ser gêmeas, mas vivem vidas distintas, apenas compartilhando gostos e sonhos semelhantes. Enquanto Vivian é bem-sucedida nos ensaios e nas apresentações, conseguindo vagas para competições, além de ter uma vida cercada de amigos, sexualmente ativa, Juliet, a protagonista aqui, é introvertida, com poucos amigos e sem atingir o prestígio musical de sua irmã. Mesmo sendo esforçada desde pequena, Juliet viveu às sombras da irmã pela vida toda. O sentimento ambíguo por Vivian é tratado de maneira pouco surpreendente, sendo mais um elemento genérico (dentre vários). A tentativa de se sobressair à imagem da irmã, traçando um horizonte de vingança e ódio, é um aspecto ultrapassado que não consegue ser abordado por uma outra perspectiva, tratando as impulsões da protagonista por meio de justificativas superficiais, dignas de produções juvenis de baixíssima qualidade.

Pelos exemplos acima, dos personagens discutindo as mortes aos fundamentos da protagonista, percebemos que esses elementos, apesar de genéricos, funcionam até determinado ponto. A responsabilidade disso está nas mãos do diretor Zu Quirke, que parece tirar leite de pedra. Para ser mais exato, o diretor busca tirar algo de proveitoso de um roteiro que, nas mãos de alguém um pouco menos capaz, resultaria em um novo 7 Desejos (2017) (Deus nos livrou dessa). As construções visuais e as soluções propostas por ele para exemplificar os esforços e os conflitos de Juliet são de alto nível, sejam por reflexos através de objetos em cena, ou da inserção da trilha em planos que têm algum valor à trama. Contudo, tenho a leve impressão que os sintomas do roteiro são altamente transmissíveis, porque afetam o próprio trabalho do diretor. Apesar dos esforços e das belas concepções visuais, a execução trava na pouca ambição refletida do roteiro. Nocturne não tenta impactar o público, criar uma história única, ou tentar, mesmo estando na zona de conforto, apresentar um material de alta qualidade. Nocturne é mais um tapa-buraco do catálogo do Prime Video que uma obra cinematográfica digna de nota.

E onde está o terror em Nocturne? Não existe uma resposta concreta para a pergunta; posso relatar que não há jump scares convincentes, ou algo que se desenvolva para criar um cenário amedrontador, o filme é tão leve nesse sentido que talvez funcione até para crianças. Infelizmente, Nocturne se inspira em grandes filmes, contudo, não os aproveita como deveria. Se tratando de Whiplash, a obsessão pela prática e o caminho em busca da perfeição poderiam dar à narrativa um peso opressor e dramático substancial, mas são quase que descartados do meio pro final; enquanto, por parte de Cisne Negro, os conflitos psíquicos de Juliet são minimizados, tratando superficialmente as relações entre ela e os seus obstáculos, comprometendo sua transformação enquanto musicista. Devido às atuações das atrizes Sydney Sweeney e Madison Iseman – com um futuro brilhante pela frente – os conflitos das personagens ganham uma parcela de dramaticidade, porém, o filme não se encontra, ficando em uma corda bamba, nem indo para o lado da trama psicológica, tampouco ao terror sobrenatural, ambos reduzidos às conveniências do roteiro previsível.

Nocturne, portanto, é um filme que tem seus bons momentos e, através das soluções de seu diretor e das ótimas atuações de seu elenco, consegue apresentar um ambiente introdutório que dita um tom misterioso agradável. Entretanto, suas competências esbarram em um roteiro absolutamente limitado, que não sabe expressar as reais intenções da história. Há sempre um limite para a quantidade de leite, possível de ser retirado, de uma pedra. Em um gênero tão amplo e complexo, que ganha cada vez mais notoriedade nas mãos de grandes artistas, obras pouco ambiciosas ficarão nas sombras do esquecimento.

Categorias
Tela Quente

Enola Holmes: A sessão da tarde que precisamos

A nova obra distribuída pela Netflix promove uma sessão leve e tranquila. Se tivéssemos filmes como Enola Holmes no programação da Sessão da Tarde estaríamos muito bem servidos. Assistir à história da pequena detetive resulta em uma leveza totalmente necessária por agora. Contudo, sua leveza não é obstáculo para tratar assuntos sérios e pertinentes de maneira correta, com a extrema sensibilidade requisitada por eles.

Enola Holmes é irmã do mais conhecido detetive da literatura e das artes, Sherlock Holmes. Com adaptações, tanto na TV como no cinema, além das diversas edições produzidas por Arthur Conan Doyle, sua fama foi o construindo em um verdadeiro símbolo da cultura. Palavras e expressões como “elementar” e “meu caro Watson” ficaram popularmente conhecidas e usadas ao redor do mundo; a perspicácia do detetive aliada à complexidade das tramas que Doyle concebera o fizeram ser uma figura incontestável, de julgamentos indispensáveis. Através da obra de Nancy Springer, tivemos o surgimento de uma caçula na família Holmes, Enola, onde esta toma o protagonismo para si. E em sua adaptação cinematográfica, Enola é justamente a caçula que toma as rédeas da história, colocando às vezes o próprio “maior detetive da história” no bolso.

E é nessa mudança de protagonismo que Enola Holmes funciona tão bem, como filme e discurso. Millie Bobby Brown, que fez sucesso escandaloso em Stranger Things, interpreta aqui uma menina completamente transgressora das regras sociais impostas na Inglaterra do século XIX. Sua postura é resultado da criação provida pela mãe, Eudoria Holmes (Elena Bonham Carter), que participa de movimentos feministas ingleses enquanto ensina a filha tudo o que for necessário para torná-la uma cidadã exemplar, mas, principalmente, livre. O desaparecimento da mãe, contudo, ocorre de forma repentina e serve como ponto de partida ao desenrolar da trama, fazendo com que Enola saia em uma busca desenfreada. Millie, aliás, é impressionante no papel, conseguindo aplicar um tom equilibrado à personagem, enquanto consegue mostrar rigidez e descontentamento nas horas corretas, também sabe evidenciar as dificuldades e os conflitos internos da protagonista, afinal, é apenas uma garota de 16 anos.

Como elenco de apoio, temos Sam Claflin e Henry Cavill como Mycroft e Sherlock, respectivamente. Ambos compõem a família Holmes e são irmão de Enola. Por ser o irmão mais velho, Mycroft, devido ao desaparecimento da mãe, se torna responsável pela guarda de Enola e decida colocá-la em um internato. E digo logo de cara que Claflin está ótimo, mesmo com poucas cenas e cumprindo um papel burocrático, o ator tem as feições e os gritos de um verdadeiro malfeitor de um filme infantojuvenil. Do outro lado, temos o nosso detetive Superman – e talvez isso seja suficiente. Diferentemente de Millie, que consegue distanciar Eleven de Enola, Cavill se tornou tão icônico no papel de Superman que não se consegue diferenciá-lo de Sherlock, e a atuação dele, embora não comprometa, pouco ajuda nessa desassociação. Entretanto, não há só lados negativos na interpretação de Cavill, seu figurino e sua maquiagem, além do notório físico do ator, dão imponência à presença de Sherlock no ambiente – repare na cena do internato, onde a luz solar se confunde com a figura de Sherlock; nela, podemos dizer que há realmente um Sherlock Holmes.

Acerca da narrativa, há surpresas agradáveis na direção de Harry Bradbeer. O diretor encontra soluções criativas para o desenvolvimento da história, como o uso fluido dos flashbacks na montagem junto às cenas do presente; quando Enola se encontra em uma enrascada, se lembra imediatamente da mãe a ensinando e a treinando – existe uma passagem particular onde ocorre uma briga física (até onde a classificação 12+ permite), e as cenas do passado e do presente se intercalam criando um ritmo muito satisfatório. Complementando esse sensação, a trilha sonora composta por Daniel Pemberton é animada e eleva o tom aventuresco do filme. Outra solução interessante de Bradbeer é o uso da quebra da quarta parede; quando o autor olha para a câmera e conversa diretamente com o espectador. Millie parece dominar a técnica há anos, conseguindo, através de poucos olhares à câmera, expressar tudo o que ela está passando. E o estilo da movimentação da câmera – captando a ação das cenas juntamente às quebras de Enola – é um ponto altíssimo da cinematografia de Giles Nuttgens (com belo currículo.).

Contudo, o virtuosismo técnico de Enola Holmes esbarra na própria limitação do diretor. A quebra da quarta parede e a montagem dos flashbacks são bem executados, mas usados em excesso constrangedor, porém, compreensível pelo público-alvo. A Enola fala tanto, mas tanto com a câmera, que esse elemento começa a se desgastar e você só quer que a história dê prosseguimento no meio de inúmeras interrupções. Os flashbacks também são excessivos, usados demasiadamente na explicação de QUALQUER momento importante ou decisivo dos mistérios apresentados. Parece que o Bradbeer se acomodou nesses elementos e esqueceu que um filme investigativo também pode ser solucionado e desenvolvido com outros auxílios, sem excessos ou soluções fáceis (presentes aqui).

Em relação ao tema proposto de Enola Holmes, só elogios a serem feitos. A história é sobre emancipação e amadurecimento, onde coloca uma garota tendo que enfrentar diversas opressões, de caráter social principalmente, que ditam normas e regras pautadas em um conservadorismo moral gritante. Mesmo que estes assuntos espinhosos estejam dimensionados a um público mais infantil, o filme não deixa de tratá-lo com a seriedade devida, servindo como incentivo para jovens que buscam viver seus próprios desejos e convicções. Além disso, a mensagem construída no final aquecerá até o coração dos mais velhos, concluindo uma trama marcada por superações e pela busca de autonomia.

Enola Holmes é, indiscutivelmente, a sessão da tarde em sua melhor expressão. Há aqueles que tratarão o filme como um simples conto infantojuvenil – e ele também é isso – e deixarão escapar significados que possam interessá-los. A lição que fica é nunca subestimarmos filmes que, no início, possam parecer que não têm nada a dizer. Esta obra não é o caso, embora passe longe de ser perfeita.Para quem está trabalhando?”, “Inglatera.”, é um bom exemplo de diálogo que reflete a capacidade de um filme infantojuvenil ser tão sutil e, ao mesmo tempo, tão ambicioso ao trabalhar seu discurso. Em tempos difíceis como esse em que vivemos, talvez essa ambição seja o que precisamos.

Categorias
Tela Quente

Nascido para Matar (1987): As cicatrizes profundas da Guerra

Stanley Kubrick tinha certas obsessões em sua curta, porém excepcional, filmografia. Em sua primeira empreitada no mundo cinematográfico, abordou questões envolvendo a militarização no filme Medo e Desejo (1953). Após alguns anos, fez um drama se utilizando da temática de guerra, Glória Feita de Sangue, em 1957. Pouco menos de dez anos depois, em 1964, Kubrick se dispôs a discutir e colocar o seu ponto de vista sobre a moralidade das potências bélicas acerca do conflito por zonas de influência ao redor do mundo, na sátira Dr. Fantástico.

Mesmo depois de três filmes abordando assuntos semelhantes, o diretor lançou mais duas obras que iriam retratar as suas antigas obsessões: Barry Lyndon, de 1975, e, se consagrando como o seu último filme de guerra, Nascido para Matar, uma carta de ódio aos responsáveis pela Guerra do Vietnã – o momento que intensificou a frágil relação entre Estados Unidos e União Soviética durante a conhecida Guerra Fria. Impondo um ritmo particular e construindo uma atmosfera ameaçadora, Kubrick entrega sua visão sobre ocorrido de maneira ácida, crítica e extremamente dolorosa.

A sequência inicial sugere o tom irônico e crítico que irá permear a obra; alguns planos focados nos personagens tendo seus cabelos raspados, concretizando a entrada no ambiente militar, enquanto, ao fundo, ouve-se Hello Vietnam (Johnny Wright), criando o contraste entre o tom sereno da música e a expressividade vazia dos atores. Logo depois, há uma das sequências mais memoráveis da história, onde o Sargento Hartman se encontra pela primeira vez com o pelotão. Tratando a cena a partir de um senso técnico apurado, Kubrick entende como aproveitar ao máximo o monólogo apavorante de Ronald Lee Ermey (repare os planos sequência que acompanham o ritmo do Sargento e o ambiente (as janelas e o verde claro), que refletem a frieza do momento), intérprete de Hartman e que foi Sargento na vida real, durante sua passagem no Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Por essa experiência, ficou fácil transmitir em suas falas e gestos toda a rigidez necessária, onde ações agressivas, psicologicamente e fisicamente falando, apelidos maldosos, e pressões constantes são elementos totalmente normalizados.

O pelotão é constituído por Leonard Lawrence, apelidado de Pyle, interpretado por Vincent D’Onofrio – que marcaria a carreira com este filme -, por J. T. Davis (Matthew Modine), o Joker e pelo Cowboy, de Arliss Howard; além de outros que servem como elenco de apoio. Pyle é o soldado que demonstra dificuldades mentais e físicas na conclusão de tarefas do treinamento. As dificuldades passadas por ele são exaltadas pelo comprometimento absurdo de D’Onofrio ao papel, ficando entre os melhores personagens da filmografia de Kubrick. A falta de determinação e os obstáculos vividos pelo soldado transformam o treinamento militar em um espetáculo conduzido por Hartman, ao passo em que ele constantemente zomba e abusa psicologicamente de Pyle. Contudo, os que acabam sofrendo as consequências pelos atos falhos de Pyle são os integrantes do próprio grupo.

Dessa maneira, Kubrick trata de observar a academia militar para a Guerra do Vietnã por uma perspectiva altamente combativa, ridicularizando – de maneira sutil – o preparo para o Vietnã. Contudo, não é porque o assunto é tratado com certa ironia, que o diretor esquece de discuti-lo com seriedade. O que vemos, primeiramente, como uma simples – se podemos chamá-la assim – pressão e rigidez militar, se transforma em uma conclusão verdadeiramente diabólica. A trama parece que se estenderá do começo ao fim do filme, porém, termina em apenas 45 minutos, na mais pura e brilhante “linguagem kubrickiana”. Quando Alfred Hitchcock fez Psicose (1960), e gravou a famosa cena da banheira – violentíssima para a época -, ele queria incutir uma certa angústia aos espectadores, que se sentiriam durante o resto do filme ameaçados com a promessa de uma cena ainda mais assustadora, mas que nunca iria se cumprir. O que Kubrick faz é justamente isso, criando uma sequência angustiante, e que fica conosco até os últimos minutos, embora nunca mencionada posteriormente.

Linguagem kubrickiana, isto é, a linguagem rebuscada e perceptível com certa regularidade nos filmes de Kubrick. Porém, após os primeiros quarenta e cinco minutos, Nascido para Matar vira um filme de guerra extremamente competente, mas não tão único como outras obras que só Kubrick faria, já que encontramos similaridades em relação a outros do gênero. O ambiente do campo da marinha dá lugar ao campo de guerra que se tornou o Vietnã, e Joker reaparece como jornalista militar. Embora não tenha detalhes minuciosos, há diversos toques provenientes da genialidade do diretor. Enquanto a tropa, constituída por Joker e Cowboy, integram missões potencialmente fatais, ocorre uma cobertura jornalística auxiliada por câmeras e microfones, na qual a metalinguagem trata de exemplificar como a guerra também era vista através da teatralidade propagandística. Onde os relatos dos soldados fizessem alusão a estrutura de um reality show.

Outra ferramenta para criticar o genocídio que a Guerra do Vietnã se tornou é o uso das personagens femininas. A primeira mulher que realmente tem certa importância narrativa é uma vietnamita que está sendo prostituída por vietnamitas locais em troca de armas e dinheiro. Contudo, o que se vê é o embate constrangedor entre soldados – às vezes até pelo tamanho do órgão – para ver quem seria o primeiro a ter chance com a moça, fundamentando a imbecilidade e a selvageria que o exército americano carregava. No terço final do filme, há a morte de uma jovem vietnamita que marca todos os soldados profundamente, e que Kubrick se utiliza dos mesmo planos inicias – da raspagem do cabelo – para julgar os responsáveis por aquele ato violento. De certa forma, Kubrick tenta iluminar a consciência dos protagonistas com um “tapa na cara” moral, esvaziando o imaginário perverso da guerra, e entregando a dura e crua realidade.

Podemos pensar em Pyle, nas vietnamitas, ou até no Sargento Hartman, e todos terão o mesmo destino sombrio e cruel. A intenção de Stanley Kubrick, portanto, é produzir um incômodo profundo na mente do espectador, deixando-o pensar em como a guerra pode trazer consequências duras e difíceis para aqueles que estão diretamente ou indiretamente ligados à ela. É ironizar – e até mesmo satirizar – passagens marcadas por ódio e violência, seja o ríspido Sargento como caricatura, ou os soldados durões que só conseguem se provar por meio do tamanho do membro. Nascido para Matar serve justamente para destruir essas concepções imaginárias sobre a postura e a moralidade do homem, evidenciando o que elas tentam esconder: a mediocridade humana.

Categorias
Serial-Nerd

Terceira temporada de Westworld mostra desgastes, mas mantém qualidade

“Dolores foi feita com uma sensibilidade poética”, afirma Bernard (Jeffrey Wright) em certo momento do sétimo episódio dessa nova temporada. Divertido notar a sutil semelhança que esta frase guarda com o como Westworld fora concebida: uma série com uma sensibilidade poética. Isto é, a forma de trazer assuntos tão presentes no gênero da ficção científica mais sofisticadamente. Sendo assim, fica óbvio entender a construção de um mundo que dialoga tanto com o western, representando a dissociação entre a evolução tecnológica e a simplicidade humana; afinal, em um futuro onde prédios parecem raciocinar sozinhos, quem iria optar pelo mundo do oeste? Aliás, os anfitriões do parque, que representam um dos marcos mais importantes da relação entre humanos e tecnologia, foram criados por um homem culto e ambicioso, atraído pela arte, que buscava em suas criaturas muito além da pura diversão perversa. Estes exemplos, entre outros, representam como Westworld tratou de sensibilizar sua abordagem à histórias que poderiam soar previsíveis e clichês.

Agora, o cenário que antes nos aproximava da humanidade, é substituído pelo ambiente pautado pela tecnologia. O mundo real parece menos real do que dentro do parque recreativo criado pela Delos; há um tom ameaçador nas arquiteturas rebuscadas e detalhadas dos prédios e monumentos, o elemento humano é pouco presente e quase desaparece nas cidades, a representação perfeita da ínfima relevância que o fator humano tem em um cenário controlado, onde o artificial e o real se confundem. Essa aproximação à estética cyberpunk cria um contraste interessante com o que vinha sendo o padrão de Westworld. Contudo, a luta de Dolores se mantém a mesma.

Dolores é a figura feminina mais bem trabalhada nas produções audiovisuais recentes. Embora a sua busca por emancipação esteja em um contexto amplo da consciência, e não puramente social, é notável ver como o protagonismo feminino da série cutuca assuntos atuais. Após anos tendo sido imposta a narrativas diversas, arquitetadas, tendo seu comportamento moldado e constantemente supervisionado, a sua vida no mundo real parece ser libertadora. Não há mais cordas e amarras, sua batalha será trilhada por si própria, e o objetivo de criar uma revolução sem precedentes é o grande foco da temporada. Enquanto nos habituamos com o novo cenário e alguns novos personagens, acompanhamos o desenrolar do plano de Dolores e entendemos gradualmente as intenções pouco óbvias da personagem. Esse mistério acerca da trama de Dolores nos deixa inquietos com uma indignação razoável: até onde valeria a luta pela nossa independência? Talvez a resposta seja cruel demais.

Além disso, o figurino de Dolores dá preferência a roupas mais escuras – distanciando-se do vestido azul predominante no parque -, refletindo o raciocínio da produção, que busca diminuir a aparência humana no cotidiano das cidades. Com o estilo pautado nas temáticas da história, o desenvolvimento da protagonista ganha volume e seriedade com a incrível atuação da Evan Rachel Wood, que já vinha de um trabalho fabuloso nas últimas temporadas, mantendo a expressividade dúbia que a carrega emocionalmente, e acompanhando o amadurecimento de suas convicções, estas, que colocam Caleb (Aaron Paul) na jogada.

Caleb é um ex-soldado do exército americano, onde sofreu perdas irreparáveis. Se o compararmos com qualquer outro arco de Westworld, é o personagem que mais se distancia dos eventos ocorridos no parque.  Entretanto, é parecido com tantos outros do gênero, melancólico e isolado, além de guardar experiências traumáticas providas pela guerra civil que participara. Aaron Paul, prestigiado após Breaking Bad, mantém o nível – sempre alto – das performances do elenco, mesmo que a direção não consiga acompanhar as reviravoltas o envolvendo.

A participação de Caleb adiciona um contexto político e militar pouco aproveitado nas temporadas anteriores, e Serac (Vincent Cassel), assumindo o papel do “antagonista” (entre aspas, já que Westworld nunca propôs lados definidos, deixando o espectador julgar livremente as ações – discutíveis – de todos os envolvidos), amplia o tema para a influência do corporativismo na política mundial. Qualquer mundo cyberpunk tende a mostrar empresas privadas manipulando as políticas públicas em prol de seus próprios interesses e convicções. As redes de dados se tornaram arma fundamental para a prática do imperialismo das empresas, espalhando zonas de domínio com imposição de poder. E, se os dados providos pela Delos, ao estudar seus integrantes, tinham destinos pouco compreendidos por um momento, o que descobrimos sobre eles é completamente sórdido.

Serac também tem um panorama emocional profundo e bem detalhado. Apesar de apresentar certos clichês do “empresário malvado”, o seu passado meio obscuro e relatado em alguns flashbacks – e a possível guerra química ocorrida na França poderia ser explorada adiante -, ajudam a compreender as ações dele. Ademais, é responsável pela construção da inteligência artificial Rehoboam, capaz de, através de dados e estatísticas, projetar a narrativa de vida de qualquer ser humano. O que, certamente, impacta na liberdade individual do mundo (real?).

Mesmo com novos integrantes, Westworld tenta manter sua identidade com Maeve (Thandie Newton) e Bernard. Ambos ainda estão muito conectados com as vidas nos parques, e, de certo modo, precisam tomar atitude e escolher um lado na luta de Dolores. Infelizmente, Maeve é bem subaproveitada, enquanto fora um dos pilares da segunda temporada, aqui é só uma ninja que pouco compreende o porquê de estar lutando. Bernard idem, já que se transporta de locais com uma facilidade absurda e pouco agrega narrativamente. Contudo, nem todos os personagens já conhecidos pelo público são subaproveitados. Charlotte Hale, interpretada por Tessa Thompson, revela a dificuldade de conciliar seu comportamento ao estilo de vida da contraparte humana. As consequências severas dos atos de Hale irão refletir nos próximos anos.

William, interpretado magistralmente por Ed Harris, é o melhor personagem, com o melhor arco, da terceira temporada. Depois de passar duas temporadas tentando compreender a rebuscada história arquitetada pelo Dr. Ford (Anthony Hopkins) e Arnold, o Homem de Preto precisa entender a si próprio, combatendo seus demônios internos – entende-se como suas versões antigas. William nunca se encontrou na realidade, entendendo que o parque era o que mais o aproximava da vida, ao mesmo tempo que almejava a destruição dos anfitriões e o fim do labirinto de Arnold. Como um pequeno anfitrião, reprodução de um Dr. Ford criança, profetizou, o jogo encontraria William, que assume o papel do Homem de Branco, aquele que salvará o mundo da ameaça artificial.

A transformação do Homem de Preto e as reviravoltas de Caleb, contudo, são um pouco prejudicadas pelos mesmos responsáveis por deixar tantos personagens subaproveitados: diretores e roteiristas. O primeiro parágrafo fala, justamente, sobre a sutileza poética de Dolores e de Westworld, e o que vemos nesse terceiro ano é o desgaste dos responsáveis criativos. Em busca pela maior linearidade da história – requisitada por muitos, após episódios que abordavam linhas temporais diversas e que, em certo momento, se entrelaçavam – o roteiro força momentos que aparentam ter revelações bombásticas, ou sínteses dignas de um Pulitzer, mas que, na verdade, apresentam frases clichês e excessivamente expositivas. Enquanto, na direção, vemos uma narrativa apressada e deslocada – a pós-crédito é exemplo disso -, não conseguindo imprimir ritmo e tom harmônicos, atrapalhando a coesão e certas construções de personagens.

Nessa terceira temporada, o que vemos é a busca pela linearidade afetando a estética narrativa, trunfo de Westworld. Embora ainda mantenha ótimos personagens, tramas emocionalmente eficientes e um futuro promissor, há um notável desgaste na criatividade e na sensibilidade. Buscar novamente a essência de uma história que discute humanidade e consciência através da ficção, da perversão, da política e da arte, deve ser o objetivo principal dos criadores. Esse resgate trata de reconhecer a importância dos temas levantados por Westworld, comprovada na imagem sutil da abertura: uma mão artificial tocando um piano, até deixá-lo tocando sozinho. Existe maior representação de livre arbítrio do que essa?

Categorias
Serial-Nerd

Quinto ano de Better Call Saul atinge o nível de Breaking Bad

Better Call Saul é incansável. Embora a história de Saul Goodman (Bob Odenkirk) pareça estar chegando ao seu final, isto é, seu início em Breaking Bad, os criadores Vince Gilligan e Peter Gould continuam a construir personagens e subtramas complexas. Em contrapartida das outras temporadas, a quinta demonstrou um nível de tensão e preciosismo técnico nunca visto antes, e, por conta disso, estabeleceu uma aproximação aos personagens da mesma forma que fomos nos aproximando de Walter White (Bryan Cranston) e Jesse Pinkman (AaronPaul). Se, na temporada anterior, Mike (Jonathan Banks) e Saul tinham se tornado aquilo que seriam por anos, nessa, Kim Wexler (Rhea Seehorn) toma para si sua transformação, e Lalo Salamanca (Tony Dalton) se impõe como um dos maiores “antagonistas” do universo Breaking Bad.

Foi a primeira vez que vimos Saul Goodman dar as caras na série. Depois de Jimmy McGill viver sempre à sombra de seu irmão Chuck (Michael McKean), contando fracassos na sua vida jurídica, sua transformação em Saul revela um homem renovado e corajoso para tomar qualquer atitude que fortaleça a sua imagem como advogado dos mais necessitados. A dinâmica dos julgamentos, das negociações de casos e da abordagem para com a clientela criam um ótimo início de temporada. Bob Odenkirk entrega sua performance ressoando quase que por completo sua atuação em Breaking Bad; audacioso, manipulador e sensacionalista. O caso do banco Mesa Verde, especificamente, tratou de trabalhar a figura de Saul Goodman como um manipulador de narrativas e casos, fortalecendo a figura inescrupulosa do personagem. Entretanto, a série desenvolve dilemas morais que colidem com os seus interesses, flertando com um lado mais humano e sentimental que permanece em seu consciente.

Enquanto isso, Mike vive um conflito interno depois do assassinato que cometera no final da quarta temporada. Sua indignação e incômodo com os negócios envolvendo Gustavo Fring (Giancarlo Esposito) criam a tensão perfeita, acrescentado emoção ao terço inicial da temporada. A relação com sua neta e a viúva de seu filho mantém o lado dócil do personagem, mas a abordagem é menor comparada às outras temporadas. O principal arco dele está ligado ao personagem de Nacho Varga (Michael Mando), que está infiltrado na família Salamanca a mando de Fring.

Já Kim Wexler surpreende por transmitir características e ambições semelhantes aos de Goodman. Se nas temporadas passadas a personagem mantinha uma ética profissional intacta, preocupada com as estratégias um tanto quanto criminosas de Saul e comprometida fielmente com os seus casos jurídicos, agora ela foi desenvolvida como se tivesse se transformado no oposto disso. Kim se torna cúmplice das ações do namorado, e acaba se envolvendo parcialmente em suas decisões duvidáveis.

O núcleo da família Salamanca é o que tem de mais interessante na quinta temporada. Composto principalmente por Nacho Varga e Lalo Salamanca, a família do cartel mexicano já é velha conhecida dos fãs deste universo, mas guarda uma potencialidade nunca antes exibida. Os dois administram os negócios dos Salamanca na região, enfrentando a concorrência e os diversos planos arquitetados por Gustavo Fring. A espionagem promovida por Varga carrega as cenas entre ele e os mexicanos de tensão absoluta. A opção da direção de fotografia  por planos fechados, que retratam as expressões de insegurança e nervosismo, como também marcam os olhares dos personagens, sempre sombrios e misteriosos, montam cenas a partir do perigo iminente existente nos trabalhos dos cartéis. Embora Breaking Bad aborde de maneira excepcional os mecanismos da máfia, Gilligan parece ter refinado ainda mais sua abordagem para com os detalhes do tráfico de drogas.

A partir dessas pequenas explicações, entende-se que a série tem pernas próprias há um bom tempo. Antes havia uma sombra de Breaking Bad que incomodava, e que poderia ser determinante para comprometer a qualidade da série, mas Gilligan e Gould entenderam que a submissão ao material fonte seria um tiro no pé – na verdade, na cabeça. O que se vê é uma história com uma identidade temática e visual própria e autêntica. Os núcleos se desenvolvem individualmente e coletivamente, culminando em um terço final que esbanja qualidade técnica, da direção a atuação. Com os personagens plenamente desenvolvidos, ainda que guardem surpreendentes reviravoltas, quando todos contracenam juntos estabelecem uma química tão perfeita e inacreditável, que o resultado é simplesmente a superação em relação a Breaking Bad.

Quando assistia os episódios, sempre estava à procura de alguma referência a Breaking Bad. A cada início havia o despertar de uma nova esperança que algum personagem da série principal fosse aparecer – e isso acontece, já que Hank Schrader (Dean Norris) aparece para matar as saudades -, afinal, Walter White e Jesse Pinkman marcaram uma geração na televisão. Contudo, as subtramas e os conflitos de interesse de Better Call Saul juntando com as atuações de alto nível e as mentes criativas de Gilligan e Gould me fazem esquecer de possíveis conexões com a trama original. Óbvio que se espera essa ligação entre as séries, mas a narrativa do spin-off é, inegavelmente, única e independente.

O terço final da série realmente se destaca dos demais episódios, não só pelo ritmo intenso, mas também pela preocupação em deixar alguns ganchos para a sexta e – já confirmada – última temporada. O antepenúltimo episódio, gravado quase inteiro no deserto, coloca os protagonistas em momentos de opressão psicológica e de reflexão moral. Depois, o penúltimo traduz as consequências dos atos dos personagens e encerra com uma das cenas mais tensas do ano na televisão, culminando na melhor performance de Kim – que ganha a série para si. Chegando ao último episódio, temos a exploração visceral da violência, que era mais implícita nas passagens de tensão do que uma verdadeira exposição de sangue e mortes. Em relação  aos ganchos construídos, fica evidente o desafio que será para encerrar os arcos de Better Call Saul, que, ao mesmo tempo, deverá entregar a ponte entre sua história e Breaking Bad.

Better Call Saul, assim sendo, é indiscutivelmente uma das melhores produções anuais da televisão. Saber quem era Saul Goodman antes da fama parecia ser o trunfo da história, mas, ao nos aproximarmos cada vez mais do final, percebemos que a conjuntura que envolve todo o universo de Breaking Bad antes de Heisenberg é mais rica do que pensávamos, e merecia uma narrativa densa e bem construída como essa. Que bom que Gilligan e Gould perceberam isso.

Categorias
Tela Quente

Violência Gratuita (1997): Escolhas perversas e conscientes

A obra cinematográfica existe por inúmeras influências. Sua existência e qualidade dependem da equipe criativa e técnica envolvida, da construção de seu argumento ao corte final na pós-produção. Esse desenvolvimento, que costuma levar muitos meses para ser concluído, precisa ser minucioso para construir um filme que seja reconhecido por seus espectadores. Contudo, a partir do momento em que há o lançamento em cinemas ou serviços de streaming, a obra é, necessariamente, apenas daqueles que a fizeram? Ou o seu público também exerce uma função fundamental na construção dessa história?

Difícil relacionar a qualidade de um filme a seus espectadores. Obviamente que a responsabilidade de se criar um bom conteúdo e, consequentemente, apresentar uma história, está nas mãos de seus idealizadores. Isto posto, quando chega na época de sua exibição, o filme passa por olhares distintos em públicos diferentes entre si. A crítica, as análises e as discussões assumem um papel de valor ímpar para com a concepção da obra no mercado cinematográfico. Quando a obra é exibida, ela se torna de todos, inteiramente influenciada pelos universos individuais, e pode acabar sendo reconhecida, ou depreciada, em poucos dias.

Violência Gratuita retrata o sequestro de uma família em uma região afastada, mas elitizada, da Áustria. Dois garotos vestidos de branco começam a torturar de maneira física e psicológica os familiares constituídos por um pai, uma mãe e seu filho, ainda criança – não podendo se esquecer do cachorro. Se o filme começa com uma trilha sonora clássica, se remetendo e construindo um clima serene e leve, a aparição do título do filme e a troca da música tranquila para outra absolutamente caótica e perturbadora transmite violência. E essa brincadeira com as trilhas remete a construção inteira da história, que aborda uma mistura sensorial inquietante.

Os agressores apresentam postura firme e segura, mas também de extrema educação e tranquilidade. Suas performances não condizem com o nível praticado por suas ações, já que, enquanto há cenas que explicitam a violência, a naturalidade de ambos só reflete a perversidade de seus psicológicos. Suas vestimentas, completamente brancas, se mostram uma escolha acertada do figurino, porque a cor de forma alguma reflete as intenções de seus personagens.

Enquanto a obra vai se desenrolando, e a trama ganha mais consistência, muito mais por sua ambientação, que oprime seus personagens em momentos de abuso e pressão psicológica, do que pelo roteiro, há um sentimento de incômodo crescente para com a situação. De forma alguma o roteiro é ruim ou medíocre, mas as intenções do filme dependem muito mais da forma como Michael Haneke desenvolve a narrativa e articula a fotografia. Exemplos disso: a insistência de manter quase o filme todo em um só cenário; a iluminação do cômodo que reflete certa melancolia; e o excesso de branco na constituição das cenas. O título brasileiro é muito preciso, a violência realmente é gratuita, e chegamos em determinada parte nos perguntando: qual a razão disso? Assistir a uma família sendo torturada? E a resposta é direta e aterradora: SIM.

Há a quebra da quarta parede em momentos pontuais do filme, onde o principal torturador conversa com a audiência, ou simplesmente dá um olhar – chega na alma -, mais significativo do que qualquer palavra proferida. Nessas passagens, entendemos que constituímos parte fundamental da narrativa da história. Não somos simples espectadores, somos cúmplices das escolhas criativas dos idealizadores.

Voltando ao começo do texto, o papel do público está totalmente ligado à obra. E Violência Gratuita representa essa ligação, mesmo que seja apenas uma expressão inconsciente. Nós precisamos ver o desfecho do filme, temos a necessidade de descobrir as conclusões reais da história, seja a morte inteira da família, ou sua salvação. Enquanto o desfecho não chega, ficamos atentos nas mais inescrupulosas ações dos agressores, e certas posturas do espectador podem traduzir valores morais e éticos.

Atualmente, vimos essa discussão ressurgir com a exibição de Coringa (2019), onde muitos alertaram sobre as posturas variadas do público para com as atitudes do personagem. Risadas com as cenas do anão tentando abrir a porta após um assassinato visceral cometido por Arthur, aplausos ao final enquanto o personagem anda pelo corredor com pegadas de sangue, provando sua inescrupulosa atitude etc. Nesse sentido, você não é culpado de ter algumas emoções contraditórias durante o filme, e, às vezes, o diretor está querendo que você as sinta. Porque o melhor do cinema é você se redescobrir e discutir seus próprios valores, olhando de forma ampla e abrangente como se dá o seu relacionamento com a sociedade contemporânea. Embora alguns confundam entretenimento com vazio intelectual e cultural, este produto entrega panoramas que evidenciam questões éticas e morais pertinentes.

Violência Gratuita, portanto, é uma experiência brutal e rígida, mas de importância incontestável. No cinema, estamos em um jogo onde aceitamos as condições impostas por roteiristas, diretores e artistas em geral, nos sentindo reféns das escolhas artísticas e de como elas reverberam na sociedade. A obra de Haneke não é só sobre liberdade criativa, mas como o público precisa assumir uma postura crítica para com o que está assistindo, amadurecendo o olhar e estabelecendo relações com sua própria realidade, julgando-a constantemente.

Categorias
Tela Quente

Contágio (2011): Ética e empatia em tempos de calamidade

Assistir ao filme Contágio (2011), principalmente na época em que estamos, não foi uma tarefa das mais fáceis. Por partir de uma situação similar às nossas condições atuais, os acontecimentos fictícios ganham uma perspectiva muito mais densa, pautada pela realidade observada. Ao abordar a proliferação de um vírus desconhecido, o roteiro se divide em quatro importantes tramas, que apresentam setores diversos da sociedade relacionados a doença: uma família comum, um jornalista, os cientistas e pesquisadores, e os servidores públicos e militares. A partir desse ponto, Contágio discute as particularidades de todos os envolvidos na epidemia, entrelaçando as causas e consequências, e permitindo uma ótima discussão sobre os reais interesses governamentais, a falta de ética que permeia o confronto com a doença e a perda gradativa da empatia da sociedade mundial.

Se pegarmos qualquer um dos assuntos listados acima, poderíamos facilmente abri-los e discuti-los no cenário atual. Essa forte ligação com o real mostra a evidente veracidade científica que permeia o roteiro do filme, e, consequentemente, o atribui uma credibilidade maior. Dessa forma, Contágio exemplifica conceitualmente as capacidades da contaminação do vírus, enquanto ainda demonstra as medidas governamentais necessárias para a diminuição da contaminação – soa familiar? – (Fechar escolas, universidades, locais públicos etc para evitar aglomerações; construir locais temporários para as pessoas contaminadas se estabelecerem e serem observadas; entre outras medidas).

Do ponto de vista político, Laurence Fishburne e Bryan Cranston representam homens públicos que estão dispostos a erradicarem o vírus, mesmo que isso leve tempo e o ocultamento de dados importantes para a população. Nesse sentido, entra o confronto direto com a parte científica dessa produção. Os pesquisadores e cientistas, liderados por Fishburne, têm um objetivo claro de acelerar os conhecimentos acerca dos detalhes da doença, enquanto, o governo, pretende ocultar certos dados para não causar pânico instantâneo nas pessoas. Resulta-se, portanto, em um embate passageiro de interesses, já que um lado está disposto a conceder certos níveis de informação, enquanto o outro preocupa-se na preservação social para não atingir setores da economia e da saúde, passando por questões burocráticas e governamentais. Embora haja o alinhamento desses grupos ao longo do filme, fica óbvio que o diretor Steven Soderbergh pretende debater os limites éticos das gestões governamentais em tempos de crise e colapso.

Tais limites éticos introduzem o personagem Alan (Jude Law) – o elenco é excepcional – que será um fator determinante para a discussão sobre a democratização da informação. Alan é um jornalista independente, que tem um blog pessoal onde escreve artigos sobre casos políticos, principalmente sobre o vírus que está assolando o planeta. Sua investigação acusa que o governo estaria acobertando uma possível cura para o vírus, por conta de interesses da indústria farmacêutica. O filme todo tenta convencer a bondade ética e moral do jornalista, mesmo que seus métodos sejam duvidáveis e o final guarde momentos reveladores. Em momentos como esse, diversos veículos de informação tentam achar algum furo de reportagem, montam discursos e matérias sensacionalistas na tentativa desprezível de alcançar o maior número de pessoas, valorizando seus canais de propaganda.

Contudo, a desinformação estrutural nem sempre está conectada com interesses econômicos. Há aqueles que necessitam dos holofotes para se autopromoverem publicamente. Isto é, independente dos riscos que as fake news podem causar, alguns cidadãos preferem inventar curas impossíveis, ou criar conspirações políticas que, de certa forma, os apresentam como os reais portadores da verdade. Os que “visualizam” as quebras do sistema e não se deixam enganar pelas amarras manipuladoras dos políticos, sendo mais inteligentes do que as organizações mundiais responsáveis.

Essa irresponsabilidade informacional e a inescrupulosa necessidade de ficar por cima refletem na fragilidade das relações sociais que, em momentos de uma epidemia nessa escala, sofrem com um estresse intenso, seja pelo medo da contaminação, ou pelo receio da falta de abastecimento nos mercados e farmácias. Podemos dizer que esse momento do filme – sim, ainda estamos nele – transmite o fator humano, que é corrompido de forma melancólica. Mitch (Matt Damon) é o marido da primeira paciente (Gwyneth Paltrow) que apresentou os sintomas, e se vê em uma situação delicada quando ela e seu filho estão fortemente contaminados. O que resta para o personagem é uma profunda angústia e tensão, enquanto presencia o caos social instaurado e a desestruturação parcial da típica sociedade sob catástrofe.

O desencadeamento de uma insatisfação popular parece distante em certo momento de Contágio, mas conforme o agravamento das letalidades causadas pela infecção do vírus, ela se torna mais nítida e presente. E o filme tenta encontrar causas pertinentes que desencadearam a depredação de locais públicos e os constantes furtos em mercados e lojas de qualquer departamento: a negligência do governo e dos meios de comunicação. A falta de compromisso do governo para com a população soa como clichê, mas o que Soderbergh faz é também mostrar as dificuldades de manter a ordem pública, seja por comandos superiores ou pela falta de recursos para tal. Em relação a comunicação, uma das revelações de Alan é determinante para causar ainda mais tumulto e caos, que se mostra uma falsa esperança para os que acreditam fielmente.

Contudo, há um fator pouco claro que, se seguirmos os conceitos concretos apresentados pelo filme, não conseguimos encontrar de maneira explícita: a perda da empatia. Evidente que o número de mortes apresentado pelo filme, e a alta infecção, deixaria todos em pânico e, de certa forma, justificaria os extremos praticados pela população. Mas o ato de puro pânico demonstra-se pautado na arrogância e no egoísmo, já que, ao invés das pessoas terem uma consciência coletiva, elas se tratam como inimigas e competidoras; saltam de seu estado comportado para o seu estado puro e natural. E a violência de Contágio está concentrada em uma cena particular e precisa, que mostra que o medo é só uma justificativa para o desnecessário uso da violência.

Sim, o texto tem confusões temáticas claras. Estaria eu falando sobre o filme, ou sobre a atualidade? E, sim, a confusão é proposital por motivos óbvios. Não há necessidade para pânico, e tampouco para o esvaziamento de mercados e farmácias. Há a necessidade de nos conscientizarmos sobre a atual situação, seguir as medidas profiláticas, e compartilhar informações confiáveis de fontes seguras com credibilidade. Porém, não sou nenhum especialista para dizer o que você deve ou não fazer, contudo, como essa é uma coluna sobre cinema, me vejo na responsabilidade de te dar uma dica para a sua quarentena: assista a filmes e séries, leia livros e contos, e, além disso, reflita sobre o que acabara de ver/ler. Faça o seu tempo valer a pena, aproveite os momentos livres em casa para fortalecer e desenvolver a sua sensibilidade.

É através da sensibilidade que adquirimos empatia. Embora Contágio apresente diversas problemáticas e desperte certa melancolia, não deixa de introduzir um vislumbre de um futuro promissor que, certamente, com ética e empatia, aparecerá para nós também.

Categorias
Tela Quente

Ford vs. Ferrari: Adrenalina na base de suor e lágrimas

Ford vs. Ferrari foi uma das grandes surpresas na lista de indicados a Melhor Filme no Oscar 2020. Isso devido ao fato de que grande parte da audiência desconhecia a obra dirigida por James Mangold, que passou despercebida durante o período nos cinemas. Sendo um dos espectadores na época do lançamento, pensei no momento que deixei a sala de cinema que esse filme seria mais reconhecido após suas semanas de exibição. E não esperava que aconteceria tão rápido. Empolgante na medida certa para nos tirar o fôlego e vibrarmos com os personagens, o filme não só surpreende por sua indicação, mas também pela apresentação sofisticada e estilosa de James Mangold.

Pouco conhecedor de corridas, principalmente nos Estado Unidos e na França, comecei perdido ao tentar entender qual era a grande questão envolvida na trama. Isto é, o embate comercial entre Ferrari e Ford. Em poucos minutos, porém, a obra estabelece as explicações necessárias – sem ser pedante – para entendermos os momentos das duas empresas, seus objetivos e como funciona as competições automobilísticas. A partir desse ponto, fica fácil nos conectarmos com os personagens principais, estes interpretados por Christian Bale e Matt Damon, os acompanhando na trajetória real que beirava o impossível: construir um carro de corrida que competisse com a invencível Ferrari.

Entender que tudo apresentado na obra foi de fato verdadeiro, torna a experiência ainda mais empolgante. Acompanhar os problemas e desafios de Ken Miles (Bale) e Carroll Shelby (Damon) deixa-nos completamente vidrados na tela para com a construção do carro. Aqui já fica clara a ótima montagem de Ford V Ferrari, pois alterna entre as melhorias empregadas pelos funcionários, e os testes na pista; essa dinâmica estabelece grande parte do ritmo do primeiro terço do filme, além de desenvolver os conflitos entre Shelby e a empresa Ford, comandada por Henry Ford II (Tracy Letts). Embora nos coloque em posição de enaltecimento da Ford, o dono e seu conselho administrativo transmitem uma falta de empatia tremenda, seja por não entenderem as limitações físicas e emocionais de seus trabalhadores, ou pelas inúmeras tentativas de sabotar os próprios projetos. Esta abordagem cria figuras antagônicas eficientes, fortalecendo ainda mais o engajamento da audiência para com o possível sucesso dos protagonistas.

O carisma de Bale e Damon, aliás, é fundamental para simpatizarmos com seus problemas. Bale, além de ter semelhanças significativas com a figura real de Miles, mistura a simplicidade do personagem com a extrema capacidade de observação e inteligência acerca de automóveis, que muitas vezes beira ao insuportável. Já Damon, apresenta alguém que tem o coração no lugar certo, mas se resguarda por ser um homem focado nos negócios. Essa disparidade entre ambos cria conflitos inevitáveis, enquanto, quando se juntam, cria uma união formidável.

Se o processo de idealização e criação do carro já apresenta diversos elementos atrativos, as corridas transmitem um sentimento único de empolgação pelas mãos do diretor James Mangold. É como presenciar uma corrida estando a dois passos da pista, você realmente se comove e interage com os pilotos, porque o filme enaltece o contato com o fator humano nos carros – repare o uso intenso de primeiros e primeiríssimos planos nos atores que estão correndo na pista. Embora o foco esteja mais em Bale, Mangold não esquece de todos os componentes que estruturam a corrida, desde as paradas técnicas até as bandeiras finais. Apesar da emoção estar guardada na apreensão sobre os resultados de Miles, as dificuldades enfrentadas pela equipe liderada por Damon, de preocupação com o estado do carro até os problemas enfrentados com os líderes da Ford, também adicionam certa preocupação.

As 24 Horas de Le Mans era uma corrida longa e requisitava dos profissionais automobilísticos uma postura incansável, proporcionado exaustão e uma alternância constante de seus participantes. Por conta desse motivo, Ford vs. Ferrari poderia ter seu ritmo atrapalhado por tentar impor as condições reais das corridas. Contudo, Mangold acerta em focar nas passagens úteis, além de guardar a maior parte do tempo para a corrida final, tratando a duração de maneira organizada, sem atropelar o desenvolvimento narrativo.

Além das escolhas eficientes de Mangold, a edição e mixagem de som têm uma função definitiva para a criação perfeita do ambiente. A edição ressalta as pisadas nos pedais, as trocas de marchas, os freios etc. A partir dessas sonoridades minuciosas, a mixagem encaixa de maneira fluída todos estes sons, fazendo com que a cada virada, a cada respiro e a cada volta, sinta-se a emoção de estar sentado na arquibancada. Esse conjunto de trabalhos torna cada corrida uma emoção única, resultando em uma jornada frenética e vibrante, empolgando até mesmo aqueles que não se interessam pelos fatos históricos narrados.

Tratando das corridas por quase todo o seu tempo, Ford vs. Ferrari não deixa escapar, mesmo que por alguns instantes, os fôlegos emocionais através de surpreendentes momentos que evocam a história por trás dos personagens. A dificuldade financeira de Miles pesa em sua relação com a esposa e filho, a necessidade de Shelby se provar entre os melhores do automobilismo também tem seu lado emocional, porque ele precisa provar seus pontos mesmo que todas as variáveis estejam contra suas ideias. Nesse sentido, o que mais me marcou profundamente – e devo deixar destacada – foi a cena entre Ford II e Shelby dentro de um carro de corrida. Após um pequeno teste demonstrando a velocidade do carro, o dono – figura extremamente antipática – chora por se lembrar do pai e sua paixão por carros. E precisa notar o quão bem está Letts nesse papel, já que alterna entre simpatia e rigidez. Mesmo a figura mais antagônica transmite uma passagem sincera carregada de lágrimas, evocando a lembrança de uma história paterna.

Ford vs. Ferrari tem sequências de tirar o fôlego, que empolgam e tornam o cinema uma verdadeira arquibancada de vibrações e torcida. Todavia, seu ritmo frenético não atrapalha o desenvolvimento dos arcos dramáticos de seus personagens, retratando os acontecimentos reais de forma reverente, mas evidentemente sensível. Mangold, Bale e Damon tiveram a capacidade de trazer essa história às telas, conseguindo impactar até aqueles que nunca pensaram que poderiam se emocionar com uma corrida.

Categorias
Tela Quente

Star Wars: A Ascensão Skywalker: Que a força esteja conosco

A conclusão é a parte mais importante de um texto. O porquê disso está ligado pelo fato de que é nesse parágrafo que as ideias do texto tomarão maior credibilidade e sustentação. Se um texto de 30 linhas necessita de atenções redobradas para conclui-lo, imagine uma franquia criada em 1977. São mais de 40 anos de história, que influencia diversas gerações pelos cinemas que passa, além de se manter como a maior saga de todos os tempos em termos de popularidade. Tendo isso em vista, Star Wars: A Ascensão Skywalker se autopromove ao desafio de encerrá-la, na presunção de relacionar oito filmes em um. Nesse sentido, o resultado é contraditório e bastante discutível.

Star Wars: O Despertar da Força (2015) iniciou o primeiro projeto da Lucasfilm sendo uma propriedade da Disney. Sua trama centrava-se na inserção de novos personagens e contextos, mas sempre lidando com a reintrodução de velhos conhecidos. A nostalgia aliada ao bom fôlego da aventura foi o que consagrou o filme entre fãs e crítica, e o responsável por isso foi o diretor/roteirista J.J. Abrams. Após desavenças criativas com Colin Trevorrow e uma recepção bastante instável de Star Wars: Os Últimos Jedi (2017), Abrams parecia a melhor opção. E, pelo seu histórico, sua volta ao universo foi aceita entre o público.

Contudo, a confiança no trabalho do diretor consegue ir se esvaindo ao longo do primeiro ato de A Ascensão Skywalker. Embora o filme, logo nos minutos iniciais, nos presenteie com cenas visualmente impressionantes e um até “retorno icônico” de Kylo Ren (Adam Driver), as explicações superficiais surgem rapidamente e transmitem a falta de criatividade que rodeia o roteiro da obra. Sendo assim, o roteiro escrito por Abrams e Chris Terrio demonstra o grande problema dessa trilogia: a falta de planejamento. Isto é, a quantidade excessiva de coincidências e acontecimentos convenientes, na tentativa de avançar uma narrativa que nunca teve o seu encerramento pensado anteriormente. Sem noção nenhuma de como a história irá prosseguir, o diretor se rende ao passado e tem a capacidade de retomar dúvidas já respondidas, além de estragar personagens que estavam resolvidos.

A trama gira em torno da busca por um artefato – até aqui sem novidades – que revelaria o local de uma possível nova Primeira Ordem, com uma artilharia capaz de destruir toda a República. Com isso, Rey, Finn e Poe se juntam na busca do objeto em uma aventura que guarda os melhores elementos que fizeram Star Wars ser o que é hoje. A relação entre os protagonistas, aliás, é o grande trunfo do filme, porque a química dos atores funciona, e estes entendem as aflições de seus respectivos papéis.

Rey, interpretada por Daisy Ridley, está mais madura como nunca. O seu arco está bem definido e é o mais explorado e revisitado, devido a sua importância para com a trama principal. A relação entre ela e Poe é inédita, já que nunca vimos os dois tanto tempo juntos em tela, e rende pela mistura entre a abordagem conflitante e amigável. Com os outros personagens, principalmente Finn e BB-8, sua dinâmica resume-se ao que já víamos antes. Em relação a própria Rey, a personagem continua agradando e demonstrando uma força notável, muito devido a ótima atuação de Ridley, que domina as emoções e conflitos na palma da mão. Olhar o início da jornada de Rey com o seu final – apesar de apresentar um erro tremendo – se assemelha a jornada de Luke Skywalker (Mark Hammil) em aceitar o seu passado e sua posição no universo, temas recorrentes nas trilogias.

Já Poe e Finn não têm nem um por cento da relevância de Rey na história. Oscar Isaac se esforça para entregar um bom papel e responde à altura. O episódio nove expande a história por trás do personagem, sendo uma das passagens que revela um pouco do seu passado, mas, ao final de tudo, as coisas apresentadas são subaproveitadas e completamente irrelevantes. Ainda, Finn (John Boyega) também é subaproveitado ao máximo, desde sua chegada em Jakku, e continua tendo a participação ofuscada por personagens mais interessantes. Provando a dificuldade de desenvolver os arcos, o roteiro não teve a mínima ideia de como encaixá-lo, deixando-o como um mero espectador das passagens relevantes. Não pode deixar de citar a participação de C-3PO, que brilha entre os outros andróides por, além de seu valor narrativo, ser o ponto cômico perfeito e irretocável.

Do lado negro da força, temos Kylo Ren em outro episódio do Casos de Família. Seu visual melhora com o uso do capacete – repare nas linhas que evidenciam sua reconstrução – que deixam o ator mais imponente e sua voz em um tom ameaçador. Mesmo que ele tire e põe a cada minuto, sua estética é o que conversa com o seu conflito de identidade. Mas… de novo? O Despertar da Força parecia ter sacramentado o destino e a escolha de Ren, entretanto, a narrativa retoma essa problemática e a resolve de maneira fútil e apelativa. Outro fator que marca a dificuldade de desenvolver emocionalmente as tramas propostas neste novo episódio.

Apesar do pouco aproveitamento dos protagonistas, a presença da Princesa Leia é inegável e fortíssima. A morte da atriz Carrie Fischer parece ter sido determinante para o desfecho, isso porque Abrams afirmou que Leia seria fundamental, respeitando a sequência Han Solo (Harrison Ford), Luke e Leia. O uso das cenas gravadas antes do falecimento fica óbvio, mas guarda um respeito e reverência admiráveis. A princesa tem um papel importante, só que sua presença é mais sentida no espírito dos personagens do que fisicamente. Dito isso, as cenas que a envolvem são, facilmente, as que tocam o coração do público.

E coração é o que A Ascensão Skywalker acerta em cheio. Os erros estão ali, e não são poucos ou esquecíveis, contudo, o filme tem as melhores das intenções. Está na busca constante pelo apreço dos fãs novos e velhos, resgatando referências e pequenos detalhes que enriquecem nostalgicamente. Apesar de escolhas duvidáveis, há construções visuais e sensoriais impressionantes, desde a constituição das vibrações do uso da força, até as trilhas – desta vez tímidas – de John Williams. A formação da dualidade entre o bem e o mal está empregada através das cores e sombras, que ressaltam as interações de Kylo Ren e Rey. Existem algumas participações especiais como a de Lando Calrissian, que não se compara a de Han Solo no episódio sete, mas empolga com a atuação carismática de Billy Dee Williams. Além disso, ocorrem momentos que buscam rimar com as trilogias antigas – tentando trazer conexões entre toda a saga e estabelecer pequenas semelhanças cinematográficas.

Afinal, depois dos famosos créditos fica a pergunta do porquê Star Wars: A Ascensão Skywalker, um filme tão respeitoso e apaixonado, ser contraditório, desde as escolhas temáticas até o fechamento dos arcos. Dito anteriormente, está evidente a falta de planejamento que permeou a idealização desta trilogia. Enquanto J.J. abre espaço para uma aventura de três filmes baseando-se – excessivamente – nas estruturas clássicas, Rian Johnson se permitiu construir uma obra original e um tanto quanto pessoal, saindo do padrão narrativo que a audiência de Star Wars está acostumada. O embate entre duas visões, uma mais conservadora artisticamente, e outra buscando algo único e particular, resultou em um terceiro filme que tem dificuldades de concluir perspectivas tão distintas. Sendo assim, o resultado talvez tenha sido influenciado por esses contrastes autorais.

Com erros e acertos, Star Wars: A Ascensão Skywalker apresenta verdadeiramente a dualidade entre os lados da força. Fora e dentro das telas. Apesar do final não ser o ideal, e faltou uma margem considerável para alcançá-lo, suas intenções em finalizar a série de maneira reverente devem ser reconhecidas, e acabam levando a ótimas sequências de ação e homenagem.  Aprender a ver cinema passa por esse processo de frustração às vezes, e Star Wars, mesmo com seus erros e tropeços, nos deixa uma lição: a força está conosco… sempre.