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Bird Box: A Inversão de Valores

O novo projeto da Netflix, baseado no livro homônimo de Josh Malerman, que marca a primeira empreitada de Sandra Bullock no serviço, tenta algo incomum quando relacionado aos gêneros. A mistura de terror e drama familiar precisa ser competente para alcançar o relacionamento psicológico com o público.  Se não ocorresse uma boa exploração e um aprofundamento diante desses dois conceitos, além do estabelecimento da conexão entre eles, provavelmente Bird Box seria um fracasso. Porém, diante do talento da sua protagonista e a habilidade técnica da diretora Susanne Bier, o resultado é positivo, mesmo que guarde alguns tropeços no decorrer da narrativa.

A história principal é fragmentada em dois espaços temporais. O primeiro ocorre no passado e mostra o início de uma doença desconhecida que faz com que as pessoas se suicidem apenas a olhando. Na segunda linha, temos os tempos atuais com Sandra Bullock e um casal de crianças em um mundo pós-apocalíptico completamente devastado. O filme consegue contrastar os dois ambientes e desenvolve a narrativa em prol da construção da protagonista Malorie Shannon.

Shannon transmite um perfil inicial clichê e pouco criativo. Ela está prestes a ser mãe, mas tem uma vida completamente distinta deste novo papel, negando a sua gravidez. Nos primeiros minutos a abordagem evidencia essa negação e já apresenta alguns momentos do futuro, apresentando, visualmente, um perfil bem diferente do que estamos presenciando. Ao passo em que a doença começa a se difundir na cidade, a moça encontra um grupo de sobreviventes, e é a partir do encontro que a história começa a se resolver e criar sentido.

Talvez todo a linha do passado seja o maior ponto fraco do roteiro. Não há um texto tão elaborado e inventivo, coisas que se tornam claras no fraco relacionamento entre os atores, – estes que são muito mal interpretados e decepcionam ao entregar atuações robóticas e pouco originais – na pobreza do cenário que aparenta ser de qualquer novela das nove e do tratamento superficial que se dá aos conflitos emocionais dos personagens. Em várias sequências o filme demonstra um vazio técnico e estrutural, mas sua linha futura contrasta inteiramente com essa ideia.

O futuro apocalíptico é profundamente pensado e idealizado. Os sets mais soturnos que abordam a natureza com árvores, rios e paisagens naturais, transforma o ambiente isolado e conecta com o psicológico dos personagens presentes. Principalmente a de Sandra Bullock, esta tem uma exploração tridimensional profunda e auxiliada pelos elementos cinematográficos presentes. As câmeras insistem em ângulos mais fechados e primeiros planos para realçar as emoções daquelas pessoas. A composição sonora também auxilia nessa composição tensa e cansativa, ficando impostada nas cenas de mais ação e perigo.

E é nas cenas futuras dentro das florestas que a mistura de gêneros se concretiza. Há diversos diálogos que expõem relacionamentos e transmitem angústia, enquanto os sustos tentam idealizar a figura da “doença” e o vínculo entre Shannon e as crianças constrói a concepção familiar da história, estabelecendo certas mensagens além da perspectiva psicológica da protagonista.

Deixando de lado o desfecho, – um bom twist – o que mais surpreende é a originalidade em abordar temas tão comuns em filmes dramáticos e familiares. Tudo o que acontece entre as crianças e Malorie Shannon tem um significado profundo e auxiliará eles durante a jornada, abordando aspectos familiares e sociais. Eles não estão mais em estruturas sociais presentes em um estado ou em uma sociedade, suas vidas retornaram ao estado natural sem laços pessoais, parentais ou comunitários, as crianças, principalmente, devem aprender e resgatar estes valores, mesmo que tenham de ser adaptados à nova situação mundial.

Apesar de apresentar certa bipolaridade em sua estrutura, Bird Box é extremamente habilidoso e inteligente ao abordar figuras no estado natural delas, e traduzir isso em transformações incríveis para seus personagens. Com um discurso fortemente voltado ao feminismo e a igualdade social, este novo projeto da Netflix se consagra como um dos melhores do serviço até agora.

Por Thiago Pinto

‘’E quando acabar de ler a matéria, terá minha permissão para sair’’

-Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012)