Blade Runner 2049 é uma extensão da obra de Ridley Scott. O diretor trouxe uma visão distópica e obscura no ano de 2019 para mostrar a crueldade da verdadeira natureza humana. Blade Runner, o Caçador de Androides revolucionou a forma de fazer ficção científica nos cinemas, mudou a visão das pessoas em relação ao gênero e criou uma legião de fãs conforme se passaram os anos. Agora, com Dennis Villeneuve no comando, a sensibilidade aliada à técnica do canadense demonstra reverência ao gênero, a ampliação de conceitos e temáticas já conhecidas, e uma verdadeira exemplificação das relações humanas com a tecnologia. O termo “blockbuster inteligente” se mostra insignificante para o que 2049 realmente é.
“Uma extensão” em todos os sentidos, literalmente. O roteiro escrito por Hampton Fancher, um dos roteiristas originais, e por Michael Green, que nos presentou este ano com o fantástico Logan, apresenta um forte embasamento na obra de 82, explorando velhos conceitos, mas apresentando e aplicando novos, introduz e desenvolve personagens profundos, e cria discussões que não eram possíveis naquela época. Atualmente, a nossa concepção tecnológica é muito mais abrangente. Nossas relações com as máquinas e nossos conhecimentos sobre elas estão avançando constantemente, e os roteiristas colocaram isso como um dos centros reflexivos da trama. A relação humano e máquina está presente em grande parte do corte do diretor.
O embate entre humanos e replicantes continua, traz novos pensamentos e perspectivas, deixando as mesmas questões no ar: o que nos faz humanos? Quais são as diferenças entre nós e eles? Perguntas sem respostas definitivas, sendo todas bastante subjetivas. Por isso se cria uma narrativa instigante, que pela construção dos personagens e dos diálogos vai se obtendo variadas respostas, mas nunca uma definitiva. Passaram-se 35 anos e todo o debate iniciado por Scott continua nos trazendo reflexões válidas.
Difícil falar sobre o enredo sem contar partes importantes. A história é completamente independente do primeiro, tem um ritmo lento, apresenta todas as evoluções que aconteceram nos 30 anos com os replicantes e a humanidade minuciosamente. Todos os elementos vão sendo colocados na tela com uma riqueza de detalhes muito pouco vista nos cinemas atualmente. É para apreciar gradativamente e criar uma interpretação pessoal sobre a obra. Rick Deckard (Harrison Ford) e K (Ryan Goling) têm um caminho emocionante, angustiante e épico para percorrerem, com algumas reviravoltas que fazem a longa duração (2h40min) passar voando. Voltar para esse universo pode ter sido apenas mais uma das várias jogadas da indústria hollywoodiana, mas valeu a pena o investimento.
Na direção, Dennis Villeneuve troca a sutileza de A Chegada pela agressividade e obscuridade de Blade Runner. Em conjunto com Roger Deakins, Villeneuve se preocupa com cada detalhe dos planos, dos cenários, das luzes e das cores que remetem ao estilo noir. Los Angeles continua caótica, mas muito mais depressiva. A poluição parece ter se agravado com o tempo, prédios mais altos são quase indistinguíveis e difíceis de se visualizar de longe. Tudo é neutro, a cidade é padronizada pelas cores pretas e cinzas dos prédios e das imundícies. A única demonstração de cor e vida são os hologramas de marcas famosas, poderosas e ricas que representam os objetivos inalcançáveis da população por cima de suas cabeças: renda e qualidade de vida.
Toda essa mudança no design de 82, criada por Villeneuve e Deakins, refletem no psicológico do personagem de Ryan Gosling, o Agente K. O blade runner entra em conflito consigo mesmo na hora que quer descobrir as verdades sobre a sua própria existência, este é corpo do roteiro. Os acontecimentos estão conectados à ânsia de respostas por K. Sua jornada remete Rick Deckard e seu jeitão incômodo de viver a vida como ela é na Terra, sem grandes esperanças e feitos.
Deckard está de volta com a brilhante interpretação de Harrison Ford, que não trabalhou apenas pelo dinheiro, e sim, pela qualidade do roteiro, como o ator mesmo dissera em várias entrevistas. O aposentado blade runner parece estar mais cansado e desgastado, carregando fardos do passado nas costas, lidando com o vazio existencial que remete à futurística Las Vegas apresentada. Outro mérito de Villeneuve e Deakins. Como Blade Runner 2049 se comporta como cyberpunk, é necessário colocar elementos extremos para comparações entre presente e futuro. Troque a iluminação e o neon dos cassinos e bares pela simples luz do sol, as estruturas que remetiam diversão e entretenimento por estátuas monumentais quebradas que exalam tristeza e solidão. O centro movimentado da antiga Las Vegas foi preenchido pelo deserto inabitável: o novo recanto de Deckard e o reflexo do seu vazio íntimo.
San Diego também aparece como um dos cenários, e assusta pela proximidade da nossa realidade. A cidade virou um lixão completo, onde todos os resíduos orgânicos e restos de outras cidades são despejados. Crianças trabalham como escravas para as colônias, e são lideradas pelo ator Lennie James. Escravidão, meio ambiente e trabalho infantil são discutidos, embora não diretamente, em toda a sequência que se passa na cidade.
Para mostrar mais uma relação entre os personagens e a direção, temos Jared Leto como Wallace, o antagonista e criador de replicantes da sua companhia. Sua participação pequena não interfere na importância do personagem em mais um grande debate oferecido pelo longa, entre a lógica pura e o amor. Nota-se quando a câmera entra no prédio da corporação de Wallace como as sombras formam linhas simétricas, ondulações perfeitas que seguem um fluxo coerente, representando as ideias racionais e matemáticas do personagem, sem a interferência das emoções.
Além da fotografia, das sombras e cores perfeitas para aplicar o tom correto do cyberpunk, a trilha sonora composta por Jóhann Jóhannsson, Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch, e os efeitos sonoros, completam a ambientação de 2049. Não tem como negar a forte influência de Vangelis na composição sonora, propositalmente, claro. Seus traços musicais não têm como serem esquecidos, e os compositores homenageiam criando novas tendências em cima deles. Já no primeiro plano geral do filme, a presença da trilha nos faz retornar ao universo dos replicantes de mente e “alma”. Os efeitos sonoros das armas, dos carros e dos aparelhos tecnológicos são super bem aproveitados. A mixagem de todos quando K está nas ruas de Los Angeles movimentadas e barulhentas é absurdamente incrível. As salas XD e IMAX são as mais apropriadas para este tipo de experiência.
Aos fãs de Blade Runner, o Caçador de Androides, há uma quantidade significativa de referências ao filme. Vamos de algumas notas da composição da trilha até em acontecimentos da própria obra. Atenção também na maquiagem excepcional e o figurino extravagante, que guardam algumas relações sutis com o original.
Blade Runner 2049 não é apenas um “blockbuster inteligente” e uma “homenagem ao antecessor”. É uma obra de arte cinematográfica independente e única, com um senso de estética deslumbrante, uma história emocionante e filosoficamente rica, que ficará nos corações e mentes de todos os fãs por suas mensagens e reflexões. Palmas para Dennis Villeneuve, as lágrimas na chuva nunca foram tão reais.