A nova obra distribuída pela Netflix promove uma sessão leve e tranquila. Se tivéssemos filmes como Enola Holmes no programação da Sessão da Tarde estaríamos muito bem servidos. Assistir à história da pequena detetive resulta em uma leveza totalmente necessária por agora. Contudo, sua leveza não é obstáculo para tratar assuntos sérios e pertinentes de maneira correta, com a extrema sensibilidade requisitada por eles.
Enola Holmes é irmã do mais conhecido detetive da literatura e das artes, Sherlock Holmes. Com adaptações, tanto na TV como no cinema, além das diversas edições produzidas por Arthur Conan Doyle, sua fama foi o construindo em um verdadeiro símbolo da cultura. Palavras e expressões como “elementar” e “meu caro Watson” ficaram popularmente conhecidas e usadas ao redor do mundo; a perspicácia do detetive aliada à complexidade das tramas que Doyle concebera o fizeram ser uma figura incontestável, de julgamentos indispensáveis. Através da obra de Nancy Springer, tivemos o surgimento de uma caçula na família Holmes, Enola, onde esta toma o protagonismo para si. E em sua adaptação cinematográfica, Enola é justamente a caçula que toma as rédeas da história, colocando às vezes o próprio “maior detetive da história” no bolso.
E é nessa mudança de protagonismo que Enola Holmes funciona tão bem, como filme e discurso. Millie Bobby Brown, que fez sucesso escandaloso em Stranger Things, interpreta aqui uma menina completamente transgressora das regras sociais impostas na Inglaterra do século XIX. Sua postura é resultado da criação provida pela mãe, Eudoria Holmes (Elena Bonham Carter), que participa de movimentos feministas ingleses enquanto ensina a filha tudo o que for necessário para torná-la uma cidadã exemplar, mas, principalmente, livre. O desaparecimento da mãe, contudo, ocorre de forma repentina e serve como ponto de partida ao desenrolar da trama, fazendo com que Enola saia em uma busca desenfreada. Millie, aliás, é impressionante no papel, conseguindo aplicar um tom equilibrado à personagem, enquanto consegue mostrar rigidez e descontentamento nas horas corretas, também sabe evidenciar as dificuldades e os conflitos internos da protagonista, afinal, é apenas uma garota de 16 anos.
Como elenco de apoio, temos Sam Claflin e Henry Cavill como Mycroft e Sherlock, respectivamente. Ambos compõem a família Holmes e são irmão de Enola. Por ser o irmão mais velho, Mycroft, devido ao desaparecimento da mãe, se torna responsável pela guarda de Enola e decida colocá-la em um internato. E digo logo de cara que Claflin está ótimo, mesmo com poucas cenas e cumprindo um papel burocrático, o ator tem as feições e os gritos de um verdadeiro malfeitor de um filme infantojuvenil. Do outro lado, temos o nosso detetive Superman – e talvez isso seja suficiente. Diferentemente de Millie, que consegue distanciar Eleven de Enola, Cavill se tornou tão icônico no papel de Superman que não se consegue diferenciá-lo de Sherlock, e a atuação dele, embora não comprometa, pouco ajuda nessa desassociação. Entretanto, não há só lados negativos na interpretação de Cavill, seu figurino e sua maquiagem, além do notório físico do ator, dão imponência à presença de Sherlock no ambiente – repare na cena do internato, onde a luz solar se confunde com a figura de Sherlock; nela, podemos dizer que há realmente um Sherlock Holmes.
Acerca da narrativa, há surpresas agradáveis na direção de Harry Bradbeer. O diretor encontra soluções criativas para o desenvolvimento da história, como o uso fluido dos flashbacks na montagem junto às cenas do presente; quando Enola se encontra em uma enrascada, se lembra imediatamente da mãe a ensinando e a treinando – existe uma passagem particular onde ocorre uma briga física (até onde a classificação 12+ permite), e as cenas do passado e do presente se intercalam criando um ritmo muito satisfatório. Complementando esse sensação, a trilha sonora composta por Daniel Pemberton é animada e eleva o tom aventuresco do filme. Outra solução interessante de Bradbeer é o uso da quebra da quarta parede; quando o autor olha para a câmera e conversa diretamente com o espectador. Millie parece dominar a técnica há anos, conseguindo, através de poucos olhares à câmera, expressar tudo o que ela está passando. E o estilo da movimentação da câmera – captando a ação das cenas juntamente às quebras de Enola – é um ponto altíssimo da cinematografia de Giles Nuttgens (com belo currículo.).
Contudo, o virtuosismo técnico de Enola Holmes esbarra na própria limitação do diretor. A quebra da quarta parede e a montagem dos flashbacks são bem executados, mas usados em excesso constrangedor, porém, compreensível pelo público-alvo. A Enola fala tanto, mas tanto com a câmera, que esse elemento começa a se desgastar e você só quer que a história dê prosseguimento no meio de inúmeras interrupções. Os flashbacks também são excessivos, usados demasiadamente na explicação de QUALQUER momento importante ou decisivo dos mistérios apresentados. Parece que o Bradbeer se acomodou nesses elementos e esqueceu que um filme investigativo também pode ser solucionado e desenvolvido com outros auxílios, sem excessos ou soluções fáceis (presentes aqui).
Em relação ao tema proposto de Enola Holmes, só elogios a serem feitos. A história é sobre emancipação e amadurecimento, onde coloca uma garota tendo que enfrentar diversas opressões, de caráter social principalmente, que ditam normas e regras pautadas em um conservadorismo moral gritante. Mesmo que estes assuntos espinhosos estejam dimensionados a um público mais infantil, o filme não deixa de tratá-lo com a seriedade devida, servindo como incentivo para jovens que buscam viver seus próprios desejos e convicções. Além disso, a mensagem construída no final aquecerá até o coração dos mais velhos, concluindo uma trama marcada por superações e pela busca de autonomia.
Enola Holmes é, indiscutivelmente, a sessão da tarde em sua melhor expressão. Há aqueles que tratarão o filme como um simples conto infantojuvenil – e ele também é isso – e deixarão escapar significados que possam interessá-los. A lição que fica é nunca subestimarmos filmes que, no início, possam parecer que não têm nada a dizer. Esta obra não é o caso, embora passe longe de ser perfeita. “Para quem está trabalhando?”, “Inglatera.”, é um bom exemplo de diálogo que reflete a capacidade de um filme infantojuvenil ser tão sutil e, ao mesmo tempo, tão ambicioso ao trabalhar seu discurso. Em tempos difíceis como esse em que vivemos, talvez essa ambição seja o que precisamos.