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O Imortal Hulk: Os monstros condenados

Para aqueles – como eu – que nunca colocaram a mão em uma revista do Golias Esmeralda, O Imortal Hulk, da dupla criativa Al Ewing e Joe Bennett, é, além de ótima porta de entrada, uma obra precisa ao explorar as raízes da humanidade e destrinchar o sentido, a razão e o fardo de ser humano (ou monstro?). A escrita ágil e a arte incomparável são as principais razões da qualidade surpreendente do material, que não só fará qualquer curioso se interessar a explorar o vasto universo do personagem, como também servirá de comparação para obras futuras e passadas.

Sem ter qualquer contato com materiais do Hulk, houve um receio inicial ao comprar as primeiras seis edições lançadas até a data desta publicação pela editoria Panini; pelo simples fato de um dos personagens que menos me atraiu no universo dos heróis ser o título da revista. Embora nunca tivesse motivos para desgostá-lo, Hulk nunca foi foco da minha atenção e tampouco do meu tempo de leitura, e as histórias provenientes dele ficavam fora do radar, sem contar o seu universo riquíssimo que foi deliberadamente negligenciado por mim. Contudo, a experiência elucidou o quanto estava errado sobre o personagem-título.  Isto prova o brilhantismo da linha comandada por Ewing e Bennett; ambos construíram uma trama tão atraente, complexa e reflexiva, que mesmo o cara mais desinteressado ficaria com os olhos vidrados da capa à quarta capa.

Essa foi minha experiência ao ler O Imortal Hulk, que ainda não foi finalizado – e no Brasil está um pouco atrás das publicações americanas por conta da distribuição, fator comum aos leitores brasileiros cientes das dinâmicas do mercado de quadrinhos no país. Todas as edições contam com um trecho inicial, que simplifica os temas abordados no quadrinho e promove uma marca registrada e exclusiva de edição por edição, dando importância às suas individualidades e abordagens, enquanto algumas priorizam a ação, principalmente quando os Vingadores, a Tropa Alfa e a Base Sombra aparecem, outras partem para construções filosóficas – marcadas por tentativas de conceber e interpretar imagens sobrenaturais e divinas -, além daquelas que fogem um pouco dos temas principais, e demonstram a inventividade da dupla pela alternância dos traços e do conteúdo, como a terceira revista, que trabalha com relatos fragmentados de um mesmo caso específico suspeito da presença do Hulk.

Homem, Monstro ou… ambos? Eis a primeira pergunta do quadrinho, eis o legado de Bruce Banner… conviver com um monstro interior que desperta à noite, mas de dia o atormenta – e o reflexo de vidro é um ótimo artifício para ilustrar o conflito de sua identidade. Porém, as escolhas artísticas acabam favorecendo a presença do Hulk em detrimento de Banner, com visual assustador; um monstro em forma de demônio verde. A arte de Joe Bennett é a razão para O Imortal Hulk ser tão aclamada pela crítica e público. Através do roteiro de Ewing, o quadrinista retorna às raízes do personagem para desenhá-lo da maneira mais assustadora e terrível possível. Hulk é um monstro? Demônio? A outra face de Deus? Diabo? Maldição? Bem, toda maldade grotesca – e bondade aparente – imaginável cabe para descrever as figuras traçadas por Bennett.

A exploração física dos membros, dos músculos e das transformações do Hulk é outro ponto para se prestar atenção. E as escolhas sempre trabalham a favor da história a ser contada; quando Hulk se assemelha ao herói comum, que busca trazer justiça (um tanto quanto distorcida), sua representação é grandiosa, peito estufado, a clássica imagem do personagem. Contudo, quando ocasiões mudam sua aparência (absorção de radiação, mega explosões, secreções digestivas que drenam energia) a imagem do Hulk se transforma em algo grotesco, lembrando um demônio em pé.

E a dinâmica entre os artistas fica ainda mais evidente em momentos pontuais; quando Hulk está no inferno com a radiação absorvida, como se estivesse sofrendo uma punição divina, um julgamento moral e religioso, seus músculos enormes dão espaço para sobras de pele, penduradas pelos ossos finos, e mesmo assim sua ânsia por violência o faz lutar bravamente e incansavelmente, confundido-se com um morto-vivo. Há outras sequências que o tornam como um espantalho, pernas, braços e olhos arrancados, enquanto em outras seus membros são divididos em prol de experimentos. É absolutamente agonizante e igualmente extraordinário, uma arte de tirar o fôlego restitui a figura monstruosa do Gigante Esmeralda.

Essa mesma arte colabora com a construção narrativa de toda a saga do Imortal Hulk. A exploração física de Hulk é proporcional à exploração psicológica de Banner; a pergunta Homem, Monstro ou… Ambos? é, desta maneira, o condutor das opções de Ewing. Qual é a maior atribuição de Hulk? O físico. E a de Banner? A mente. Dessa forma, as maiores notoriedades de ambos tendem a ser desmembradas e exploradas por Ewing, em uma jornada que julga – ao mesmo tempo que venera – as figuras do homem e do monstro. Hulk é a sombra, o reflexo do homem, que surge à noite; soa como maldição, pagamento dos pecados de Banner, mas também soa como milagre, um dom único, já que a essência de Hulk é – por Ewing e Bennett – naturalmente dúbia (repare as distinções entre a mão esquerda e direita de Deus).

Se a essência de Hulk é dúbia, os nossos temores a ele também seriam? O medo das pessoas é devido à sua monstruosidade, capacidade destrutiva, ou há um componente de inveja humana? Afinal, a capacidade de exteriorizar demônios e emoções, vista como fardo e milagre, se tornou inerente a Banner, sendo assim, o medo pelo Hulk não é apenas por representar uma ameaça física e psicológica, mas ser a prova frustrante da nossa incapacidade enquanto humanos: não podermos, nem um dia sequer, nos transformarmos em nossos próprios reflexos.

Pensando na perturbada mente de Banner, que compartilha-a com outras identidades, o quadrinho aborda a inquietude e o tormento do protagonista – desde elipses por conta de trocas de identidade, quando o quadrinho apenas salta de um momento para outro sem explicação, até a maneira quando os pensamentos, tanto de Bruce como de outros personagens secundários, se intercalam com as sequências de ação, do seu desenvolvimento ao desfecho. As próprias citações iniciais também são exemplos de como Ewing traça o tom da edição com certo estilo de contexto, variando da literatura à religião, do cinema ao teatro, flertando com lições da psicologia analítica.

Nota-se como o artigo tem mais perguntas do que respostas concretas. Isso ocorre de forma semelhante no quadrinho. Em nenhum momento, pelo menos até onde li, os autores resolvem seus raciocínios e julgamentos, apesar de apresentarem respostas possíveis. Não batem o martelo, levantam questões, criam e desenvolvem dúvidas pertinentes que acompanham os pensamentos de Banner e do leitor. Há um movimento contemporâneo nos quadrinhos de herói, pegando o exemplo do roteirista Tom King, que é de explorar mais a humanidade nas histórias de heróis; enquanto King gosta de experimentar uma relação íntima com o fã, através da emoção e dos dramas dos personagens, a dupla trata de trazer questionamentos constantes, que colocam em xeque a própria humanidade do leitor.

Ewing e Bennett traduzem questões reflexivas contemporâneas em um ótimo quadrinho de ação, aventura e terror. Enquanto a ação e a aventura estão ao longo da história, o terror circunda por fora ao enaltecer e insistir nas perturbações de Banner e explorar sua relação com o Hulk, partindo de argumentos, citações e alegorias religiosas, filosóficas e políticas. Se Banner parece estar condenado a viver para sempre em seu confuso e tenebroso universo pessoal, o quão diferente nós somos dele, ao compartilharmos um fardo tão semelhante quanto viver neste mundo?

Por Thiago Pinto

‘’E quando acabar de ler a matéria, terá minha permissão para sair’’

-Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012)