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Corra para alcançar Easy Breezy

Muitas vezes nossas vidas se resumem a uma constante correria. Não raramente, corremos contra o tempo para trabalhar, estudar, pagar contas e todas as outras tarefas que encontramos como obstáculo para o nosso dia a dia e, assumindo função parecida aos de cavalos de jockey, acreditamos em nossas escolhas e saímos em disparada para cruzar as linhas que representam o alcance de nossas conquistas e apostas.

Da mesma forma, a editora Comix Zone agora também aposta na jovem quadrinista sino-italiana Yi Yang e traz seu quadrinho de estreia em nosso território: Easy Breezy, uma narrativa intensa e viciante como o ritmo frenético de nosso cotidiano.

Dois estudantes de ensino médio. Um, aluno inteligente e aplicado; outro, um valentão que na maior parte do tempo foge da aula para aplicar golpes com seu tio. Em situação comum nos ambientes escolares de todo o mundo, um seria o alvo favorito do outro. E, de fato, assim aparentava ser em Easy Breezy. Aparentava, mas não é.

IMAGEM: Amazon.com.br

Precisando de dinheiro, Li Yu e seu tio encontram em uma van estacionada na rua a oportunidade perfeita de conseguir lucro. Para seu total azar, um garoto testemunha toda a ação enquanto tranquilamente saboreava seu lámen: Yang Kuaikuai, justamente o desafeto de Yu.

Sem ter escolha, Yu acaba arrastando Kuaikuai para dentro na van com medo de que seu arquirrival o denuncie e seguem em disparada, tal qual uma corrida de cavalos, acelerando pela cidade para vender a van e fugirem do motorista anterior, que parte em perseguição de todos. Para piorar a situação, pouco depois do início da corrida, percebem que o veículo contava com mais um passageiro: Yun Duo, garotinha que foi vítima de sequestro pelo motorista original e estava dormindo no banco de trás. Agora, os dois garotos e o senhor de meia-idade são procurados por mais uma atividade criminosa, que dessa vez não cometeram.

IMAGEM: Amazon.com.br

Toda a trama é ambientava em Benxi, cidade natal da autora. Seu cenário, casas e prédios são baseados em sua memória de cidadã-nativa da região. Interessante para o leitor, pois temos aqui um cenário incomum no mundo dos quadrinhos e, sempre contando com sua abrangência, a narrativa gráfica mostra-se adaptável a qualquer cultura, narrativa ou condição geográfica, independentemente de onde vier.

A arte de Yi Yang mescla várias escolas diferentes de quadrinhos. Temos um pouco de mangá, de manhwa, comics… todas as suas influências são misturadas como em um liquidificador e servidas similarmente a uma vitamina com muitos ingredientes, porém que curiosamente pode-se perceber a presença de todos ao experimentar. Sua arte lembra principalmente a de Taiyo Matsumoto (Tekkon Kinkret, Sunny) e a velocidade com que narra sua história, contando com muita ação e onomatopeias que praticamente saltam para fora dos quadros, mostra o sincretismo de uma produção asiática no mercado europeu, onde a autora iniciou sua carreira.

A edição da Comix Zone é muito parecida com o que encontramos normalmente em mangás: formato A5, capa cartonada e papel offset. É o que basta, não é necessário luxo tampouco invenções para uma história de leitura tão rápida e despretensiosa. Seu objetivo principal é divertir e não ter um acabamento destoante dos demais.

Easy Breezy é uma grata surpresa pois passa longe de ser mais um quadrinho asiático (ou seria europeu?) dentre tantos que enchem nossas bancas e livrarias. Seu elemento mais presente foge dos mangás ou manhwas mais tradicionais e sua direção versa ao underground da mesma região. Foi dada a largada, prepare-se para correr e ler mais esse lançamento o quanto antes ou chegará atrasado.

 

Easy Breezy
Yi Yang (roteiro e arte)
Fernando Paz (tradução)
Comix Zone
Capa cartonada
184 páginas
15 x 21 cm
R$74,90
Data de publicação: 09/2022

 

 

 

 

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Quase nada é o que parece ser em A Mão Verde

Com o que você sonhou hoje? Muitos precisarão de um bom tempo para responder a essa pergunta e mesmo assim terão dificuldades. A conclusão para tal questionamento em alguns casos pode até ser clara, mas a maioria dos relatos é imprecisa, nebulosa ou até impossível de se recordar. Sonhos podem significar muito ou serem apenas uma forma de nossas mentes experimentarem o que ainda não provamos na realidade, e muitas vezes sequer chegaremos a vivenciar.

A Mão Verde, lançamento da Comix Zone, bebe justamente nessa água: de navegar por correntes sinuosas em que não se sabe ao certo até onde vão chegar. Durante o período de maior experimentalismo psicodélico da História da humanidade, Édith Zha e Nicole Claveloux entregam diversas narrativas curtas, despretensiosas e de arte espetacular. Embora nenhum capítulo ultrapasse 10 páginas, sua técnica de desenho que mistura tinta guache e aerógrafo demonstram uma inovação para a época que a coloca em um patamar revolucionário de obras como Saga de Xam e Kris Kool.

IMAGEM: Amazon.com.br

Porém, mesmo com o seu primoroso traço e maestria no uso de cores, que conquista a atenção de todos os que encaram suas páginas, tal nova possibilidade de contar histórias mostra em seu cerne ainda uma inconsistência relativa ao conteúdo expresso. No primeiro capítulo, exatamente o que dá título ao livro, temos uma conversa de apartamento entre uma mulher e uma ave a respeito de um vegetal capaz de se comunicar com ambos; Em A Noite Branca, a mesma protagonista visita o museu em que aparentemente trabalha e conversa com vários dos itens expostos por lá; Já no tomo O Medo Azul, a ave residente do apartamento, cansada de sua vida encastelada, busca liberdade ao sair da moradia que funciona como uma espécie de gaiola para o personagem, mas seus planos não são bem-sucedidos e ele volta ao seu endereço habitual.

IMAGEM: Comix Zone

Grande parte das histórias, principalmente as cinco primeiras –publicadas na revista Metal Hurlant no decorrer do ano de 1978– são praticamente ininteligíveis, justamente nos capítulos em que a parceria entre Edith Zha e Nicole Claveloux está presente. O resultado, como o próprio prefácio da edição, assinado por Jean-Louis Gauthey afirma, entrega “páginas suntuosas de narrativa desconcertantes [sic]”. Assim, denota-se que não há o que ser compreendido em sua essência, e sim somente apreciar um conjunto de ideias expostas. Apesar disso, tais capítulos se completam em única narrativa.

As seis últimas, criadas apenas por Claveloux e publicadas originalmente no periódico Ah! Nana são a priori mais palatáveis, muito pela maioria destas serem baseadas em contos famosos, mas o expressivo surrealismo ainda está presente e torna histórias como Pranca de Nefe e A Imbecil e O Príncipe Encantado experiências diferentes até para os que já conhecem tais fábulas desde antes de aprenderem a ler.

IMAGEM: Comix Zone

Tamanha petulância é proposital por parte das autoras? Provavelmente nunca saberemos, uma vez que, assim como em nossos sonhos, nem tudo é feito para ter uma explicação precisa. Por exemplo, há quem até hoje tente entender alguma ideia central que conecte todo o conteúdo de Um Cão Andaluz, curta-metragem de Luis Buñuel e Salvador Dalí, quando, na verdade, os próprios autores em vida afirmaram que a película consiste apenas de ideias soltas e desconexas. Apesar dos pesares, a confusão encontrada em A Mão Verde acaba não comprometendo o prazer de apreciar a história, desde que não se espere grandes explicações no decorrer das páginas e assim cada leitor pode chegar a uma conclusão diferente do que foi lido.

A edição da Comix Zone, baseada claramente na versão publicada em 2019 pela editora Cornélius, segue o padrão da maioria dos títulos já lançados pela editora, com formato álbum 21×28,5 cm em capa dura, lombada e com um bookplate não autografado como brinde. Além disso, temos o já citado prefácio composto por nove páginas introdutórias com texto e ilustrações que cumprem de forma necessária sua função de apresentar ao público a biografia de duas autoras as quais, mesmo com suas inovações narrativas, ainda eram nomes inéditos no mercado brasileiro. A parceria entre as autoras ainda se repete em Morte Saison (Fora de Época, em tradução livre) que, assim como A Mão Verde, contém histórias curtas e foi relançado na França em 2020 também pela Cornélius.

A Mão Verde não é uma antologia de fácil leitura e não se deve esperar uma compreensão direta de seu conteúdo. A obra como um todo serve melhor como uma coletânea de ideias e possibilidades de se expressar, e por isso é aconselhável que sua leitura deva ser feita da forma mais despretensiosa possível, com o mesmo intuito que tentamos interpretar até mesmo nossos devaneios mais próximos da narcolepsia, por mais absurdos que pareçam ser.

A Mão Verde e Outras Histórias
Édith Zhan (roteiro)
Nicole Claveloux (arte)
Fernando Paz (tradução)
Audaci Junior (revisão)
Comix Zone
Capa dura
96 páginas
21×28,5 cm
R$89,90
Data de publicação: 03/2022

 

 

 

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Quem é de fato Degenerado?

Desde que o Grupo Editorial Autêntica decidiu se aventurar no mercado de histórias em quadrinhos brasileiro fundando a Nemo, seu selo voltado a esse mercado passou por algumas transformações: começou intercalando entre material nacional e estrangeiro com autores consagrados do mercado franco-belga em publicações com grande formato e capa dura. Experimentando novas fontes e em busca de adaptação perante as exigências do mercado e público, estabeleceu-se com material autoral da cena alternativa europeia e norte-americana. Prestes a completar uma década de vida em 2021, a Nemo traz em seu mais recente lançamento Degenerado, um título que, mesmo que de forma indireta, tem muito a ver com suas mudanças ao longo desses anos.

Não é fácil ser alguém. Mesmo cada um em particular pode não saber profundamente quem é ou o que gostaria de ser. A vida e nossa forma de viver é feita de experiências, de riscos que trazem acertos, erros, vitórias e derrotas. Não existe vida sem risco. Em boa parte ou até por pura teimosia, só temos consciência do resultado de nossas escolhas caso as coloquemos em prática.

Paul Grappes e Louise Landy conheceram-se ainda jovens em uma confraternização entre amigos. Como diversos casais afogados na ingenuidade da paixão de um pelo outro, casaram-se desejando passar o resto de suas vidas juntos. Mas então veio o serviço militar e Paul, por uma lei que ia além de seu poder, precisou se alistar no exército. Então em 1914 estoura A Grande Guerra, a Guerra das Trincheiras, trincheiras que foram usadas não só para separar o militar recém-promovido a cabo de seus adversários, mas também de sua amada.

IMAGEM: Grupo Autêntica

Afetado pelos horrores que presenciou, Paul torna-se desertor no intuito de voltar aos braços de Louise e para fugir da prisão iminente aos que abandonam o campo de batalha, começa a se vestir e comportar como mulher assumindo a identidade de Suzanne. Porém, Paul aos poucos vai não apenas se adaptando, mas desfrutando de sua nova vida, assim percebendo que talvez agora sim era a pessoa que desejava ser e que sempre esteve dentro de si, e não a pessoa que era outrora e apresentava em seu exterior.

IMAGEM: Grupo Autêntica

Em uma alternância quase impossível, os desenhos de Chloé Cruchaudet conseguem ao mesmo tempo serem pesados e delicados. O clima pesado e os horrores da guerra coexistem em uma Paris retratada quase sempre em tons de cinza, salvo raras exceções onde as cores azul e vermelho, que representam na cultura popular liberdade e fraternidade na bandeira da França, gritam por espaço na narrativa densa como uma neblina.

Baseada em uma história real, Degenerado é em grande parte sobre uma crise existencial em consequência da guerra, mas pouco abordada ou sequer imaginada por muitos de nós. Suzanne na verdade pedia socorro dentro de Paul Grappes para mostrar que existia. A possibilidade de contar sua história que resultou no livro La Garçonne et L’Assassin mostra que sua necessidade de se esconder era na realidade a chance de se libertar adentrando em um novo mundo. O ser humano é frágil como uma casca de ovo, porém quase sempre é obrigado a ostentar-se tal qual uma pele grossa e pouco permeável como a de um réptil.

IMAGEM: Grupo Autêntica

Estabelecendo-se já há algum tempo em um formato característico, edição da Nemo segue os padrões anteriormente adotados pela editora, com capa cartonada e papel couchê em formato 25 x 19 cm. Esta é a primeira obra de Cruchaudet publicada no Brasil, e a escolha por Degenerado em sua estreia provavelmente deve-se à quantidade de prêmios arrebatados pela obra principalmente na França e Itália. Assim como já fez com outros quadrinistas da Europa, a exemplo de Fabién Toulmé e Gauthier, vale a pena apostar em outras obras da autora por aqui, mesmo outras sendo menos conhecidas ou agraciadas, mas ainda assim trazendo frescor ao mercado brasileiro. Como sugestão, vale conferir por exemplo Groenland Manhattan e La croisade des innocents, publicadas originalmente em 2008 e 2015.

Degenerado
Chloé Cruchaudet (roteiro e arte)
Renata Silveira (tradução)
Bruna Emanuele Fernandes (revisão)
190 páginas
25 x 19 cm
R$69,80
Capa Cartonada
Nemo
Data de publicação: 11/2020