Para muitos, Batman: O Cavaleiro das Trevas se trata de uma simples história sobre um duelo entre os dois maiores ícones da DC Comics. E se eu te disser que não? E se eu te disser que ela vai muito além disso?
“Eu quero que você se lembre, Clark, em todos os anos que estão por vir, em seus momentos mais íntimos, eu quero que você se lembre da minha mão na sua garganta, eu quero que você se lembre do único homem que te derrotou.”
Vindo de uma família pobre de operários irlandeses, Frank Miller se mudou para o violento bairro de Hell’s Kitchen em Nova York ainda em sua adolescência, para tentar a vida como artista. No início, Miller trabalhou em títulos genéricos na Gold Key Comics. Até que, em 1979 teve a chance de mostrar seu talento a Jim Shooter, na época editor-chefe da Marvel Comics. Em pouco tempo, assumiu o título do Demolidor, que vinha de uma constante queda nas vendas, mas isso a gente deixa pra outro dia.
Em Batman: O Cavaleiro das Trevas, Frank Miller consagrou o Batman que conhecemos hoje. Psicótico, violento e sombrio, características que já estavam sendo apresentadas alguns anos antes por Denny O’Neil e Neal Adams na década de 70. Policiais não eram mais os mocinhos e você não podia confiar em seus pais, o morcego entrava na Era Moderna dos quadrinhos, onde o mundo não era mais o mesmo, e todos eram passíveis de corrupção.
Antes de tudo, é preciso entender o contexto e a época em que a história é baseada. O ano era 1986, a Era do novo conservadorismo de Ronald Reagan nos Estados Unidos e a tensão nuclear da Guerra Fria regiam o mundo. Era uma época sombria de incertezas. A energia nuclear poderia ser a nossa salvação ou nossa destruição. Muitos heróis e vilões criados durante o início dos anos 60 receberam seus poderes advindos da radiação.
Desemprego, violência, inflação, decadência… eram coisas que incomodavam a mente tempestuosa de Miller na época.
Na história, ambientada em um futuro distópico e autoritário, Bruce Wayne está aposentado há 10 anos de suas atividades como vigilante, após a trágica morte de seu parceiro, Robin (Jason Todd) e de diversas pressões governamentais, que tornara qualquer atividade de mascarados ilegais. O Batman não existe mais e o mundo vive em decadência, a mercê das gangues e da corrupção. Mas agora, com 55 anos, ele se vê obrigado a reviver velhos hábitos e vestir novamente o manto do protetor de Gotham:
Considerado um fora da lei, ele age como um agente anti-governo para proteger o povo. Para muitos, chega a ser um personagem com tendências fascistas, já que ele atua como juiz, júri e executor, passando por cima de qualquer burocracia ou legislação. O traço de Miller casa perfeitamente com a narrativa, dando um tom ”sujo” e decadente a história. Não podemos esquecer da arte-final magistral de Klaus Janson e as cores de Lynn Varley que complementam a obra e toda sua atmosfera.
Um detalhe interessante em algumas das páginas da Graphic Novel é seu formato 4×4. Uma grade de 16 quadros com textos e diálogos torna a leitura mais densa e pode assustar alguns leitores inexperientes logo de cara. A inspiração de Miller para o personagem veio de uma figura carimbada dos filmes de ação. Clint Eastwood, de Impacto Fulminante de 1983, onde o policial Harry Callahan é forçado a voltar a ativa e botar ordem na casa com sua Magnum 357. Um clássico do cinema Brucutu!
Cavaleiro das Trevas foi um marco no mercado também. Visto antes como um produto infantil, os quadrinhos ganharam notoriedade e atenção da mídia da época. O impacto da obra e o boca-a-boca fizeram com que o título tivesse 4 reimpressões seguidas, coisa que não acontecia há pelo menos 30 anos.
Logo na primeira parte da trama, somos apresentados ao reabilitado ex-promotor público e criminoso, Harvey Dent (Duas Caras). Através de uma cirurgia plástica, Harvey tem sua face reconstruída e aparentemente arrependido de seus crimes, deseja ser reintroduzido a sociedade. Mas se tratando de vilões do Batman, nada termina com um final feliz e Harvey acaba ressurgindo ainda pior e mais obssessivo com o número 2 e sua dualidade (bem e mal). Os diálogos poéticos de Miller trazem uma profundidade ímpar as páginas.
Também somos apresentados a Carrie Kelley, a carismática sidekick que, com uma fantasia caseira de Robin e inspirada pelos atos do Morcego decide fazer a diferença no mundo e lutar contra aquilo que acha errado. Essa é uma característica muito marcante de Frank Miller e seus personagens. O “American Way of Life” de fazer as coisas. Lutar por aquilo em que acredita, liberdade, direitos à vida e a busca pela felicidade. A relação paternal e hierarquica entre os dois personagens ao decorrer da trama é outro ponto alto do gibi.
Não faltam críticas ácidas às políticas brandas de punição e aos Direitos Humanos. Os diálogos televisivos mostram sempre a dualidade das opiniões em relação a violência. De um lado, a hipocrisia dos intelectuais, do outro, Lana Lang, a ‘advogada do Diabo’, defendendo os atos ilegítimos do Morcego.
Até onde vão os direitos de um criminoso? Tema muito debatido até hoje, principalmente nas Redes Sociais.
Nem a mídia escapa. Em seu prefácio, publicado aqui no Brasil na edição definitiva, Miller faz duras críticas aos meios de comunicação, e a parcialidade dos mesmos.
“O Cavaleiro das Trevas é, obviamente, uma história do Batman. Em grande parte, procurei usar a escalada da criminalidade no mundo ao meu redor para retratar um mundo que precisava de um gênio obsessivo, hercúleo e razoavelmente maníaco para por as coisas em ordem. Mas isso era apenas metade do serviço. Eu não guardei meu veneno mais poderoso pro Coringa ou pro Duas-Caras, mas para as insípidas e apelativas figuras da mídia que cobriam de forma tão pobre os gigantescos conflitos daquela época. O que essas pessoas insignificantes fariam se gigantes andassem sobre a Terra? Que tratamento elas dariam a um herói poderoso, exigente e inclemente?”
As autoridades sempre se esquivam quando questionadas sobre a escalada da violência em Gotham. Um jogo de Volleyball de responsabilidades, que passa do Presidente, ao Governador, do Prefeito ao Comissário.
Batman passa a sentir prazer na tortura que inflige aos criminosos. Miller nos faz sentir empatia por um personagem sádico e violento, ao mesmo tempo que nos apresenta adversários tão violentos quanto. Seria uma forma de justificar os seus métodos. Fogo contra fogo.
“Foi difícil carregar 120 quilos de sociopata até o topo das Torres de Gotham… o ponto mais alto da cidade. Mas os gritos compensaram”.
Alguém está armando a Gangue Mutante em Gotham. Ao interrogar um dos membros da sádica gangue de jovens, Batman chega ao General do Exército, que se suicida ao saber que foi descoberto. Impossível não associar ao famoso escândalo Caso Irã-Contras, episódio onde os EUA facilitara a venda de armas aos Iranianos em troca de reféns estadunidenses, sequestrados pelo Hezbollah e o Exército dos Guardiões da Revolução Islâmica. Oliver North, na época membro do Conselho de Segurança Nacional, usara o dinheiro das armas para financiar os Contras na Nicarágua em uma campanha rebelde anticomunista.
Os jovens integrantes da Gangue Mutante se resumem simplemente a brutalidade. Não se importam com dinheiro, apenas chocar a sociedade.
As gangues eram o assunto do momento, inclusive na música e no cinema.
Em seu primeiro confronto contra o Líder Mutante, Batman acaba percebendo que não é páreo para o vigor e a selvageria da juventude. Outro ponto interessante que marcou e influenciou o personagem em seus anos seguintes nos quadrinhos: a necessidade constante de sempre estar se testando diante de inimigos mais fortes.
A juventude em Cavaleiro das Trevas é retratada como uma massa sem direção, a procura de um líder. Ela clama por um líder. Um tópico bem atual hoje em dia também. Isso é exemplificado na épica luta contra os Mutantes, onde, após humilhar o Líder Mutante em uma poça de lama, ganha a liderança dos jovens, sedentos por brutalidade.
“Isso não é uma poça de lama! É uma mesa de operação, e eu sou o cirurgião!”
Os Mutantes agora não existem mais e têm um novo líder.
Ainda falando de vilões, Brüno, uma vilã com suásticas nazistas tatuadas nos seios e glúteos, aterroriza Gotham a serviço do Coringa.
A volta de Batman a ativa trouxe não só os holofotes da mídia para si, mas também de um antigo inimigo: O Coringa, há 10 anos no Asilo Arkham sem um objetivo, agora desperto, planeja uma aparição na TV junto ao seu médico, o Dr. Bartholomew Wolper.
The David Endochrine Show vs Late Show With David Letterman: uma paródia ao icônico apresentador, responsável por difundir formatos de Talk Shows.
O Palhaço do Crime está no ápice de sua insanidade. Mata todos no estúdio, centenas de pessoas inocentes. Agora, ele quer que o Batman o cace, como um jogo de gato e rato, como nos velhos tempos. Mas agora é diferente. O morcego se sente responsável por todas aquelas vidas ceifadas. Decidido de vez a acabar com o Coringa, parte com tudo pra cima do Palhaço. Desta vez não haverá prisioneiros.
“Pretendo contar os mortos, um a um. Vou pôr todos na lista, Coringa. A lista das pessoas que eu assassinei, por ter deixado você viver[…] Consegue ver, Coringa? Eu sinto como estivesse escrito em meu rosto. Passei noites em claro planejando, visualizando a cena. Noites sem fim. Considerando todos os métodos possíveis, saboreando cada momento imaginário. Desde o começo eu sabia, que não há nada errado em você que eu não possa resolver com minhas mãos.”
A luta contra o Coringa é sangrenta e implacável. Ela se estende por toda a Feira, passando pela casa de espelhos até ter seu desfecho no Túnel do Amor. Miller não poderia ter escolhido lugar melhor para terminar. No último instante, a moral do Morcego prevalece.
“Vozes me chamando de assassino. Eu gostaria de ser.”
Ele desiste da ideia de matar o Coringa, mas o aleija, deixando o vilão paralítico do pescoço pra baixo e um pouco decepcionado.
“Eu estou desapontado com você, querido. O momento era tão perfeito, e você não teve coragem. Uma pressãozinha a mais e eu teria…”
Em um último ato de vilania, ele termina de quebrar o próprio pescoço. Este é o fim do Palhaço do Crime. Batman agora precisa fugir da polícia o quanto antes, mas não sem antes de um último adeus. Digno.
Na útlima parte, temos a cereja do bolo, ou pelo menos o momento mais lembrado pelos fãs. Batman x Superman.
Mesmo impedindo a bomba nuclear, o Superman não consegue impedir o blackout total, gerado pelo pulso eletromagnético da explosão. Antes, sufocando pelo calor angustiante, agora a cidade perece com a ausência de energia elétrica e luz solar, esta última bloqueada pela fuligem das cinzas da bomba. Pessoas estão morrendo de frio e de fome, o caos é instaurado e o sentimento de egoísmo toma conta dos corações dos cidadãos de Gotham, que querem a qualquer custo sobreviver. Mesmo que para isso tenham que matar seus vizinhos.
“Não existe desculpa pro que fizemos. Não estávamos loucos. Simplesmente viramos um bando de animais egoístas”.
Batman e sua nova Gangue, os Filhos do Batman, botam ordem ao caos, não só combatendo aqueles que se negam a ajudar, mas inspirando os cidadãos a despertar o seu bom senso. Dentre todas as cidades afundadas em desordem e desespero, Gotham é a única que consegue se manter no controle.
Isso enfurece o presidente, que agora com a opinião publica contra suas políticas, aciona o Superman para dar cabo, de uma vez por todas no Vigilante de Gotham. Presidente este que atua diante as câmeras, um falso otimismo em meio ao pânico nacional. Uma alfinetada de Miller ao presidente Ronald Reagan, que foi ator em sua juventude.
É interessante frisar que este Superman submisso ao presidente não é o mesmo Superman que estamos acostumados. Há sempre aquele papo de “Frank Miller descaracterizou o meu Superman”. É bom lembrar que este universo é pertencente a Terra-31. Essa é a beleza do Multiverso da DC Comics e as variadas versões de seus personagens. Voltando…
A luta contra o Escoteiro é curta e épica. Contando com apenas meia dúzia de páginas, cheia de simbolismos, e com diálogos magistrais e poéticos, nos apresenta uma analogia do Povo contra o Estado. Um Estado este ausente e omisso, que não garante nem protege nenhum dos direitos básicos, e manipula a opinião pública a seu favor. Todos falharam, é a nossa vez de tentar.
”Naquele momento víamos o fogo do Liberalismo acabar com a época calma e conservadora dos anos 80.”
-Mark Waid
A surra no Azulão dói. Mas não é uma dor física. O Superman toma uma surra moral, um choque de realidade.
Um ataque cardíaco coloca fim a luta. O Batman está morto, ou quase isso. Depois de forjar a própria morte, e com um exército secreto no subterrâneo, o Morcego é um fantasma, que agirá pelas sombras secretamente onde o Estado falhar, para proteger e guiar a população. Fascista para alguns, herói para outros, o Batman de Frank Miller sempre vai dividir opiniões nos campos ideológicos.
Em 2012 e 2013, Batman: O Cavaleiro das Trevas ganhou uma adaptação animada. Não tem todo o background dos quadrinhos, mas mesmo assim é um ótimo entretenimento.
Em 2015 foi lançado um prequel da história, The Dark Knight Returns: The Last Crusade. Confira nossa crítica aqui.
Resumir Batman: O Cavaleiro das Trevas a uma simples porradaria entre Batman e Superman ou ao “Roteirismo” deveria ser um crime. Ela é muito mais que isso. É uma história atemporal, de relevância histórica, com uma narrativa desafiadora que até hoje influencia os autores e personagens de quadrinhos. É, sem dúvidas, um material indispensável em qualquer coleção e independente de qualquer orientação política.
“A good life. Good enough.”