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A Odisseia de Hakim poderia ser a de qualquer um de nós

Quando conhecemos alguém desde o início é quase impossível nossa relação não ser mais intrínseca. Seja esta uma publicação, evento, objeto de valor sentimental ou principalmente uma pessoa. Fabien Toulmé é um desses casos: Através da editora Nemo, podemos observar de seu nascimento até seu desenvolvimento no mundo da histórias em quadrinhos, como parentes próximos que acompanham um recém-chegado membro em sua família que, tal qual uma criança, dá um passo de cada vez nessa nova empreitada. O laço com  o autor aperta ainda mais graças à sua relação com o Brasil, acompanhada logo de cara em Não Era Você Quem Eu Esperava, primeira publicação dele em nosso país, e já ali em sua estreia com autor solo, Fabien nos convidava a conhecer sua vida e então, com nossa leitura, pudemos tornar a relação recíproca.

Seguindo mais uma vez essa linha, Fabien torna-se personagem de sua própria narrativa em A Odisseia de Hakim  1. Da Síria à Turquia dessa vez no intuito de contar a história de uma família que não é a sua, mas que a adota por sua necessidade de informar. A empatia nesse caso instala-se no momento em que viu a diferença de tratamento em dois casos que resultaram em tragédias, sendo um deles visto apenas como estatística: As mortes por afogamento no mar Mediterrâneo de migrantes que tentavam chegar à Europa. Estas, como a de todos os outros, são vidas humanas. Porém foram marginalizadas como se valessem menos, mas poderiam ser vidas de qualquer pessoa, e foram perdidas como um sopro.

A data de 11 de setembro de 2001, dia de um atentado terrorista em solo norte-americano que dispensa maiores comentários, ainda é rememorada pelo mundo inteiro como um acontecimento que, de fato, mudou a História do mundo. A comoção global é evidente ainda pelo fato de, até hoje muitos conseguem recordar com detalhes onde estavam quando souberam desta notícia, mesmo estando quilômetros de distância do ocorrido ou sequer habitar ou ter visitado o mesmo continente. Mas será que a mesma precisão pode ser vista no atentado terrorista em uma escola de Peshawar, Paquistão em 2014, Somália em 2017 e os já incontáveis casos desde o início da Guerra Civil Síria? Grande parte do mundo sequer sabe da existência desses acontecimentos e esta é a indiferença humana que Toulmé tenta amenizar em sua obra.

Assim, a História real de Hakim e sua família vem à público para mostrar algo que grande parte do mundo esqueceu ou sequer   faz esforço para lembrar. Muitas vezes nos sentimos como estranhos inclusive quando visitamos a residência de amigos ou até familiares, como então nos sentiríamos caso fôssemos obrigados a deixar nossa terra, que foi de nossas famílias por gerações, pois nossa vida depende disso? A vida de Hakim é esmiuçada desde sua infância e vai avançando com momentos alegres e conturbados e várias passagens mostram também semelhanças de sua vida com a dos ocidentais. Sem dúvida, quando pouco se sabe da rotina de alguém, a criação de esteriótipos torna-se simplesmente uma questão de tempo e Hakim faz questão de mostrar que sua vida no oriente médio tem ou teve sim momentos iguais aos dos europeus, uma vez que este era o mercado inicialmente destinado à publicação.

 

Impressiona como a rotina nos faz tratar como normal algo que deveria ser visto com espanto. É assim inclusive no Brasil, onde uma média de 60 mil homicídios ao ano resulta em municípios com média de assassinatos por número de habitantes maior que em países em guerra civil. Hakim acaba se adaptando à sua “normalidade”, contando cada acontecimento com uma frieza de quem vive corriqueiramente insucessos que ninguém mereceria. Corpos sem vida estirados nas ruas, gritos de socorro já sem esperança, incontáveis feridos atendidos de forma precária em mesquitas e prisões sucedidas de interrogatórios com tortura fizeram parte de sua vida assim como nossa rotina de sair de casa e trabalhar, estudar ou passar um tempo com familiares. As várias partes violentas e cruas da HQ contrastam com o traço claro, redondo e delicado do autor, mostrando que, apesar de trazer humanidade à frieza dos números com que essas pessoas são tratadas, Toulmé ainda mostra suas marcas características e cada página.

Cada fato, tanto real quanto particular, é mesclado com informações sobre a História e geopolítica do Magrebe e Oriente Médio. Toulmé está em meio a todo esse confronto não só por narrar os acontecimentos, mas por agora ter o poder de decisão e influência no que diz respeito a uma metonímia de todo esse imbróglio. Que se explique: Mesmo buscando conservar o cerne da questão, que é trazer humanidade à história de uma vida que possivelmente seria mais uma a cair no esquecimento, o quadrinista está presente para através da história de uma família emergir o, já há muito tempo, necessário entendimento do calvário passado por todos os que precisaram deixar sua vida para trás em busca de outra em território desconhecido.

A Odisseia de Hakim é uma série ainda em publicação que já conta com três volumes lançados pela francesa Delcourt, sua editora original. Portanto, aqui temos apenas o início de uma jornada ainda não sabemos bem onde vai parar, mas que já embarcamos mesmo assim.

A Odisseia de Hakim 1 – Da Síria à Turquia
Fabien Toulmé  (roteiro e arte)
Fernando Scheibe (tradução)
Carla Neves (revisão)
274 páginas
17 x 24 cm
R$64,90
Capa Cartonada
Nemo
Data de publicação: 04/2020

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A inclusão na Nona Arte! Conheça 5 Quadrinhos sobre Deficiência Intelectual e Autismo

Deficiência Intelectual costuma ser um tema raramente abordado em mídias tradicionais.  Geralmente quem é acostumado a falar sobre isso, ou convive com quem possui, ou trabalha com serviços voltados para o assunto.

Eu poderia somente vir aqui e dizer que precisamos de mais materiais voltados para o tema, mas não é esse o objetivo do texto, é pertinente deixar bem claro, que por mais leituras que a gente realize, só conseguimos aprender o que é a deficiência de verdade, quando convivemos com ela, seja direta, ou indiretamente.

Mas mesmo dizendo isso no parágrafo anterior, eu ainda arriscaria dizer que existe mais um meio de sentir e nos colocar na pele de quem possui ou convive com a deficiência intelectual. E como o título já diz, estamos falando sobre os quadrinhos.

Do dia 21 ao dia 28 de Agosto desse ano, acontece a Semana da Pessoa com Deficiência Intelectual, e claro, aproveitando esse gancho, separamos aqui 5 obras que te ajudam a entender, e até mesmo, sentir na pele tudo que esse assunto nos trás.

Turma da Mônica: Um Amiguinho Diferente

Capa da Edição

Nada melhor iniciar a nossa Lista com quem nos ajudou (pelo menos a grande maioria dos atuais leitores Brasileiros) a iniciar nos quadrinhos desde a infância, o grande Maurício de Souza.

No ano de 2001, ele foi convidado para desenvolver um projeto com o objetivo de alertar a população sobre os sintomas do autismo. E com alguns meses e bastante trabalho, foi criado mais um personagem da Turma da Mônica, o André.

No seu primeiro quadrinho, o André, de forma indireta conseguiu passar diversas informações sobre o autismo e o melhor de tudo, de um jeito claro e lúdico, de modo que crianças e seus familiares conseguiam compreender, de forma natural e sem preconceitos, do que se tratava o espectro.

Além do quadrinho, também foram criadas seis vinhetas de desenho animado, que alertam pais, familiares e professores para a importância do diagnóstico precoce e esclarecem o comportamento que deve ser adotado com a criança autista.

A turma da mônica sempre foi um grande exemplo de inclusão e representatividade. Além do André dentro do bairro do Limoeiro temos o Humberto, que é um menino mudo, a Dorinha que é uma menina cega, o Luca que é um menino cadeirante, e também a Tati que é uma deficiente intelectual com síndrome de Down.


A Vida Com Logan

Capa do Quadrinho

Também nacional, A vida com Logan nos mostra um pouco do cotidiano de uma criança com Síndrome de Down. Crenças limitantes são desfeitas dentro do quadrinho que é escrito por nada menos que o pai do Logan. Sim… o Logan é real! E é filho do quadrinista Flávio Soares, que graças a convivência com o filho, nos consegue passar uma ideia diferente de tudo que estamos acostumados a ouvir sobre o que é a Síndrome de Down.

Além de todas as aventuras e emoções no quadrinho, conseguimos também muitas informações sobre a Síndrome no final da obra e inclusive fotos do verdadeiro Logan.


A Diferença Invisível

Capa do Quadrinho

Saindo um pouco dos nacionais, chegamos a um quadrinho publicado pela Editora Nemo, que como de costume foge de todo o Mainstream.

A Diferença Invisível acaba trazendo, além de toda informação sobre o Autismo, uma história de descoberta. Já que a Francesa Marguerite, protagonista do quadrinho, após muito tempo se sentindo deslocada, consegue entender o porque de toda a angústia que sentia.

Há um tempo publicamos aqui uma resenha sobre esse quadrinho (Clique aqui para ler) e para não perder muito a graça da leitura do texto em si, sugiro que clique no link e aproveite mais a fundo a obra de arte que ele é, e consiga entender a importância da mistura de cores juntamente do desenvolver da história.


Bim, Um menino Diferente

Capa da edição

Voltando ao nacional, mas não deixando de inovar, trazemos um quadrinho simples (à primeira vista), não muito conhecido, mas de grande importância para o mundo dos Quadrinhos. Bim, Um menino diferente retrata a vida de um menino com Paralisia Cerebral, e consegue provar, que apesar de todas as suas dificuldades, ele consegue ser uma criança feliz.

Bom… Lendo a sinopse, daria pra pensar que seria mais uma história clichê de filmes de sessão da tarde presente nos quadrinhos. A diferença está em quem escreveu o quadrinho. Bim acaba se tornando um autorretrato do autor Fábio Fernandes, que possui paralisia cerebral e mesmo com todas suas limitações publicou o seu primeiro quadrinho e se inseriu no mundo editorial.


Não era Você que eu esperava

Capa da Edição

Finalizando a nossa lista, Não era você que eu esperava acaba sendo um dos quadrinhos mais emocionantes e que mais nos toca sobre o assunto tratado.

Fabien Toulmé narra e desmistifica, com bastante emoção e delicadeza, sua experiência com sua filha que possui Síndrome de Down. O ponto principal no quadrinho, ao meu ver, nem seria somente a deficiência em si, mas todo o contexto extremamente bem trabalhado, e as ocorrências na vida de todos que estão ao redor da família do protagonista. Acredito que essa obra deveria ter um espaço na coleção de todos, não somente pelo tema, mas sobre todo o modo em que ela é contada.

Eu até gostaria de falar mais sobre ele por aqui, mas como no caso de A diferença Invisível, também temos um texto muito bom e bastante detalhado sobre o quadrinho aqui na torre, que não precisa de nenhum complemento (Clique aqui pra conferir).


Finalizamos a nossa lista, mas espero que nunca finalizemos a luta por toda essa causa, se você conhece algum deficiente intelectual, se informe, interaja e utilize todo esse super poder que nos foi dado chamado inclusão. Uma excelente semana da Deficiência intelectual para todos e até a Próxima.

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Não era você que eu esperava | Uma história sobre amor e Síndrome de Down

Existem histórias em quadrinhos que emocionam, e outras que emocionam ensinando algo para o leitor. Em sua primeira graphic novel, chamada Não era você que eu esperava, o autor Fabien Toulmé desmistifica e lida com a Síndrome de Down de maneira humana, tocante e muito sincera, com uma verdadeira montanha-russa de emoções.

A grandiosa Editora Nemo, parte do Grupo Editorial Autêntica, possui um catálogo recheado de obras extremamente relevantes para o mercado e principalmente para seus leitores. Pílulas Azuis, de Frederik Peeters, desmitifica os tabus sobre a AIDS. Desconstruindo Una, da artista Una, fala sobre a violência contra a mulher. E com o sincero Não era você que eu esperava, um dos lançamentos de destaque de 2017, a editora mais uma vez acerta ao escolher publicar uma obra, francesa com um pé no Brasil, tão humana e expressiva.

Fabien Toulmé, nascido em Orleans, na França, morava com sua esposa Patrícia em João Pessoa. Brasileira, sua esposa também é mãe de sua primeira filha, Louise, nascida na cidade paraibana. Ao decidirem ter uma segunda criança, que aparentava não necessitar de cuidados especiais durante a gestação, com o nascimento veio à tona uma notícia: Julia, a segunda filha do casal, era trissômica. Popularmente conhecida como a deficiência Síndrome de Down. Já vivendo na França os pais devem aprender sobre a condição de Julia tida como “anormal” por outras pessoas, indo da fúria à rejeição, da aceitação ao amor, e descobrindo se aquela criança não era realmente quem eles esperavam.

O principal adjetivo para esta história é sinceridade. Fabien relata, de forma divertida e preocupada, todos seus medos com relação às possíveis implicações de ter um filho que necessite de atenção especial e que seja diferente de outras crianças. De uma maneira humana, as preocupações e receios tornam-se rapidamente raiva, frustração e profunda tristeza, mergulhando a vida do casal num poço de aprendizado infinito. E sem medo em demonstrar suas falhas e características preconceituosas, como um leigo no assunto, a narrativa (que é autobiográfica) ganha uma camada de realismo que põe o leitor em cheque.

Indignado, como se houvesse levado um fortíssimo soco no estômago, Toulmé deixa clara por muito tempo sua rejeição a sua filha. E quando chega ao estágio da aceitação, você passa a admirar sua coragem por relatar seus sentimentos mais obscuros, através de sua arte com traços simples e cores que ajudam a demonstrar o que o artista sentia em cada período da vida de Julia, que além de possuir a deficiência, também nasceu com uma complicação cardíaca que devia ser tratada ao completar de um ano após o seu nascimento.

O autor narra todo este período delicado dos primeiros anos de Julia de forma muito bem-humorada. Caprichando nas referências, mostrando os acontecimentos mais absurdos e principalmente lidando com a enorme mudança social e psicológica na vida do casal, a história é cheia de passagens engraçadas que proporcionam à leitura uma leveza especial mesmo tratando de algo que, para muitos, é um tabu da sociedade. E ao aprender mais sobre a condição de sua filha, o pai babão também passa muito conhecimento aos leitores ao demonstrar que a famosa trissomia do 21 é algo que, por mais baixas as chances de existir, deve ser tratada sempre com normalidade e respeito.

É impensável o que um pai deve sentir quando posto numa situação tão delicada e inesperada, e esta história lida com isso com maestria. Ao mostrar a perspectiva de outras pessoas, como médicos, parentes e amigos, Fabien torna este diário em quadrinhos do nascimento de sua filha um verdadeiro presente especial.

E através da convivência com Julia, é nítida a sensação de que este pai tornou-se outro tipo de pessoa. Pois Julia podia não ser o que esperava, mas com certeza trouxe a maior felicidade do mundo por ter vindo.

Não era você que eu esperava possui 256 páginas encadernadas em formato 17 x 24 cm, e é um dos fortes candidatos ao topo das listas de melhores lançamentos de 2017. O preço de capa sugerido é R$ 59,80.