Formato pouco maior que A5, capa cartonada, papel pólen… bem longe dos formatos de luxo que hoje entopem o mercado de HQs brasileiro. Seria então esse, um projeto aparentemente tímido da editora Veneta, a forma correta de apresentar ao Brasil a mais influente quadrinista norte-americana e atual vencedora do Grand Prix de la Ville d’Angoulême?
Poderia ter sido antes, muito antes. A ideia inicial do editor Rogério de Campos consistia em estrear Julie Doucet no Brasil em 1999 dentro de Comic Book – O Novo Quadrinho Norte-Americano, antologia feita especialmente para o Brasil que introduziu ao mercado nacional quadrinistas como Daniel Clowes, Peter Bagge, Adrian Tomine e Joe Sacco. Era um novo mundo que chegava até nós: além de ser o primeiro título da editora Conrad voltado às livrarias, tais autores de editoras como Fantagraphics e Drawn and Quaterly finalmente pareciam estar ao nosso alcance.
A premissa era verdadeira, mas não em sua totalidade: Sacco chegou até nós, assim como Clowes, Chester Brown e encontraram outros que já estavam, como os irmãos Hernandez e Robert Crumb; outros, só fizeram uma visita. Por que tantos, assim como Doucet, só vieram depois, uns nunca mais voltaram e outros sequer chegaram? A resposta é bem mais simples do que se imagina: tal mercado norte-americano é muito extenso e ao mesmo tempo específico demais para somente uma ou outra editora brasileira explorar. Por isso mesmo, somente em tempos recentes a situação ficou mais favorável para nós, com mais editoras dividindo uma tarefa hercúlea e conquistando definitivamente as livrarias e plataformas de financiamento coletivo.
Passados os obstáculos, chega até nós uma obra com três histórias de duração variada entre 6 a 50 páginas cada, publicadas originalmente em Dirty Plotte, um fanzine que depois originou a revista homônima em um total de 12 edições. Aqui, a autora abre totalmente sua vida pessoal ao leitor, com experiências abrangendo sua primeira relação sexual com um total desconhecido, convivência com amigos nos tempos de Universidade e, principalmente, a vida em Nova York com um namorado tóxico e mal sucedido financeiramente que tenta controlar sua vida, ao mesmo tempo que não faz cerimônias para aceitar que ela pague suas contas.
Os intempéries também dão espaço a situações memoráveis que podem até passar despercebidos: ao narrar encontros Art Spiegelman, Glenn Head, Leslie Stenberg, Kaz, John Porcellino e tantos outros, desfila-se diante de nossos olhos os embriões que deram origem justamente ao até hoje considerado Novo Quadrinho Norte-Americano, crescendo até formar as já citadas Fanta e D&Q e, por extensão, trouxeram o conteúdo necessário para dar a luz justamente à antologia montada por Rogério de Campos, que até hoje bebe dessa fonte em vários lançamentos da Veneta e influencia outras editoras do nosso mercado.
Apesar do expressivo espaço temporal até finalmente sair no Brasil, Meu Diário de Nova York passa longe de ser uma obra datada. O pioneirismo da autora reflete-se inclusive em sua mais recente conquista: as três histórias que compõem o volume foram produzidas entre 1993 e 1998, período que, até então, agraciou apenas quadrinistas homens com o Grand Prix d’Angouleme. Florence Cestac, a primeira mulher a ser premiada, teve a honraria concedida em 2000 e, desde então apenas Rumiko Takahashi (2019) e Julie Doucet (2022) foram reconhecidas, totalizando apenas três mulheres em um total de 55 premiados, discrepância que inclusive trouxe crise ao festival em um passado recente.
Mesmo, à primeira vista, parecendo simples, a arte de Doucet tem particularidades interessantes, como o uso constante de sombras e, principalmente, a impressionante quantidade de itens espalhados pelos cenários, fazendo destes ambientes como os livros infantis Onde Está Wally? e a comparação não é à toa: cada item espalhado pelo chão, mesa, sala, quarto, banheiro e etc. está milimetricamente presente em cada um dos quadros da cena, seja uma garrafa de cerveja, colheres, instrumentos de ilustração até os mais interessantes, como discos, livros e quadrinhos, nos colocando cada vez mais antenados com o mundo da autora.
Dessa forma, apesar de cada uma de suas histórias sempre apresentar uma desorganização absoluta, o louvável empenho da quadrinista em retratar fielmente cada cena nos deixa, curiosamente, mais à vontade a cada página que avançamos, nos familiarizando e encontrando gostos em comum à sua bagagem cultural. Há quem diga que quadrinhos são, mesmo quando biográficos, ficção e fantasia. Se assim for, a fantasia de Doucet é ela mesma e suas desventuras imersas em sua desorganização organizada.
Apesar do recente lançamento de Time Zone J, a autora havia anunciado sua aposentadoria dos quadrinhos há quase duas décadas. Se o mais recente lançamento representará uma atualização no atual status, é necessário de mais tempo para saber, porém o que já foi feito traz para tudo que veio depois no mundo dos quadrinhos um legado mostrando que é possível alcançar seu espaço na nona arte, não importando seu gênero, origem, condição financeira e formato de publicação. Há uma Julie Doucet em cada um que tenta fazer quadrinhos em sua mesa suja e desorganizada.
Esqueça o luxo, a arte mais trabalhada ou o roteiro complexo, porque nada disso de forma alguma é estritamente necessário. No fim das contas, tudo que Julie precisa é de uma vida conturbada, materiais para desenho encontrados em qualquer papelaria e uma mesa bagunçada. Não fosse assim, não seria ela, não seria verdadeira, não seria honesta.
Meu Diário de Nova York
Julie Doucet (roteiro e arte)
Cris Siqueira (tradução)
Rogério de Campos (diretor editorial)
Rômulo Luis (editor assistente)
Veneta
Capa Cartonada
104 páginas
17 x 24 cm
R$ 44,90
Data de publicação: 06/2022