E mais uma vez marcamos presença no Festival Guia dos Quadrinhos. Este ano realizado no Hakka Plaza, pela primeira vez trouxe como convidado um quadrinista internacional. Alvo de muito assédio e filas imensas de autógrafos, Francesco Guerrini também mostrou ser uma simpatia de pessoa nesta entrevista concedida à Torre por convite da Culturama, editora responsável pela vinda do italiano ao festival. Confira:
Na escola italiana de quadrinhos Disney, vários acabam adotando um traço próprio, como Giorgio Cavazzano, Casty, Paolo Mottura, Marco Gervasio… e seu desenho é mais tradicional, como nos anos 50 e 60. Por que esta escolha?
Muitos desenhistas começaram vendo o Cavazzano. Casty começou há pouco tempo com seu traço fazendo referência ao Romano Scarpa, e poucos faziam o mesmo até então. Já eu tive a referência do Carl Barks. Mas não quis me limitar só ao lápis de Barks, como Dan Jippes, que também é ótimo, mas [para mim] fazer Barks é preciso entender o seu contexto, velocidade e narrativa, que é muito específico. Me inspiro em Giovan Batista Carpi, que foi meu mestre, como também em Al Hubbart. Com essas referências, comecei a praticar muito, mas nem o que se espera, se atinge. Mas sempre tento melhorar. Se alguém me diz que “na próxima vez você pode fazer melhor” eu digo que “sim!”.
Também na Itália, você tem catalogadas, entre inéditas e republicações, cerca de 140 histórias. Destas, 96 o Pato Donald aparece e em 66 o Tio Patinhas. Curiosamente, a publicação principal se chama Topolino, ou seja: Carrega o nome do Mickey, em italiano. Por que você não trabalha com o Mickey nesse universo Disney?
No inicio me perguntaram “você quer o Donald ou Mickey?” e eu pratiquei mais com o Donald que, pra mim, era um personagem mais divertido. E assim foi indo porque o Mickey é um pouco menos livre. Antigamente eu teria mais liberdade com as piadas do Mickey, mas não agora. Antes seria mais fácil introduzir elementos do universo dos patos nas histórias dele. São recomendações que vêm da central da Disney, nos Estados Unidos. O Carpi conseguia fazer um Mickey engraçado mas que dificilmente as coisas com o camundongo davam errado, diferente do que acontece com o Donald. Outro que escrevia muito bem o Mickey era o Romano Scarpa, mas não tem como imitar-lo. Só recentemente o Casty começou a usar alguns de seus elementos. Não tanto o seu traço, mas seu estilo, com um Mickey mais heróico.
Várias de suas histórias não seguem aquele padrão de 3 tiras por página. Muitas delas a disponibilidade dos quadros muda de uma página para outra. Na questão de pôr no papel a história, como vem a sua ideia de direcionar o leitor exatamente a ordem que propõe?
Procuro fazer a HQ que tem a ver com a situação do momento, como aprendi com o Carpi. Às vezes os roteiristas escrevem algo que não dá para colocar em um quadrinho só, porque os roteiristas não sabem desenhar! Procuro encontrar a melhor cena além do que está descrito no quadrinho. Alguns roteiristas deixam o desenhistas serem mais livres, mas eu faço o Storyboard sempre, pois é o principal momento criativo. Eu coloco em cima os quadrinhos para fazer a cena. Porém com alternâncias para ficar mais legível. Nunca coloco dois quadrinhos duplos verticais na página. Se um é duplo, o outro é normal. Não ponho um quadrinho duplo vertical à direita, sempre à esquerda porque senão não se percebe de cara o sentido de leitura…
Isso é importante, porque quando fazem à direita acabam muitas vezes tendo que usar setas…
Às vezes é necessário quando se tem uma cena onde as setas entram na história. Senão busco outra solução, como “quadros redondos”. Já as tiras quádruplas são mais difíceis e a redação pediu para nunca passar disso. Mas às vezes é preciso e sou obrigado a modificar os quadros de acordo com o que está acontecendo. Cavazzano me falou que eu tinha “que aprender como se faz os quadrinhos Disney” dessa forma: No Primeiro quadrinho temos a apresentação, depois o desenvolvimento e por último o gancho para a página seguinte.
Em uma história sua batizada de A Agência de Mil Ideias, o final é parecido com uma história do Carl Barks, chamada 1 Milhão de Omeletes. Hoje costumam fazer releituras de histórias antigas, como você fez em A Pataca Fatal, que veio de Trenzinho da Alegria, também de Carl Barks. Como é esse processo de reconstrução de uma história já consagrada, porém como uma linguagem recente?
Foi uma oferta que eu não tinha como recusar. É como colocar a mão numa obra de arte. Conhecendo bem a historia, eu fiz de acordo com o seu espírito original. Mesmo quando algumas coisas eu não poderia colocar [na releitura] como a Vila Barraco, bairro dos meninos pobres que estavam na história original do Barks pois seria forte demais para os dias de hoje. Então mudei as características mais fortes e trocamos o nome do lugar para Tormenta.
Em suas histórias o Pato Donald tem como característica a criatividade, atributo geralmente visto no Professor Pardal. Tem algum limite criativo para determinados personagens? Na paródia de O Médico e O Monstro, a Disney não permitiu que fosse lançada fora da Itália pela forma que caracterizaram o próprio Donald.
Na semana passada comprei essa edição especial com a história d’O Médico e O Monstro porque em breve deve esgotar. O Donald já tinha seus momentos criativos até mesmo antes do Pardal. No Donald pode fazer isso, por isso é legal. Já no Mickey, não pode. O Donald não é um incapaz. Ele já foi à Marte, ao fundo do mar, foi piloto de avião, submarino… ele pode fazer tudo.
Como a Itália é o maior mercado de produção de quadrinhos Disney, de que forma você vê hoje o futuro desse material por lá? Os artistas norte-americanos sempre foram os mais famosos, mas hoje os mais produtivos são os italianos.
Pergunta difícil! Os estadunidenses inventaram, fizeram os quadrinhos acontecer. Nós nos sentimos honrados de saber isso, mas eu, por exemplo, não tenho um personagem criado por mim mesmo. Temos que pensar de acordo com a central da Disney. Os desenhistas italianos que conheço são muito bons. Os quadrinhos precisam se adaptar aos leitores de hoje, que leem menos. Como dizia o Carpi, os personagens precisam se atualizar. Não dá pra fazer hoje uma história como era nos anos 40. Se muda os veículos, vestimentas… os sobrinhos do Donald não dormem nem no mesmo tipo de cama de antes. São hoje garotos modernos que usam celular, tablet, fazem esporte… e continuam sendo os Escoteiros Mirins. As crianças precisam se espelhar nos personagens para quererem ler o quadrinho. Por exemplo: A animação Lilo & Stitch.
E há alguma preocupação hoje em saber que o material que vocês produzem vai chegar em várias partes do planeta?
A preocupação existe. Por exemplo: Como adaptar o Peninha e o Urtigão ao público da América do Sul? Ou o Mickey, Mancha Negra, João Bafo-de-Onça… Eles agradam público até na China. É possível adaptar-se à cultura local. O como o próprio Urtigão, que citei agora pouco. Este é diferente da sua versão italiana ou estadunidense, não é errado adaptar-se a outros tempos. O Donald pode ser um atrapalhado, um criativo, um herói… é possível.