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Navie desbrava a si mesma com seu Duplo Eu

Dificilmente se encontram hoje em dia pessoas que, em algum momento da vida, não tiveram qualquer tipo de preocupação a respeito de seu peso. Essa vigilância é comum tanto para menos quanto para mais. Simpatias, cirurgias, alimentação regrada, produtos milagrosos e muito mais nos enchem a cabeça na busca de nossa forma ideal. Ideal para nós? Para os outros? Para ambos? Não há somente uma resposta. A vaidade nos prende. Nos põe em uma busca que não sabemos bem o resultado, mas que nos faz pensar que vale a pena.

Segundo dados do Ministério da Saúde de julho de 2019, 55,7% dos brasileiros estão acima do peso e destes, 19,8% são considerados obesos. Nesse último grupo, temos um maior índice em mulheres (20,7%) do que em homens (18,7%). Na França, a estatística é 50% acima do peso e 15,7% obesos. Distinguindo por sexo, os homens “vencem” na situação de obesidade por pouco: 15,8% contra 15,6% das mulheres. Dentre alguns exemplos de enfermidades, diabetes, fibrose, hipertensão e outros problemas cardiovasculares estão associados à obesidade. Indo muito além da questão estética, o peso é imprescindível para indicar situações  sobre saúde e doenças.

Apesar de fazer parte da ligeira minoria em sua terra, Navie está incluída nesse grupo de obesos, e pior: Na situação de obesidade mórbida, classificação máxima onde a pontuação de IMC (Índice de Massa Corporal) ultrapassa 40 pontos. Seu relato de drama pessoal é espantoso: Com auxílio dos desenhos de Audrey Lainé, Navie abre sua vida ao leitor como poucos teriam coragem. Através de estatísticas, cálculos, citações, humor e até analogias com referências de fábulas, a autora diz como buscou refúgio de problemas internos em sua hiperfagia e até que ponto o peso a influenciou em relacionamentos, honestidade, saúde e sexo.

Navie narra seu peso como um fardo que se transforma em sua consciência. Daí seu Duplo Eu. Ela conversa com si mesma, discute, debate e toma decisões sendo ela a própria discordância. Muitos confabulam com si próprio, mas no caso de Navie sua consciência se torna a antagonista. Por isso mesmo ela decide tomar atitudes, mudar para “se livrar de si”. Mas como quase sempre, a vida não tem consequências exatamente como se projeta.

O processo de perda de peso ao qual se submete mostra que o maior problema era a autora e seus obstáculos psicológicos. Ela se odeia e assim torna nociva sua mente e decisões. Esta narrativa gráfica também mostra como esse drama que atinge pessoas do mundo inteiro é explorado pela imprensa e mídia, em reportagens e programas de televisão transmitidos inclusive no Brasil. Quilo por Quilo, de Chris Powell, é um grande sucesso de audiência na TV por assinatura.

Há muitas pessoas que se consideram satisfeitas na forma e aparência que apresentam. Desde que continuem (como qualquer outro) tomando os devidos cuidados com sua saúde, se sentir bem é o que importa no fim das contas. A própria autora hoje participa de um site multimídia a respeito do assunto. No Brasil, coletivos como Projeto Cada Uma e Toda Grandona mostram relatos reais sobre o assunto que, poderiam não só serem HQs, mas toda outra mídia narrativa possível.

Duplo eu é uma saga sobre aceitar a si mesmo para à partir daí tomar decisões e não o contrário. A pessoa se perde no momento em que confunde esses dois caminhos e começa pelo fim. Ao menos quase sempre é possível se reavaliar e tomar a decisão necessária.

A Nemo mais uma vez nos brinda com algo diferente do habitual. Suas preferências editoriais sobre o mercado europeu mudavam como um camaleão desde a criação no selo pelo Grupo Autêntica em 2011. Passando por ficções de Moebius e Enki Bilal, parece ter encontrado seu lugar no Brasil trazendo HQs do velho mundo onde o foco principal é o drama da vida real. Os leitores que buscam algo diferente agradecem, porém material da “velha fase” da editora ainda está incompleto por aqui: Aâma, cujo volume 3 é o mais recente a sair no Brasil e veio para cá em 2017, tem um quarto e último tomo lançado há quase 5 anos na Europa e que conclui essa saga, mas ainda encontra-se inédito em português; A coleção Safadas também tem um derradeiro volume intitulado Ciné Fripon (Safadas Cinema, em tradução livre) que nunca chegou por aqui. Apesar do ótimo trabalho realizado em outros seguimentos, vale a pena a editora concluir essas coleções já iniciadas.

Duplo Eu
Navie e Audrey Lainé
144 páginas
Formato: 17 x 24 cm
R$54,90
Brochura
Editora Nemo
Data de publicação: 07/2019

 

 

 

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Quem são os Intrusos de Adrian Tomine?

Somente após quase 25 anos do início da carreira de Adrian Tomine os leitores brasileiros recebem uma de suas obras em formato integral. Antes desta publicação da Nemo, apenas uma história curta do autor havia sido publicado em Comic Book – O Novo Quadrinho Norte-Americano pela Conrad em 1999.

Intrusos, como em quase todos os álbuns anteriores do autor, é um coletânea de contos do cotidiano. Experimentando várias formas de narrativa, temos ao todo seis histórias e cada uma com sua particularidade. Tomine transita entre um capítulo e outro a ponto de não parecer ser o mesmo autor, com desenhos de personagens mais simples à mais trabalhados e até cenários com nenhum personagem. Seu traço vai se adaptando ao conteúdo de cada história e não o contrário.

Logo de cara, temos Breve Histórico da Arte Conhecida como “Hortiscultura”, uma narrativa em tiras similares às de jornal. Sempre na sequência de seis tiras em preto e branco e uma colorida (esta representando a “tira de domingo”) temos a busca de um jardineiro que tenta ser artista com esculturas de plantas, mas que se frusta pela não percepção das pessoas em relação à arte que, para ele, ali contém. Em um traço da escola   linha clara, este é o conto mais simples e direto, como uma introdução leve do que estaria por vir.

O teor já muda logo em Amber Sweet, onde a vida de uma estudante muda por ser parecida com uma atriz pornô. Com falta de respeito costumeira em situações nessa questão, homens começam a abordá-la com propostas e adjetivos que não a agradam. Por se sentirem no direito de serem o que na verdade não deveriam, suas atitudes fazem a vítima obrigada a mudar de vida em definitivo. Temos aqui o melhor conto entre os seis.

Em Vamos, Owls um relacionamento conturbado de um casal é unido basicamente pela torcida por um time de baseball. O fanatismo toma conta de todas as atividades que cercam sua vida medíocre em um apartamento pequeno, sujo e pouco mobiliado. As drogas e conversas rasas escondem segredos entre os companheiros. Na mais longa história da publicação, temos uma tradução duvidosa relacionada aos termos usados para algumas jogadas no baseball. No Brasil, temos jogos de baseball transmitidos em TV à cabo e sites que noticiam o esporte. Vale a pena consultar esses meios de informação pois vários dos termos mais apropriados para serem usados na história podem ser encontrados lá. Observem a página a seguir:

Vamos comparar com o texto original de cada quadro em específico:

Quadro 3

Na tradução, o “corredor na boca” conhecemos como “corredor para anotar”. No caso, anotar corrida, que é a pontuação do jogo quando se percorre as 4 bases. Por isso mesmo está no texto original “runners in scoring position” para representá-lo. Sua porcentagem nessa situação é .220 ou 22% de aproveitamento. Ou seja: O jogador não rebate bem quando seus companheiros estão em posição de anotar pontos.

 

 

Quadro 4

O “rebatedor certinho” da versão brasileira refere-se ao clean-up hitter da versão original, no Brasil chamado de quarto rebatedor. No jogo, o quarto rebatedor é geralmente um jogador com maior aproveitamento em rebatidas, pois assim tem chances maiores de impulsionar movimentações de base ou até fazer os três rebatedores anteriores a ele anotarem corrida e assim chegarem ao home plate. Por isso “clean-up” uma vez que os jogadores, assim que anotam corrida, saem de suas bases ocupadas, as deixando limpas. Ainda no texto de Tomine, o personagem inclusive reclama que seu quarto rebatedor produz apenas solo shots. São os chamados home runs solos, que marcam apenas um ponto na jogada, quando poderia marcar de dois até quatro pontos de uma vez só se todas as bases estivessem ocupadas e/ou sua rebatida fosse melhor na oportunidade.

Quadro 5

Por isso mesmo no quadro seguinte o texto original diz “We need him driving in runs in key situations” ou seja: Impulsionando corridas quando for a hora certa. No quadro anterior da versão traduzida, é mais apropriado usar o termo joga ao invés de toca ao se referir a uma rebatida. Porque “tocar” mais tem a ver com uma jogada entre companheiros de equipe, e uma rebatida é feita em virtude de um arremesso, sendo o arremessador sempre um jogador rival ao rebatedor quando é a vez do seu time passar pelo bastão.

Quadro 6

O “rebate 9” na verdade é conhecido no Brasil como nono batedor, que pode ser um rebatedor designado ou próprio arremessador do time, dependendo das regras implantadas na liga onde a partida é realizada. Arremessadores são treinados na base apenas para lançamentos e raramente para rebatidas, por isso mesmo quando um arremessador vai ao bastão pouca coisa produtiva acontece no jogo. Assim, algumas ligas adotam a figura do rebatedor designado,  um jogador que não atua na defesa e aparece apenas para rebater. Por isso vários rebatedores designados não apresentam forma física costumeira para atletas, como é o caso de David Ortiz:

Por mais que o esporte não seja tão popular no nosso país como outros, os termos usados em nossa imprensa podem sim serem entendidos por outros públicos, mesmo que sejam necessários eventualmente breves textos de rodapé, como já tanto vimos em outras HQs.

Triunfo e Tragédia e Intrusos são óbvios tributos a Chris Ware e Yoshihiro Tatsumi. Ambas seguem, além do traço, uma velocidade narrativa muito característica dos autores. Triunfo e Tragédia esmiuça o drama de uma garota que luta para ser comediante stand-up enquanto vive um drama familiar que, inteligentemente regido pelo autor, não é abertamente divulgado.

Em Intrusos, temos a HQ mais underground e de traço mais suja de todas aqui presentes. O protagonista ilegalmente visita um imóvel onde lá teve uma história e isso resulta em consequências sérias. Tatsumi já é um autor que pouco se encaixa no mangá tradicional; Tomine propositalmente não se encaixa em estilo algum ao mesmo tempo que poderia se sentir à vontade em todos.

No fim, os intrusos somos nós leitores, que observamos sem permissão a intimidade de todos os personagens dessa HQ. Os personagens também são intrusos na vida de outros ali presentes, sejam eles protagonistas ou coadjuvantes. Por isso mesmo nosso título da coletânea também é esse e não Killing and Dying como na publicação da canadense Drawn and Quaterly. O termo original é específico à quando comediantes de stand-up estão se saindo bem (killing) ou mal (dying) este último também associado a outro acontecimento na história. Por isso, assim como na Alemanha, Espanha e França.

A edição da Nemo segue os padrões adotados pela editora em formato, papel off-set capa cartonada com orelhas. Apesar de diferente da edição original, nada atrapalha na proposta dos contos. Mesmo sendo sua obra mais recente e aleatória, Intrusos é um bom pontapé inicial para conferir as ideias de Tomine, que desesperadamente precisa de mais títulos por aqui. Shortcomings, Sleepwalk e principalmente Summer Blonde são ótimas pedidas.

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Resenha | O Dia de Julio

É de um espanto absoluto pegar uma publicação e, já no texto de contracapa, encontrar a informação de como o destino do protagonista da história é selado. Assim, muito dificilmente quem pôr as mãos em O Dia de Júlio já não saberá seu final antecipadamente.

Mais do que isso: Nos deparamos com as feições de quase todos os personagens que compõem a narrativa em diversos momentos de suas vidas antes mesmo da primeira página. Uns têm nome e outros são apenas “anônimos” em identidade: O pai de Julio é apenas o “pai de Julio”.

Toda essa apresentação incomum mais tarde nos mostra que era irrelevante a preocupação. Esta obra nos apresenta a vida de Julio e sua família, latinos habitantes de um vilarejo paupérrimo dos Estados Unidos da América com suas transformações em decorrer do passar do tempo e História do próprio país. O ambiente, apesar de explícito, poderia ser bem algum local de interior do Brasil, tal similares suas características.

A história contada por Gilbert Hernandez é, apesar de tudo, um conto simples da mesma forma que é seu traço. O jeito que o enredo nos é apresentado vale mais que seu conteúdo em si.

Conversas banais viram grandes reflexões filosóficas. Se encontra tempo para humor até no meio da desgraça. Páginas sem texto falam mais que outras com balões. Páginas que, inclusive, poderiam quase todas contar uma história individualmente. Hernandez deixa o leitor deduzir em que espaço de tempo está situado no momento e não há uma caixa de narrador sequer por toda a leitura.

Alguns personagens são presentes em grande parte da narrativa; Outros vão e voltam anos depois. Há membros cativantes na família de Júlio; Outros nos dão nojo e sensação de raiva por personagens da história não perceberam mais cedo o mal que causam. É sentida impotência de nossa parte por sermos apenas observadores e nada podermos fazer. Até um nematelminto se torna protagonista e nos faz ser contra ou torcer por ele dependendo da passagem. A história de Julio poderia ser a de qualquer um.

Racismo, machismo, pedofilia, homofobia, estereótipos… Todas as adversidades estão ali mescladas no que compõe o Homo sapiens que se esqueceu de pensar. Personagens guardam segredos dentro de si que não deveriam ser escondidos, mas as circunstâncias o fazem optar por isso. Já outros, inseridos em uma sociedade diferente graças ao tempo, esse segredo já não existe mais.

Assim, vemos o já óbvio: Não existe a clichê frase de “No meu tempo…” quando se trata de comportamento humano. O preconceito e a forma de o combater sempre coexistiram. A questão é escolher em que lado você estará.

Como na vida, a sua grande rival morte está presente ao longo destas cem páginas. Algumas delas, nos dá o estalo necessário caso tenhamos sido desatentos a algo que estava ao tempo todo nos pedindo atenção. É necessário perder para dar valor, ou nos deixar atentos ao que passou.

Um ponto negativo vai para a “introdução” do escritor Brian Everson à obra. Apesar de alguns pontos já se saber, Everson entrega muito de seu conteúdo. A introdução teria funcionado muito melhor se fosse um posfácio, assim se recomenda lê-la apenas ao fim de absorver o conteúdo principal, que é e sempre será a história.

O Dia de Julio é uma leitura rápida que acaba da mesma forma que começa, assim como é a vida de cada ser vivo. O nada volta a ser nada. Um vazio. E este vazio cabe a cada um de nós o preencher da forma que convir enquanto há tempo.

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Resenha | A Diferença Invisível

A Diferença Invisível é uma história tocante, interessante e didática. Todos os dias interagimos com alguém. De forma automática dizemos “como vai?“, perguntamos se “está tudo bem?” e temos como resposta (por nossa parte ou dos outros) um “tudo!“. Mas o que é esse tudo? Ele existe mesmo?

Por mais que pareçam fortes do lado de fora, por dentro muitas pessoas pedem ajuda. Marguerite é mais uma francesa: Tem seu emprego, namorado, bichos de estimação, tarefas diárias, cuida de sua vida… mas ainda assim se sente desencaixada do resto.

Ela tem dificuldades em realizar ações que para muitos são simples, como se relacionar com colegas de trabalho, viajar, ir à festas, usar roupas de determinados tecidos e até um despertador. Não entende piadas e um fim de semana longe de casa já é um estorvo. A solução encontrada durante grande parte de sua vida foi viver em seu casulo. Mas um casulo, apesar de protetor, é frágil. Em algum momento se quebra e é necessário encarar o que há fora dele.

Graças à esse déficit social Marguerite descobre que tem a Síndrome de Aspenger, uma variação do autismo. Ela não se abate com isso. Finalmente ela está livre e se sente levada a sério e a partir daí começa a se redescobrir.

Todas estas dificuldades vividas por Marguerite e mais de 70 milhões de pessoas ao redor do mundo são apresentadas em A Diferença Invisível, publicada no Brasil pela Editora Nemo. A obra traz ilustrações de Mademoiselle Caroline e roteiro de Julie Dachez, que é ninguém menos que a própria protagonista Marguerite.

O número total de autistas equivale a 1% da população mundial. A sua perseverança mostra que não há o que é impossível de se fazer, se sim de ser feito de alguma outra forma. A vida para muitos precisa ser adaptada, e é assim que se segue. Assunto que, aliás, é pouco visto em HQs. Para quem é interessado em pesquisar sobre situações similares, a HQ Parafusos publicada em 2014 pela Editora Martins Fontes segue esta linha.

O uso de cores (que no início da HQ limita-se ao preto, branco, cinza e vermelho) vai se diversificando ao longo da história a cada nova descoberta de si mesma feita por Marguerite. Sua vida agora é outra: mais colorida, apropriada e dinâmica. O traço leve e simples de Caroline denota o tom direto de como o assunto é tratado na obra.

Um anexo chamado O que é Autismo? ao fim da edição esclarece também outros ponto importantes da síndrome. Dachez se tornou uma grande pesquisadora sobre o assunto. Vários textos e trabalhos seus podem ser consultados em seu blog http://emoiemoietmoi.over-blog.com/ (em francês) que ajudam principalmente a quem ainda tem dificuldade em se adaptar a este novo mundo que se revela para cada um deles. No Brasil também há instituições que trabalham para entender, identificar, tratar e a conviver com a situação, seja este indivíduo o diagnosticado ou pessoa próxima, e informações podem ser consultadas em http://autismobrasil.org/por exemplo.

A edição da Nemo não foge do padrão adotado em outras publicações da editora, em formato 24 x 17 cm e 192 páginas com papel offset encadernado em brochura com orelhas e com edição e conteúdo muito fiel à publicação original com preço sugerido de R$44,90, com sua distribuição destinada à livrarias e lojas especializadas. Vale a pena a descoberta, seja você Marguerite ou qualquer outra pessoa.