O ditado diz algo sobre “não julgar o livro pela capa“, mas convenhamos… Certas coisas tem uma capa que faz com que seja muito difícil não julgá-la. Eu entendo, já estive nessa posição, e acho que todo mundo pode ser acusado disso, ao menos um pouco. Especialmente quando se é fã de animês e light novels.
Com um nome tão esdrúxulo como “My Stepmom’s Daughter is my Ex” (traduzido para algo como “a filha da minha madrasta é a minha ex-namorada“), e com o histórico que “animês adaptações de Light Novels com nomes longos e estranhamente específicos” tem, fica complicado não ter ao menos uma pulga atrás da orelha.
O destino nos dá algumas gratas surpresas, de vez em quando, e a baixa expectativa serve de combustível para o divertimento. É o caso de “My Stepmom’s Daughter is my Ex”, que eu vou chamar apenas de “Tsurekano” daqui pra frente, uma abreviação do seu nome em japonês, “Mamahaha no Tsurego ga Motokano datta“.
Fui impressionado logo de cara, quando o show teve a coragem (ou, talvez, a audácia) de simplesmente se recusar a explicar sua premissa e partir para a ação logo de cara. Bem, quando se tem um nome tão descritivo quanto o de Tsurekano, um diretor deve se sentir confortável o bastante para assumir que o público entende os conceitos básicos do universo da obra e que não precisamos perder tempo com bobagem. Sendo assim, não vou nem me dar ao trabalho de postar a sinopse. Veja o trailer, se julgar necessário.
Quando saímos da superfície, paramos de encher o saco e brincar com a premissa e deixamos de zoar o título, o que encontramos é uma comédia-romântica surpreendentemente gentil, mas agridoce. Uma inocência infantil, com atitudes e pensamentos adolescentes, mas ligados por um amor maduro. Os protagonistas são dois bobos (e eu devo destacar, bastante bobos) perdidamente apaixonados, mas que se depararam com uma situação que os impede de se reaproximar por fatores externos. É quase um Romeu e Julieta moderno, só que muito, muito mais “excêntrico“.
Embora eu tenha chamado o animê de comédia-romântica não tem nem um parágrafo, o maior charme de Tsurekano, pra mim, foi a sua parte “dramática”. Com uma narração interessante, que picotou o passado dos dois em pequenos blocos, vamos entendendo aos poucos o que aconteceu para chegarmos até onde chegamos, e recebemos informações elucidativas nos momentos certos. Não é nenhum mistério multidimensional e extremamente complexo que apenas fãs de Ricky & Morty com alto QI conseguem desvendar. Inclusive, diria que é o oposto: É algo bem simples de entender. Mas o que torna a história tão intrigante de se acompanhar não é entender o que aconteceu, mas sim, descobrir como aconteceu.
É um conto tão antigo quanto andar pra frente: Um primeiro amor, um relacionamento que tem alicerces instáveis pela simples falta de experiência. O problema não é falta de carinho, mas falta de comunicação. Como eles poderiam conversar? Eles nem sabem que precisam! E mesmo que soubessem, não saberiam o como, o quando ou o por que. E isso não é um spoiler, pois como comentei, essa é a parte fácil de sacar, e está toda no passado. A gratificação está no presente, de ver o que mudou (e se mudou) entre eles, e como eles lidam com as mudanças que lhe foram impostas.
Afinal, é, eu nem toquei no ponto que dá nome a série ainda, né? Eles se tornam irmãos adotivos. E, embora isso possa parecer mais uma desculpa fetichista do que qualquer coisa (e não nego que talvez seja, um pouco), é a parte mais importante para o desenvolvimento e crescimento do Mizuto (o garoto) e da Yume (a garota) na história: Apesar de ainda se amarem, eles também amam seus respectivos pais, que acabaram de se casar. É uma decisão de botar a felicidade dos adultos como prioridade à deles próprios, fingir e esconder o (ex-)relacionamento entre os dois para proteger a nova vida que os pais conseguiram após anos como viúvos. Equilibrar esses desejos é a corda-bamba que dá grande profundidade para o drama do animê.
Mas isso, talvez, seja olhando fundo demais pra Tsurekano. A superfície ainda existe e ainda é uma parte relevante do show. O aspecto “corriqueiro” da história ainda é um pouco capenga, que consegue divertir e tirar um riso aqui ou ali, mas ainda se apoia demais em estereótipos muito exagerados, piadas um pouco ríspidas e, como sempre, a insistência em falar de peitos.
O ponto mais fraco do animê é, de longe, o seu elenco secundário. As personagens que estão lá para serem “os amigos dos protagonistas” são insuportáveis e foram os responsáveis pela pior parte da temporada. A garota psicótica, Akatsuki, não só é uma pessoa ruim, como corrompe tudo ao seu redor. O arco onde ela tenta dar conselhos para a outra personagem secundária, Higashira, foi horrível por dar um grande foco para Akatsuki, e por tornar uma personagem até então bem interessante em uma piada desconexa e sem graça. Talvez sirva de consolo pensar que ela existe na narrativa como um exemplo do que a Yume poderia se tornar, caso não se desenvolvesse. Cruzes…
Confesso que só comecei a assistir por conta do elenco de voz, que conta com dois dos meus dubladores prediletos como protagonistas (Rina Hidaka como Yume, e Hiro Shimono como Mizuto), e estava totalmente preparado para um animê caótico e que fosse o equivalente a acompanhar um prédio em chamas ruíndo sob seu próprio peso, mas… Acabei curtindo a direção inteligente, o drama surpreendente por ser pé no chão mesmo com uma premissa absurda, as propagandas descaradas de outras light novels da Editora Kadokawa, as músicas dançantes e toda a parte técnica, que não é nenhuma oitava maravilha do mundo, mas que é consistente e dentro da faixa do aceitável, coisa que não acontece com frequência.
Uma pesquisa rápida te mostra que a adaptação da light novel não foi muito fiel, com um roteiro acelerado e várias cenas e pedaços cortados para caber quatro volumes em doze episódios. Mas pra quem já é macaco velho nessa área, isso não é surpresa. Animês adaptações de LNs tem como objetivo principal atrair pessoas para comprar o livro, e a qualidade do produto é um ponto secundário. O problema é quando a qualidade fica tão em segundo plano, que você acaba afastando as pessoas ao invés de atraí-las, como já aconteceu antes. Ainda assim, Tsurekano conseguiu ser interessante o suficiente como animê para cumprir seu papel de me interessar pela novel. Ela é inédita no Brasil, mas é publicada em inglês pela J-Novel Club. Certamente adicionarei a minha interminável lista de livros para ler.
Acredito que há formas melhores de usar o seu tempo, mas “My Stepmom’s Daughter is my Ex” é divertido o bastante e específico o bastante para eu acreditar que é o animê certo para alguém por aí. O meio da temporada é um pouco complicado, mas o começo e o fim compensam esses dois ou três episódios ruins, e 3,5/5,0 parece uma nota justa para uma excelente propaganda de doze episódios.
E mais uma vez, comprovamos que uma expectativa baixa é a melhor coisa que um animê pode ter a seu favor.
“My Stepmom’s Daughter is my Ex”, ou “Tsurekano”, está disponível na plataforma de streaming Crunchyroll, completo em doze episódios, com legendas em português.