Vencedora do edital de quadrinhos do ProAC em São Paulo no ano passado e lançado ainda este mês pela Nemo, Gioconda nos conta uma história apaixonante e entrega uma celebração, não só do amor entre duas pessoas como também ao amor que temos pela arte e, além disso, homenageia com maestria todo o trabalho do grandioso Leonardo Da Vinci.
Em Gioconda, acompanhamos Francisco: um imigrante brasileiro que mora em Paris e trabalha no famoso museu do Louvre como faxineiro, sendo o responsável pelo andar no qual se encontra a Monalisa – a famosa obra de DaVinci. Como um grande amante das artes e admirador da obra, o protagonista acaba se apaixonado pela criação de Leonardo DaVinci e pelo seu misterioso sorriso. Até que, em um certo momento, ele encontra uma mulher extremamente semelhante à obra do pintor enquanto andava no metrô da cidade
Com uma trama simples e, relativamente curta, Gioconda consegue se mostrar como uma obra simples e bela que cativa o leitor do início ao fim. É interessante observar que a obra não se restringe apenas em exibir nas páginas toda essa relação entre Francisco, a obra e Elisa – a mulher pelo qual Francisco se apaixona. Além de trabalhar o mistério por trás da semelhança física entre a Elisa e a obra de arte, o quadrinho também aborda, mesmo que brevemente, a xenofobia que o brasileiro sofre em outros lugares.
A história feita por Felipe Pan consegue, com a sua simplicidade, arrastar o leitor mas o grande mistério principal que marca a obra. Além disso, as ilustrações de Olavo Costa com a coloração de Mariane Gusmão casam de forma perfeita e com um grande brilhantismo onde se nota todo o carinho pelo qual a obra foi feita, além da paixão pela mesma.
De fato, um dos únicos pontos negativos da obra é a sua numeração de páginas: por mais que consiga apresentar uma excelente narrativa e expor suas ideias de forma clara, a trama é relativamente curta e diversos assuntos que poderiam ser mais desenvolvidos acabam passando despercebidos ou são deixados de lado com o tempo.
Por fim, celebrando o amor pela arte e homenageando de forma incrível as obras de DaVinci, além de abordar temas importantes, como a xenofobia, em algumas de suas páginas, Gioconda é um quadrinho cuja a simplicidade encontra a beleza e nos entrega uma história formidável da forma mais linda possível, aquecendo o coração do leitor até o fim.
Número de páginas: 112 Capa: Papel Cartão Editora: Nemo Data de Publicação: 15 de Dezembro de 2021 Dimensões: 21 x 1.2 x 28 cm Onde comprar? Amazon
Mantendo sua tradição de apresentar ao leitor quadrinhos europeus alternativos, a Nemo, selo de histórias em quadrinhos do Grupo Autêntica, traz ao mercado mais um título de autor estreante no Brasil: Aprendendo a Cair, do quadrinista alemão Mikaël Ross.
Ao contrário do que muitos imaginam, não estamos todos no mesmo barco. No máximo, estamos todos no mesmo mar, porém alguns têm embarcações luxuosas, outros possuem botes, uma outra parcela conta com canoas rudimentares e muitos outros, sem a condição mínima, acabam se afogando sem um colete salva-vidas sequer. Todos passam por momentos complicados e de superação, mas as condições variam para cada indivíduo, e para uns a volta por cima tende a ser bem mais desafiadora. Aqui, Noel é um jovem aparentemente normal aos olhos de quem o vê sem observar atentamente. É mais um garoto berlinense fã da banda AC/DC, com fixação por capas de super-heróis, que gosta de marshmallows e ajuda sua mãe nas compras de supermercado. Mas, ao observar suas atitudes e as somando à sua forma de se comunicar e agir, logo se percebe sua condição, que necessita de cuidados. Por isso, Noel é protegido com zelo por sua mãe.
IMAGEM: cortesia Editora Nemo
Como a queda de um vaso de cristal, despedaçando no chão em incontáveis estilhaços após ser vítima de uma ação involuntária, a vida de Noel muda após sua genitora, pessoa à qual depende totalmente sua vida, sofre um derrame e vem a falecer. Sendo menor de idade, sem outros familiares e principalmente por suas condições especiais, o desafortunado garoto é transferido contra a sua vontade do apartamento onde sempre viveu para um centro de cuidados onde precisa conviver com pessoas em mesma situação social e clínica, porém desconhecidas ao seu convívio. A queda de Noel é devastadora e ele ainda não aprendeu como se levantar, ainda mais levando em consideração sua capacidade diferente de perceber as situações.
IMAGEM: cortesia Editora Nemo
A trama tem seu valor: é louvável como foi inteiramente construída através da condição do protagonista, não só nos balões de diálogo, mas também nas caixas de texto. A narrativa é feita totalmente sob o olhar de uma pessoa inocente que vê o mundo de forma muito particular. O tema sensível e humano é um grande atrativo e todo o cuidado no traço e cores do autor também são dignos de nota, porém falta consistência na execução final.
IMAGEM: cortesia Editora Nemo
Algumas partes da história parecem não ter fim e são interrompidas abruptamente para dar lugar a outro acontecimento no capítulo seguinte. O anticlímax acaba presente em partes decisivas e assim afasta o apego a uma trama que estava até então sendo bem executada. Infelizmente, não se pode agradar a todos. Apesar da grande aceitação de público e crítica, colhendo frutos como o PrêmioMax und Moritz de 2020 na categoria Melhor Quadrinho em Língua Alemãe traduções e edições para diversos países, a obra não toca como se esperava.
Edições de Aprendendo a Cair em diversos idiomas. IMAGEM: mikaelross.com
Encomendada em celebração dos 150 anos da instituição Evangelische Stiftung Neuerkerode, Aprendendo a Cair é fruto de um mergulho do autor não só às instalações da fundação, mas também de convivência com os lá residentes. A imersão ajuda na compreensão do quão necessário é a atuação nessa área de assistência, que muitas vezes é tratada de forma invisível.
IMAGEM: cortesia Editora Nemo
A edição da Nemo segue os mesmos padrões de sua linha de quadrinhos quanto ao formato, capa e papel utilizados já há um bom tempo. Esta é apenas a terceira obra do quadrinista de Munique. Em 2021 justamente no ano em que completa 10 anos de carreira, Ross lançou seu quarto trabalho: Goldjunge (Menino de Ouro, em tradução livre) narra a juventude de Ludwig van Beethoven, que mais tarde se tornaria um dos maiores compositores da humanidade. Ainda não se sabe quando ou se outras HQs de Ross serão publicadas por aqui, mas a porta está aberta, e seu acolhimento não só no mercado brasileiro mas em outras partes do mundo tende a ser com similar esmero ao visto em Aprendendo a Cair.
Aprendendo a Cair
Mikaël Ross (roteiro e arte)
Renata Silveira (tradução)
Mariana Faria (revisão)
128 páginas
24 x 19 cm
R$69,80
Capa Cartonada
Nemo
Data de publicação: 09/2020
Pouco mais de um ano depois de seu último lançamento no Brasil (A Grande Odalisca, publicado em duas partes pela editora Pipoca & Nanquim), Bastien Vivés retorna ao mercado nacional com Polina, que narra a ascensão da dançarina Polina Ulinov com foco em sua relação com Nikita Bojinski, seu exigente e carrancudo professor.
É curioso como esta obra pode ser comparada como a real carreira de Bastien Vivés pois, assim como a protagonista, o autor apareceu na cena de quadrinhos franco-belga ainda jovem e, com o passar do tempo, acompanhamos o seu desenvolvimento tal qual criança aprendendo a andar, falar e, com razão, arrancar sorrisos bobos de seus genitores a cada nova descoberta.
E é exatamente o que se sucede: acompanhamos atentamente todos os passos de Polina desde suas tímidas tentativas de desenvolvimento na carreira até alcance de níveis maiores e mais difíceis. Seu mentor e professor Bojinski sempre está lá como uma pagem ou uma ave que não deixa a cria desgarram de seu ninho e assim comprometendo voos mais altos da bailarina.
Apesar de ser lançado no Brasil depois, Polina foi originamente publicado antes de Uma Irmã em seu país de origem, e percebe-se bem a diferença da arte de Vivés: Seu traço aqui é muito mais simples e rudimentar, com rostos que muitas vezes sequer se completa o desenho de suas partes. Muitos personagens mesmo em destaque são retratados somente como silhuetas. Bojinski, por exemplo, sua barba em diversas oportunidades é mais vista que seus olhos.
Tal peculiaridade na arte remete muito aos momentos que vivemos na vida, onde algumas pessoas têm mais importância que outras, mas com o passar do tempo nossas relações vão se desgastando ou fortalecendo, assim ganhando ou perdendo valor, demonstrado na quantidade de detalhes nos atributos físicos retratados na narrativa.
Polina é o quarto título de Vivés publicado no Brasil, que teve sua estreia por aqui com O Gosto do Cloro, pela editora Barba Negra em março de 2012. Dentre todos, é segundo publicado pela Nemo, que segue o padrão de edição de Uma Irmã com capa cartonada e mesmo formato ainda explorando a bibliografia do autor em seu catálogo da Casterman. Uma sugestão de próximo passo possivelmente seria de Le Chemisier, também da Casterman, pela editora brasileira. Independente do que vier, Vivés tem um catálogo extenso, e vale a pena ficar de olho em boa parte de sua bibliografia.
Polina
Bastien Vivés (roteiro e arte)
Fernando Scheibe (tradução)
Eduardo Soares (revisão)
206 páginas
17 x 24 cm
R$59,80
Capa Cartonada
Nemo
Data de publicação: 04/2021
Desde que o Grupo Editorial Autêntica decidiu se aventurar no mercado de histórias em quadrinhos brasileiro fundando a Nemo, seu selo voltado a esse mercado passou por algumas transformações: começou intercalando entre material nacional e estrangeiro com autores consagrados do mercado franco-belga em publicações com grande formato e capa dura. Experimentando novas fontes e em busca de adaptação perante as exigências do mercado e público, estabeleceu-se com material autoral da cena alternativa europeia e norte-americana. Prestes a completar uma década de vida em 2021, a Nemo traz em seu mais recente lançamento Degenerado, um título que, mesmo que de forma indireta, tem muito a ver com suas mudanças ao longo desses anos.
Não é fácil ser alguém. Mesmo cada um em particular pode não saber profundamente quem é ou o que gostaria de ser. A vida e nossa forma de viver é feita de experiências, de riscos que trazem acertos, erros, vitórias e derrotas. Não existe vida sem risco. Em boa parte ou até por pura teimosia, só temos consciência do resultado de nossas escolhas caso as coloquemos em prática.
Paul Grappes e Louise Landy conheceram-se ainda jovens em uma confraternização entre amigos. Como diversos casais afogados na ingenuidade da paixão de um pelo outro, casaram-se desejando passar o resto de suas vidas juntos. Mas então veio o serviço militar e Paul, por uma lei que ia além de seu poder, precisou se alistar no exército. Então em 1914 estoura A Grande Guerra, a Guerra das Trincheiras, trincheiras que foram usadas não só para separar o militar recém-promovido a cabo de seus adversários, mas também de sua amada.
IMAGEM: Grupo Autêntica
Afetado pelos horrores que presenciou, Paul torna-se desertor no intuito de voltar aos braços de Louise e para fugir da prisão iminente aos que abandonam o campo de batalha, começa a se vestir e comportar como mulher assumindo a identidade de Suzanne. Porém, Paul aos poucos vai não apenas se adaptando, mas desfrutando de sua nova vida, assim percebendo que talvez agora sim era a pessoa que desejava ser e que sempre esteve dentro de si, e não a pessoa que era outrora e apresentava em seu exterior.
IMAGEM: Grupo Autêntica
Em uma alternância quase impossível, os desenhos de Chloé Cruchaudet conseguem ao mesmo tempo serem pesados e delicados. O clima pesado e os horrores da guerra coexistem em uma Paris retratada quase sempre em tons de cinza, salvo raras exceções onde as cores azul e vermelho, que representam na cultura popular liberdade e fraternidade na bandeira da França, gritam por espaço na narrativa densa como uma neblina.
Baseada em uma história real, Degenerado é em grande parte sobre uma crise existencial em consequência da guerra, mas pouco abordada ou sequer imaginada por muitos de nós. Suzanne na verdade pedia socorro dentro de Paul Grappes para mostrar que existia. A possibilidade de contar sua história que resultou no livro La Garçonne et L’Assassin mostra que sua necessidade de se esconder era na realidade a chance de se libertar adentrando em um novo mundo. O ser humano é frágil como uma casca de ovo, porém quase sempre é obrigado a ostentar-se tal qual uma pele grossa e pouco permeável como a de um réptil.
IMAGEM: Grupo Autêntica
Estabelecendo-se já há algum tempo em um formato característico, edição da Nemo segue os padrões anteriormente adotados pela editora, com capa cartonada e papel couchê em formato 25 x 19 cm. Esta é a primeira obra de Cruchaudet publicada no Brasil, e a escolha por Degenerado em sua estreia provavelmente deve-se à quantidade de prêmios arrebatados pela obra principalmente na França e Itália. Assim como já fez com outros quadrinistas da Europa, a exemplo de Fabién Toulmé e Gauthier, vale a pena apostar em outras obras da autora por aqui, mesmo outras sendo menos conhecidas ou agraciadas, mas ainda assim trazendo frescor ao mercado brasileiro. Como sugestão, vale conferir por exemplo Groenland Manhattan e La croisade des innocents, publicadas originalmente em 2008 e 2015.
Degenerado
Chloé Cruchaudet (roteiro e arte)
Renata Silveira (tradução)
Bruna Emanuele Fernandes (revisão)
190 páginas
25 x 19 cm
R$69,80
Capa Cartonada
Nemo
Data de publicação: 11/2020
Já está à todo vapor a pré-venda de Degenerado, próximo lançamento da editora Nemo. Com roteiro e arte da francesa Chloé Cruchaudet é uma graphic novel que conquistou leitores e críticos, sendo vencedora do Grande Prêmio da Associação de Críticos e Jornalistas de Quadrinhos Francesa (2013) e o tradicional e importante Festival de Angoulême (2014), na categoria Melhor Álbum.
Degenerado é baseado no livro La Garçonne et l’assassin, de Fabrice Virgili e Danièle Voldman, e conta a história do casal Paul e Louise, que se casam quando a Primeira Guerra Mundial estoura.
Ambientada em Paris de 1911, Paul e Louise se conhecem, apaixonam e casam. Paul está servindo o exército e quando começa o conflito armado, a separação acontece. Ele escapa do inferno das trincheiras e acaba se tornando um desertor, e reencontra Louise em Paris.
Para dar fim a sua clandestinidade, Paul tem uma ideia: ele resolve mudar de identidade. E a partir de agora se chamará Suzanne. Entre a confusão de gênero e o trauma da guerra, o casal terá um destino extraordinário. É a história surpreendente de Louise e seu marido travesti, que se apaixonaram e se separaram na Paris dos loucos anos 1920.
Degenerado tem formato 19 x 25 cm, 192 páginas e o lançamento oficial será em outubro.
Quando conhecemos alguém desde o início é quase impossível nossa relação não ser mais intrínseca. Seja esta uma publicação, evento, objeto de valor sentimental ou principalmente uma pessoa. Fabien Toulmé é um desses casos: Através da editora Nemo, podemos observar de seu nascimento até seu desenvolvimento no mundo da histórias em quadrinhos, como parentes próximos que acompanham um recém-chegado membro em sua família que, tal qual uma criança, dá um passo de cada vez nessa nova empreitada. O laço com o autor aperta ainda mais graças à sua relação com o Brasil, acompanhada logo de cara em Não Era Você Quem Eu Esperava, primeira publicação dele em nosso país, e já ali em sua estreia com autor solo, Fabien nos convidava a conhecer sua vida e então, com nossa leitura, pudemos tornar a relação recíproca.
Seguindo mais uma vez essa linha, Fabien torna-se personagem de sua própria narrativa em A Odisseia de Hakim 1. Da Síria à Turquia dessa vez no intuito de contar a história de uma família que não é a sua, mas que a adota por sua necessidade de informar. A empatia nesse caso instala-se no momento em que viu a diferença de tratamento em dois casos que resultaram em tragédias, sendo um deles visto apenas como estatística: As mortes por afogamento no mar Mediterrâneo de migrantes que tentavam chegar à Europa. Estas, como a de todos os outros, são vidas humanas. Porém foram marginalizadas como se valessem menos, mas poderiam ser vidas de qualquer pessoa, e foram perdidas como um sopro.
A data de 11 de setembro de 2001, dia de um atentado terrorista em solo norte-americano que dispensa maiores comentários, ainda é rememorada pelo mundo inteiro como um acontecimento que, de fato, mudou a História do mundo. A comoção global é evidente ainda pelo fato de, até hoje muitos conseguem recordar com detalhes onde estavam quando souberam desta notícia, mesmo estando quilômetros de distância do ocorrido ou sequer habitar ou ter visitado o mesmo continente. Mas será que a mesma precisão pode ser vista no atentado terrorista em uma escola de Peshawar, Paquistão em 2014, Somália em 2017 e os já incontáveis casos desde o início da Guerra Civil Síria? Grande parte do mundo sequer sabe da existência desses acontecimentos e esta é a indiferença humana que Toulmé tenta amenizar em sua obra.
Assim, a História real de Hakim e sua família vem à público para mostrar algo que grande parte do mundo esqueceu ou sequer faz esforço para lembrar. Muitas vezes nos sentimos como estranhos inclusive quando visitamos a residência de amigos ou até familiares, como então nos sentiríamos caso fôssemos obrigados a deixar nossa terra, que foi de nossas famílias por gerações, pois nossa vida depende disso?A vida de Hakim é esmiuçada desde sua infância e vai avançando com momentos alegres e conturbados e várias passagens mostram também semelhanças de sua vida com a dos ocidentais. Sem dúvida, quando pouco se sabe da rotina de alguém, a criação de esteriótipos torna-se simplesmente uma questão de tempo e Hakim faz questão de mostrar que sua vida no oriente médio tem ou teve sim momentos iguais aos dos europeus, uma vez que este era o mercado inicialmente destinado à publicação.
Impressiona como a rotina nos faz tratar como normal algo que deveria ser visto com espanto. É assim inclusive no Brasil, onde uma média de 60 mil homicídios ao ano resulta em municípios com média de assassinatos por número de habitantes maior que em países em guerra civil. Hakim acaba se adaptando à sua “normalidade”, contando cada acontecimento com uma frieza de quem vive corriqueiramente insucessos que ninguém mereceria. Corpos sem vida estirados nas ruas, gritos de socorro já sem esperança, incontáveis feridos atendidos de forma precária em mesquitas e prisões sucedidas de interrogatórios com tortura fizeram parte de sua vida assim como nossa rotina de sair de casa e trabalhar, estudar ou passar um tempo com familiares. As várias partes violentas e cruas da HQ contrastam com o traço claro, redondo e delicado do autor, mostrando que, apesar de trazer humanidade à frieza dos números com que essas pessoas são tratadas, Toulmé ainda mostra suas marcas características e cada página.
Cada fato, tanto real quanto particular, é mesclado com informações sobre a História e geopolítica do Magrebe e Oriente Médio. Toulmé está em meio a todo esse confronto não só por narrar os acontecimentos, mas por agora ter o poder de decisão e influência no que diz respeito a uma metonímia de todo esse imbróglio. Que se explique: Mesmo buscando conservar o cerne da questão, que é trazer humanidade à história de uma vida que possivelmente seria mais uma a cair no esquecimento, o quadrinista está presente para através da história de uma família emergir o, já há muito tempo, necessário entendimento do calvário passado por todos os que precisaram deixar sua vida para trás em busca de outra em território desconhecido.
A Odisseia de Hakim é uma série ainda em publicação que já conta com três volumes lançados pela francesa Delcourt, sua editora original. Portanto, aqui temos apenas o início de uma jornada ainda não sabemos bem onde vai parar, mas que já embarcamos mesmo assim.
A Odisseia de Hakim 1 – Da Síria à Turquia Fabien Toulmé (roteiro e arte)
Fernando Scheibe (tradução)
Carla Neves (revisão)
274 páginas
17 x 24 cm
R$64,90
Capa Cartonada
Nemo
Data de publicação: 04/2020
A Editora Nemo começou a pré-venda da Graphic Novel Aprendendo a Cair, do quadrinhista alemão Mikael Ross. A HQ foi vencedora do Max Und Moritz, o grande prêmio alemão dos quadrinhos e ela fala sobre se reinventar.
Neuerkerode é uma vila alemã gerida inteiramente por pessoas com algum tipo de deficiência mental. Eles administram o restaurante local, o bar, o supermercado… eles estão no comando. É um lugar lindo que realmente existe, e é lá que esta história se passa. Noel vive há muitos anos com a mãe em um pequeno apartamento em Berlim, até que um dia tudo muda. Ela cai. Um derrame, ao que parece. De repente, ela está no chão, rodeada por uma grande poça de sangue. A vida de Noel se abala radicalmente.
Então um homem com bigode surge e afirma que Noel não pode mais ficar sozinho em seu velho apartamento. Ele tem que se mudar, para longe de Berlim, para longe de casa. Para um ambiente completamente diferente, um centro de acolhimento para outras pessoas com deficiência. Pela primeira vez na vida, Noel está sozinho. Mas também é a primeira vez que ele vive com tantas outras pessoas. Em quem ele pode confiar? De quem ele gosta? Quem o ama?
Aprendendo a Cair tem formato 19 x 25 cm, 128 páginas, capa cartonada e o valor de R$ 59,90. E o lançamento oficial será no final de agosto.
Serializada de forma impressa na França entre 2016 e 2017 pela editora Gallimard, a série Ousadas (Culottées no original) é uma criação da quadrinista Pénélope Bagieu (Uma morte horrível) feita inicialmente para seu blog, tendo chegado completa ao Brasil graças a uma iniciativa da editora Nemo entre 2018 e 2020, em dois volumes.
A coleção Ousadas apresenta ao longo de suas 300 páginas trinta mulheres excepcionais de suas respectivas épocas que, com suas atitudes, perduram até hoje de maneira icônica – ou também acontecimentos modernos, mais recentes. São histórias reais de figuras importantes que revolucionaram de alguma forma a política, a arte, os esportes e outras esferas da sociedade predominantemente dominadas por homens.
Caixa especial com a coleção completa em dois volumes. Já à venda.
Pénélope Bagieu narra, tanto no primeiro quanto no segundo volume, de forma similar. Cada “capítulo” conta a história de vida e importância de determinada mulher, somando quinze no total em cada edição. Sua narrativa se mantém parecida em todos os capítulos: são cerca de seis a sete páginas, cada página composta por nove quadros. Em seguida, uma ilustração grande que preenche duas páginas. Seguindo esta fórmula, a autora habilmente possui espaço para mostrar todos os pontos relevantes do nascimento, vida e às vezes morte da figura histórica que aborda sem problemas, visto que é um esquema de narrativa basicamente perfeito.
Seus desenhos, claros e belos, transmitem quadro a quadro os principais pontos que o texto destaca, seja em recordatórios ou em balões. E suas cores mudam conforme a abordagem de cada capítulo, seja apenas pela mudança de tom como também pelas diferenças geográficas, visto que cada mulher é de um local diferente do planeta.
A autora segue uma narrativa dividida em nove quadros por página.
É importante ressaltar que as histórias de vida narradas por Bagieu não se limitam apenas às tragédias. Todas têm, de alguma forma, uma mensagem poderosa a ser passada. Entretanto, algumas são puramente espirituosas e divertidas, e ao mesmo tempo inspiradoras – enquanto outras são, de fato e necessariamente, revoltantes.
No segundo volume, o mais recente lançado no Brasil – e que completa a coleção – temos histórias de uma rapper, de uma astronauta, uma vulcanóloga, jornalista investigativa, inventora, ativista dos direitos dos animais, entre outras. Todas são unidas de alguma forma por incompreensão, machismo intrínseco às suas culturas e/ou tragédias pessoais. E todas são Ousadas o suficiente para iniciarem suas próprias revoluções.
Ao final de cada capítulo o leitor é premiado com uma bela ilustração que ocupa duas páginas. Os estilos de arte variam conforme a temática do capítulo.
A quebra dos preconceitos é emocionante e inspiradora. Todas as histórias são bem embasadas de acordo com as biografias (oficiais ou não) de cada mulher, e a autora cita, em determinados momentos, algumas fontes que podem ser ou foram conferidas para a narração daquilo que está em quadro.
A coleção nacional é, como padrão da Editora Nemo, um primor gráfico e editorial. Como fator de curiosidade, vale citar que a coleção Ousadas em inglês apresenta vinte e nove e não trinta histórias. O que ocorreu foi uma censura da história de Phoolan Devi, a Rainha Bandida da Índia, por apresentar cenas de estupro quando ela tinha apenas dez anos de idade, por seu marido imposto pela família.
Dificilmente se encontram hoje em dia pessoas que, em algum momento da vida, não tiveram qualquer tipo de preocupação a respeito de seu peso. Essa vigilância é comum tanto para menos quanto para mais. Simpatias, cirurgias, alimentação regrada, produtos milagrosos e muito mais nos enchem a cabeça na busca de nossa forma ideal. Ideal para nós? Para os outros? Para ambos? Não há somente uma resposta. A vaidade nos prende. Nos põe em uma busca que não sabemos bem o resultado, mas que nos faz pensar que vale a pena.
Segundo dados do Ministério da Saúde de julho de 2019, 55,7% dos brasileiros estão acima do peso e destes, 19,8% são considerados obesos. Nesse último grupo, temos um maior índice em mulheres (20,7%) do que em homens (18,7%). Na França, a estatística é 50% acima do peso e 15,7% obesos. Distinguindo por sexo, os homens “vencem” na situação de obesidade por pouco: 15,8% contra 15,6% das mulheres. Dentre alguns exemplos de enfermidades, diabetes, fibrose, hipertensão e outros problemas cardiovasculares estão associados à obesidade. Indo muito além da questão estética, o peso é imprescindível para indicar situações sobre saúde e doenças.
Apesar de fazer parte da ligeira minoria em sua terra, Navie está incluída nesse grupo de obesos, e pior: Na situação de obesidade mórbida, classificação máxima onde a pontuação de IMC (Índice de Massa Corporal) ultrapassa 40 pontos. Seu relato de drama pessoal é espantoso: Com auxílio dos desenhos de Audrey Lainé, Navie abre sua vida ao leitor como poucos teriam coragem. Através de estatísticas, cálculos, citações, humor e até analogias com referências de fábulas, a autora diz como buscou refúgio de problemas internos em sua hiperfagia e até que ponto o peso a influenciou em relacionamentos, honestidade, saúde e sexo.
Navie narra seu peso como um fardo que se transforma em sua consciência. Daí seu Duplo Eu. Ela conversa com si mesma, discute, debate e toma decisões sendo ela a própria discordância. Muitos confabulam com si próprio, mas no caso de Navie sua consciência se torna a antagonista. Por isso mesmo ela decide tomar atitudes, mudar para “se livrar de si”. Mas como quase sempre, a vida não tem consequências exatamente como se projeta.
O processo de perda de peso ao qual se submete mostra que o maior problema era a autora e seus obstáculos psicológicos. Ela se odeia e assim torna nociva sua mente e decisões. Esta narrativa gráfica também mostra como esse drama que atinge pessoas do mundo inteiro é explorado pela imprensa e mídia, em reportagens e programas de televisão transmitidos inclusive no Brasil. Quilo por Quilo, de Chris Powell, é um grande sucesso de audiência na TV por assinatura.
Há muitas pessoas que se consideram satisfeitas na forma e aparência que apresentam. Desde que continuem (como qualquer outro) tomando os devidos cuidados com sua saúde, se sentir bem é o que importa no fim das contas. A própria autora hoje participa de um site multimídia a respeito do assunto. No Brasil, coletivos como Projeto Cada Uma e Toda Grandonamostram relatos reais sobre o assunto que, poderiam não só serem HQs, mas toda outra mídia narrativa possível.
Duplo eu é uma saga sobre aceitar a si mesmo para à partir daí tomar decisões e não o contrário. A pessoa se perde no momento em que confunde esses dois caminhos e começa pelo fim. Ao menos quase sempre é possível se reavaliar e tomar a decisão necessária.
A Nemo mais uma vez nos brinda com algo diferente do habitual. Suas preferências editoriais sobre o mercado europeu mudavam como um camaleão desde a criação no selo pelo Grupo Autêntica em 2011. Passando por ficções de Moebius e Enki Bilal, parece ter encontrado seu lugar no Brasil trazendo HQs do velho mundo onde o foco principal é o drama da vida real. Os leitores que buscam algo diferente agradecem, porém material da “velha fase” da editora ainda está incompleto por aqui: Aâma, cujo volume 3 é o mais recente a sair no Brasil e veio para cá em 2017, tem um quarto e último tomo lançado há quase 5 anos na Europa e que conclui essa saga, mas ainda encontra-se inédito em português; A coleção Safadas também tem um derradeiro volume intitulado Ciné Fripon (Safadas Cinema, em tradução livre) que nunca chegou por aqui. Apesar do ótimo trabalho realizado em outros seguimentos, vale a pena a editora concluir essas coleções já iniciadas.
Duplo Eu
Navie e Audrey Lainé
144 páginas
Formato: 17 x 24 cm
R$54,90
Brochura
Editora Nemo
Data de publicação: 07/2019
Deficiência Intelectual costuma ser um tema raramente abordado em mídias tradicionais. Geralmente quem é acostumado a falar sobre isso, ou convive com quem possui, ou trabalha com serviços voltados para o assunto.
Eu poderia somente vir aqui e dizer que precisamos de mais materiais voltados para o tema, mas não é esse o objetivo do texto, é pertinente deixar bem claro, que por mais leituras que a gente realize, só conseguimos aprender o que é a deficiência de verdade, quando convivemos com ela, seja direta, ou indiretamente.
Mas mesmo dizendo isso no parágrafo anterior, eu ainda arriscaria dizer que existe mais um meio de sentir e nos colocar na pele de quem possui ou convive com a deficiência intelectual. E como o título já diz, estamos falando sobre os quadrinhos.
Do dia 21 ao dia 28 de Agosto desse ano, acontece a Semana da Pessoa com Deficiência Intelectual, e claro, aproveitando esse gancho, separamos aqui 5 obras que te ajudam a entender, e até mesmo, sentir na pele tudo que esse assunto nos trás.
Turma da Mônica: Um Amiguinho Diferente
Capa da Edição
Nada melhor iniciar a nossa Lista com quem nos ajudou (pelo menos a grande maioria dos atuais leitores Brasileiros) a iniciar nos quadrinhos desde a infância, o grande Maurício de Souza.
No ano de 2001, ele foi convidado para desenvolver um projeto com o objetivo de alertar a população sobre os sintomas do autismo. E com alguns meses e bastante trabalho, foi criado mais um personagem da Turma da Mônica, o André.
No seu primeiro quadrinho, o André, de forma indireta conseguiu passar diversas informações sobre o autismo e o melhor de tudo, de um jeito claro e lúdico, de modo que crianças e seus familiares conseguiam compreender, de forma natural e sem preconceitos, do que se tratava o espectro.
Além do quadrinho, também foram criadas seis vinhetas de desenho animado, que alertam pais, familiares e professores para a importância do diagnóstico precoce e esclarecem o comportamento que deve ser adotado com a criança autista.
A turma da mônica sempre foi um grande exemplo de inclusão e representatividade. Além do André dentro do bairro do Limoeiro temos o Humberto, que é um menino mudo, a Dorinha que é uma menina cega, o Luca que é um menino cadeirante, e também a Tati que é uma deficiente intelectual com síndrome de Down.
A Vida Com Logan
Capa do Quadrinho
Também nacional, A vida com Logan nos mostra um pouco do cotidiano de uma criança com Síndrome de Down. Crenças limitantes são desfeitas dentro do quadrinho que é escrito por nada menos que o pai do Logan. Sim… o Logan é real! E é filho do quadrinista Flávio Soares, que graças a convivência com o filho, nos consegue passar uma ideia diferente de tudo que estamos acostumados a ouvir sobre o que é a Síndrome de Down.
Além de todas as aventuras e emoções no quadrinho, conseguimos também muitas informações sobre a Síndrome no final da obra e inclusive fotos do verdadeiro Logan.
A Diferença Invisível
Capa do Quadrinho
Saindo um pouco dos nacionais, chegamos a um quadrinho publicado pela Editora Nemo, que como de costume foge de todo o Mainstream.
A Diferença Invisível acaba trazendo, além de toda informação sobre o Autismo, uma história de descoberta. Já que a Francesa Marguerite, protagonista do quadrinho, após muito tempo se sentindo deslocada, consegue entender o porque de toda a angústia que sentia.
Há um tempo publicamos aqui uma resenha sobre esse quadrinho (Clique aqui para ler) e para não perder muito a graça da leitura do texto em si, sugiro que clique no link e aproveite mais a fundo a obra de arte que ele é, e consiga entender a importância da mistura de cores juntamente do desenvolver da história.
Bim, Um menino Diferente
Capa da edição
Voltando ao nacional, mas não deixando de inovar, trazemos um quadrinho simples (à primeira vista), não muito conhecido, mas de grande importância para o mundo dos Quadrinhos. Bim, Um menino diferente retrata a vida de um menino com Paralisia Cerebral, e consegue provar, que apesar de todas as suas dificuldades, ele consegue ser uma criança feliz.
Bom… Lendo a sinopse, daria pra pensar que seria mais uma história clichê de filmes de sessão da tarde presente nos quadrinhos. A diferença está em quem escreveu o quadrinho. Bim acaba se tornando um autorretrato do autor Fábio Fernandes, que possui paralisia cerebral e mesmo com todas suas limitações publicou o seu primeiro quadrinho e se inseriu no mundo editorial.
Não era Você que eu esperava
Capa da Edição
Finalizando a nossa lista, Não era você que eu esperava acaba sendo um dos quadrinhos mais emocionantes e que mais nos toca sobre o assunto tratado.
Fabien Toulmé narra e desmistifica, com bastante emoção e delicadeza, sua experiência com sua filha que possui Síndrome de Down. O ponto principal no quadrinho, ao meu ver, nem seria somente a deficiência em si, mas todo o contexto extremamente bem trabalhado, e as ocorrências na vida de todos que estão ao redor da família do protagonista. Acredito que essa obra deveria ter um espaço na coleção de todos, não somente pelo tema, mas sobre todo o modo em que ela é contada.
Eu até gostaria de falar mais sobre ele por aqui, mas como no caso de A diferença Invisível, também temos um texto muito bom e bastante detalhado sobre o quadrinho aqui na torre, que não precisa de nenhum complemento (Clique aqui pra conferir).
Finalizamos a nossa lista, mas espero que nunca finalizemos a luta por toda essa causa, se você conhece algum deficiente intelectual, se informe, interaja e utilize todo esse super poder que nos foi dado chamado inclusão. Uma excelente semana da Deficiência intelectual para todos e até a Próxima.