Ver minisséries tendo um grande destaque é algo atípico, geralmente elas são destinadas para um público mais seleto e menor do que as grandes produções da gigantesca Netflix. Só que agora, a plataforma de streaming mudou tudo com a sua nova produção, ‘O Gambito da Rainha’, uma adaptação do romance publicado em 1983, escrito por Walter Tevis. É curioso ver que o livro não é baseado em fatos reais, e sim em experiências do autor; infelizmente, o livro não chegou a ser publicado no Brasil.
Quando falamos sobre ‘O Gambito da Rainha’, é intrigante lembrar que originalmente seria um filme. O co-criador da série, Allan Scott, tem os direitos da adaptação há mais de 30 anos, e ganharia um filme em 2008, dirigido por Heath Ledger e teria o ator Elliot Page no papel principal. Após a morte de Ledger, a produção ficou de lado e parada. Scott assistiu uma série chamada ‘Godless’, e logo em seguida enviou uma carta para Scott Frank, que dirigia, e eles decidiram que o formato de minissérie seria o ideal para adaptar o romance. E em 2018, a série começou a tomar forma, e agora em 2020, temos a minissérie mais assistida da Netflix, e com sua nota no Rotten Tomatoes em 99%.
Começando a falar sobre seu roteiro, citar o fato de que isso não é uma história baseada em fatos reais é algo de se admirar. A riqueza dos detalhes em todas as partes da trama, datas, jogadas, locais e falas, isso cria uma imersão enorme enquanto é assistida. As personagens são tão bem desenvolvidas e humanas, nada parece que é genérico ou que não se encaixa, a escrita é um quebra-cabeças que é feito no tempo certo. Scott Frank é o escritor e o diretor, então, a sua visão para obra foi mais do que certeira. Em história, o triste que é realmente difícil comparar ao livro original, mas vendo a minissérie, é de encher o coração; ver Beth Harmon passar por momentos difíceis e supera-los com a ajuda de amigos e ver como ela coloca sua alma nos jogos. Algo muito bom e curioso sobre a série, é que mesmo sem saber nada sobre xadrez, a série consegue cativar e não deixar o telespectador boiando.
Já sobre as atuações, é impressionante como todo o elenco se destaca de formas maravilhosas. A protagonista, interpretada por Anya Taylor-Joy (A Bruxa, Os Novos Mutantes) rouba a cena com uma atuação bem fria e que evolui a cada jogo e decisão da personagem. Outra personagem que chama muito a atenção é a de Benny, interpretado por Thomas Brodie-Sangster (Maze Runner, Nowhere Boy), que faz um grande enxadrista que ajuda no avançar do desenvolvimento de Beth. Aliás, vale citar que cada personagem aqui é tão bem escrito, que todos influenciam no desenvolvimento de Harmon, nomes como Moses Ingram, Harry Melling, Bill Camp e Marielle Heller trazem atuações ótimas e personagens que são de extrema importância.
Agora partido para partes mais técnicas, precisamos falar sobre a direção. É maravilhosa, Scott Frank faz um trabalho surreal em juntar tão bem o roteiro com sua direção, mas a única parte que diria ser ruim na série como um todo, são algumas partes em seu ritmo, que parece perder forças e pode ficar um pouco massivo. Mas de resto, a direção é ótima, e entrega o que promete. Falando sobre a fotografia, é uma das partes que mais surpreendem, é simplesmente de tirar o fôlego, o trabalho de Steven Meizler foi essencial para criar a atmosfera certa para o mundo de Beth e para criar cenas maravilhosas, e totalmente simétricas. Sua edição também é totalmente bem-feita e com uma montagem ótima, não se perde no storytelling e também é um pilar para criar esse universo da série.
Para entrarmos de forma sutil nos anos 60, precisamos de uma boa cenografia e de bons figurinos, e essa minissérie… acerta em cheio, de forma incrível. Sinceramente, a atenção ao mundo, roupas, locais e carros é extraordinário, o mundo é genuíno e fácil de se perder no tempo. Cada escolha do figurino também é precisa e certeira, suas roupas contam história e também fazem parte da história e sentimentos do personagem. Onde isso fica o mais evidente possível, é na última roupa que Beth utiliza no episódio final, que simboliza uma peça de xadrez da rainha. O tamanho esforço em cada parte dessa obra é algo que é admirável e que outras produções, sejam séries, minisséries ou filmes, devem tomar como inspiração.
Outro ponto essencial é a trilha-sonora, composta por Carlos Rafael Rivera, que trabalhou ao lado de Scott Frank em Godless, e que define muita das cenas o humor e o seu tempo. É incrivelmente única, e cresce ao decorrer do necessário, da excitação da partida, do mundo ao redor de Beth. O piano é o líder aqui, que segue com uma trilha harmônica tão emocional e delicada. E falando sobre o som, também é necessário elogiar o trabalho dos dubladores nessa série, que se encaixa tão bem e que consegue transitar de forma impressionante com as atuações.
Mesmo falando tanto sobre a obra, parece que não arranhei nem a superfície do que O ‘Gambito da Rainha’ é. Ele proporciona algo tão diferente ao ser assistido, cada um de seus episódios chega a ser tão empolgante que não dá vontade de parar. Torcer para ver como o jogo terminará em cada partida de Harmon (mesmo sem saber nada sobre o xadrez), é uma experiência que, se você tiver como presenciar e experimentar, não perca seu tempo. Esse é um dos casos raros de uma minissérie que abala tudo por sua tamanha qualidade, e que merece todos os aplausos.
Apenas com uma citação final, Scott Frank confirmou que fará uma adaptação em filme do livro ‘Laughter in the Dark’, do russo Vladimir Nabokov, estrelado também pela Anya Taylor-Joy. Esperamos que esse filme seja tão bom quanto essa minissérie, que merece ser eternizada como uma das melhores produções, não só da Netflix, como de todo o audiovisual.
Nota: 5/5
‘O Gambito da Rainha’ contém 7 episódios e já está disponível na Netflix.