Não eram para serem contadas em livros repletos de ilustrações meigas, teatros de fantoches, filmes destinados ao público infantil e nem de longe em rodas de sala de aula do jardim de infância. Provenientes da oralidade baseada em mitos e superstições, as fábulas originais tinham como principal objetivo trazer medo e alertar sobre os riscos do cotidiano de uma época em que as florestas escuras reinavam sobre a terra.
Sim, os Irmãos Grimm te enganaram mais vezes que seus familiares quando prometiam comprar para você aquele brinquedo da vitrine quando estivessem já no caminho de volta para casa. Mas pense no lado bom: ao menos você, diferente dos contos originais, provavelmente não foi violentado por aproveitadores que se passavam por “príncipes encantados” ou mutilado por animais selvagens ao se perder em uma vegetação densa que engolia subitamente quem ousasse adentrá-la. Ao menos espero eu que não tenha chegado perto de passar pelas mesmas situações, pois Era Outra Vez – O Lado Sombrios dos Contos de Fadas resgata parcialmente os elementos originais de histórias tradicionais e aqui nem sempre o final é feliz.
Com trabalhos que vão de 3 a 14 páginas, cada um dos cinco capítulos contém uma trama já muito conhecida para leitores habituais ou apenas ouvintes: João e Maria, Cinderela, Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho e A Bela Adormecida aparecem exatamente nessa ordem no recorrer do volume e todas são individualmente dedicadas pelos autores Carlos Trillo e Alberto Breccia a alguém e sendo colegas de profissão a maioria dos homenageados, como Horácio Altuna, Carlos Killian e Enrique Lipszyc, este último o fundador da Escola Panamericana de Arte e Design, situada em São Paulo – SP.
É precisamente nas duas habilidades lecionadas pela escola do citado amigo dos autores que Era Outra Vez… chama mais atenção: aqui, a arte de Breccia ultrapassa a abstração vista em Buscavidas e atinge sua fase mais expressionista. As figuras disformes e subjetivas que compuseram o quadrinho anterior da mesma dupla e também lançado pela Comix Zone agora ganham cores intensas e gritantes, unidas a uma textura que tergiversa o reconhecimento usual de ser apenas em duas dimensões. Aliado a técnicas mistas como colagem de tecido e preenchimento com outros materiais, o traço do uruguaio mais argentino das HQs marca o papel com ideias lançadas por ele inicialmente em 1979, mas que se tornariam recorrentes apenas muito tempo depois nas mãos de artistas como David Mack e Dave Mckean.
Assim, Trillo e Breccia relatam contos de um pai que deliberadamente força seus filhos a se perderem na mata fechada em troca de favores sexuais prometidos por sua atual esposa, crianças que comemoram o assassinato de sua madrasta, uma garota pobre que em busca de realizar o sonho de encontrar o amor de sua vida aceita ser explorada por um programa de televisão, dentre outras trágicas desventuras que acabam por trazer o conteúdo da publicação para um lado bem mais próximo do cotidiano do que se poderia esperar. Apesar de ser inicialmente surpreendente, fica notório que a semelhança com os tempos atuais também era intencional por parte da dupla criativa, já que determinadas referências ao período de publicação original saltam aos olhos do leitor em alguns capítulos.
Dando continuidade à sua biblioteca argentina de histórias em quadrinhos, a Comix Zone segue seu molde de publicação com formato 21×28,5 cm, papel offset, capa dura e lombada, além do recorrente marcador de páginas como brinde. Deve-se destacar também o trabalho feito na capa do volume, de nível superior à edição original lançada na Itália em 1981 pois não só Era Outra Vez… como outros lançamentos de quadrinhos argentinos que chegaram em massa às nossas livrarias e comic shops nos últimos anos não têm uma ilustração original designada para ser sua capa, uma vez que muitas dessas histórias foram publicadas originalmente em revistas junto à outras HQs da época.
A leitura de Era outra Vez… é rápida e satisfatória. Mesmo distante de ser uma obra-prima, ainda mais considerando a extensa bibliografia dos autores, temos uma publicação indicada não só aos entusiastas habituais de histórias argentinas ou seus quadrinistas envolvidos, mas também para os que procuram uma visão diferente da que já estamos acostumados para os contos aqui reunidos.
Era outra Vez – O Lado Sombrio dos Contos de Fadas
Carlos Trillo (roteiro)
Alberto Breccia (arte)
Jana Bianchi (tradução)
Audaci Junior (revisão)
Comix Zone
Capa dura
64 páginas
21×28,5 cm
R$79,90
Data de publicação: 02/2022