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“Undead Murder Farce”: Mistérios sobrenaturais feitos do jeito certo

Você pode dizer várias coisas sobre o anime de hoje (e eu vou, inclusive), mas uma coisa não dá pra falar: Que Undead Murder Farce faz propaganda enganosa. O show realmente tem mortos-vivos, assassinatos e farsas, fazendo jus ao nome. Mas, felizmente, o negócio é muito mais do que apenas isso.

Baseado em uma novel de mesmo nome, com autoria de Yugo Aosaki, “Undead Murder Farce” é um animê recém-concluído com 13 episódios. Produzido pelo estúdio Lapin Track e dirigido por Mamoru Hatakeyama (que também trabalhou, entre outros títulos, em “Kaguya-sama“). A sinopse e o trailer seguem, conforme disponibilizados pela Crunchyroll:

O século XIX. Um mundo habitado por vampiros, golems, lobisomens e outras criaturas sobrenaturais. Beleza imortal e cabeça decepada Aya Rindo, junto com o meio-humano/meio-demônio “Matador de Demônios” Tsugaru Shunichi e sua leal empregada Shizuku Hasei, viaja pela Europa como a detetive sobrenatural “A Usuária da Gaiola”, resolvendo mistérios paranormais enquanto ela procura por seu corpo perdido.

Para começar, temos que discutir o gênero “detetivesco“: O que faz com que obras de mistério sejam divertidas para o público? Isso é uma pergunta bastante pessoal e que cada um terá uma resposta diferente, mas acredito que existe um ponto em comum em todas elas, que é o fato de você “ser capaz de chegar na conclusão correta com base nas informações que foram fornecidas“.

O que faz com que livros da Agatha Christie sejam sucessos até hoje? Bem, além da fama pré-estabelecida que a impulsiona, essa fama foi criada por sua qualidade: Os mistérios em seus livros requerem muito pensamento analítico, mas eles podem ser resolvidos com o que te contaram. Não há sensação pior do que acompanhar toda a investigação, para a solução vir de alguma coisa não contada, literalmente tirada da cartola no último segundo.

E é nesse ponto que muitos mistérios “sobrenaturais” pecam. Quando saímos da realidade e entramos num mundo fantasioso, as leis que regem a lógica e o bom senso são alteradas. O espectador não pode mais usar apenas a sua linha de raciocínio, e depende ainda mais da obra te dando os detalhes necessários para chegar na verdade. E, putz, tem muita obra por aí que decepciona nesse quesito. Olhando para você, Tanmoshi.

Em “Undead Murder Farce”, porém, eles conseguem atingir o equilíbrio entre exposição e sutileza. Ao ter um “monstro especialista em monstros” como a detetive do caso, as longas e muitas vezes desnecessárias (no universo) explicações de como monstros funcionam entram de forma natural na narrativa. Explicar para um vampiro como a regeneração de um vampiro funciona parece inútil, mas é necessário para o espectador. E fazer isso através de uma dedução de detetive, que sempre parte do óbvio para chegar num novo ponto, é uma das melhores formas de fazê-lo.

Captura de tela do episódio 12 de "Undead Murder Farce", mostrando Aya
Toda a investigação que leva à verdade é sempre um papo-cabeça. Hã? Entendeu?? Há! (Reprodução: Crunchyroll)

Com três grandes arcos na temporada, temos três casos tão diversos quanto o elenco da série: Um assassinato de uma vampira de família nobre; um roubo de uma jóia de dentro de uma mansão extremamente vigiada; e uma série de assassinatos misteriosos numa vila isolada. As resoluções são difíceis, mas não impossíveis, e a satisfação do final do arco é ampliada pelo uso de todos os detalhes fantasiosos que nos foram apresentados ao longo dos episódios.

Falando no elenco, o animê reúne figuras históricas e da ficção do século 19 em uma junção que eu cheguei a chamar carinhosamente de “A Liga Extraordinária, versão otaku“. Ou, se preferir um exemplo mais superficial, “Os Vingadores do século 19, versão otaku”.
Sem entregar tudo e ser xingado por spoilar demais, apenas alguns nomes: Sherlock Holmes e James Moriarty; O Fantasma da Ópera; Phileas Fogg e Passepartout… A lista segue, com referências divertidas e interessantes às obras originais, e interações que só poderiam acontecer em colaborações desse estilo.

Junto com os figurões já conhecidos, temos também alguns personagens originais. E eu queria destacar os dois protagonistas: A imortal Aya Rindo, e o “Matador de Demônios” Tsugaru Shunichi. Além de serem extremamente carismáticas e transbordarem personalidade, o jeito como eles interagem entre si é uma recompensa por si só. Mesmo estando ambos em situações precárias, numa busca por vingança que inevitavelmente os levarão à morte (ou, talvez, justamente por estarem nessa situação), eles conseguem brincar, contar piadas e fazer jogos de palavras um com o outro, sempre mantendo a atmosfera ao redor do elenco num alto astral. E esse “alívio cômico”, digamos assim, ajuda o clima da obra a se manter bem mais neutro do que os temas e acontecimentos poderiam sugerir.

Captura de tela do episódio 9 de "Undead Murder Farce", mostrando Tsugaru
O jeito como o Tsugaru é basicamente um shitpost ambulante realmente ajuda o animê (Reprodução: Crunchyroll)

E mesmo quando o animê se debruça mais na ação e se afasta dos jogos mentais e deduções detetivescas, ele ainda dá um show. A coreografia e animação das lutas é sensacional, com os golpes inusitados e manobras inesperadas de Tsugaru sempre me deixando de queixo caído (como exemplificado pela abertura, que, aliás, é um banger). Não apenas bonitas, as sequências se esforçam para parecerem maneiras, dando aquele ar de massavéio que cativa os olhos e te prende na tela.

Por fim, embora não seja uma temática que está na superfície da obra o tempo inteiro, ainda podemos fazer uma leitura interessante sobre a interação entre os humanos e os “monstros“. Claro, a ideia é mais antiga que andar pra frente, mas o conceito de humanizar os monstros e demonizar os humanos é algo que pode ser lido nas entrelinhas do animê. Eu acho essa leitura um pouco simplista demais, porém, e entendo a situação do mundo e a mensagem como algo mais primalístico: No fim das contas, seja humano ou monstro, todo ser vivo se esforça, em certos momentos quase instintivamente, para sobreviver. E numa situação onde você foi colocado com as costas contra a parede, quem poderia te julgar pelo que fez para salvar a própria pele?

Em resumo, “Undead Murder Farce” funciona como história de detetive mesmo com seus elementos sobrenaturais; funciona como animê de porradinha com lutinhas iradas; e funciona como uma “releitura nipônica” do clássico de Alan Moore e Kevin O’Neill. Um dos melhores shows do ano até agora, o redator dá uma merecidíssima nota de 4,5/5,0.

“Undead Murder Farce” está disponível na plataforma de streaming Crunchyroll, com legendas em português.

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“Love Live: Sunshine in the Mirror”: Um minúsculo passo na direção certa

Vou começar essa postagem com um aviso: Sim, estou ciente que animê de idols não é algo que todo mundo curte. Em especial, a galera que acessa esse site provavelmente nunca nem chegou perto de um. Mas tudo bem, a mensagem pode valer para qualquer coisa que seu coração desejar, se a carapuça servir.

Love Live!” é, sem sombra de dúvidas, uma das maiores franquias de idols do Japão. Com centenas de músicas, jogos, animações, shows e produtos, as garotas estão em todo o lugar que você olhar. Só que desde sua estréia, em 2010, a minha percepção da obra do conglomerado Kadokawa é uma de conservadorismo: Treze anos e quatro grupos depois (com um quinto já em trabalho), as coisas parecem não mudar e nunca tentar sair de sua zona de conforto.

Dizer que sou um “grande fã” da franquia seria exagero, mas eu a acompanho desde o original, “Love Live! School Idol Project“, de 2010. E confesso: Na época, odiei o que vi. Com o passar dos anos, novos grupos foram aparecendo, a tecnologia de CGi para danças e coreografias foi melhorando (devido ao enorme fluxo de caixa), e a qualidade do roteiro e da própria forma de se contar as histórias foi aumentando.

Captura de tela do episódio 13 de "Yohane the Parhelion: Sunshine in the Mirror", o spin-off de Love Live, mostrando dois cervos, possuídos por uma aura maligna e olhos vermelhos.
Representação fiel do blogueiro que fala sobre futuro de franquia de idols menos insano. (Reprodução: Crunchyroll)

Com “Love Live! Sunshine!!“, o segundo grupo da franquia a ser animado, tivemos um primeiro salto: Apesar de ainda se prender muito ao que foi feito no original, tanto em ambientação como em narrativa, o quadro geral foi apresentado de forma muito superior, e mostrava ao menos um pouquinho de personalidade em suas personagens.

A terceira entrada, “Love Live! Nijigasaki High School Idol Club“, foi o ponto onde eu legitimamente comecei a gostar da franquia. Ao mudar o foco da história, deixando o conceito de “grupo de idols” de lado, e lançando a ideia de “idols solo”, o animê deu muito mais espaço para que cada personagem crescesse como si mesma, ao invés de ser uma parte de um quebra-cabeça que só faz sentido ao ser completado.

E embora ainda não tenha tido tempo hábil (ou, sendo mais sincero, “coragem”) para assistir um episódio sequer, ouço excelentes coisas sobre “Love Live! Superstar!!“, o quarto grupo da franquia.

O problema disso tudo, porém, é que, mesmo com todos os avanços e melhorias que aconteceram ano após ano. Love Live nunca ousou. Por um lado, eu entendo: O ditado diz que “em time que está ganhando, não se mexe“. Por qual motivo eles deveriam ousar? Tentar fazer algo diferente? O “mais do mesmo” está rendendo dezenas de milhares de unidades monetárias para as empresas. Meu medo é simplesmente a estagnação. Falo apenas por mim (afinal, nunca falo por outrem, não tenho esse direito), mas depois de alguns anos, ver a mesma história se desenrolando mais ou menos da mesma forma, com as personagens mais ou menos parecidas, cantando músicas mais ou menos iguais… Cansa.

Foi por isso que, ao ouvir notícias de que “Yohane the Parhelion: Sunshine in the Mirror” iria acontecer, eu fiquei empolgado. Não tinha muitos detalhes ainda, mas ao que tudo indicava, seria um animê de fantasia, com as personagens de Sunshine!!, e que teria como protagonista a mais interessante delas. Eu estava animado! Essa era a chance que eles precisavam para explorar novos horizontes, para ousar e sair da zona de conforto.

Esse animê poderia ser qualquer coisa! Poderia ser um isekai; uma fantasia “pura”; um devaneio juvenil da mente da Yohane; uma fanfic online escrita por fãs…
O roteiro poderia ir para qualquer lugar! Poderia tratar de magia e mistérios; de ação e aventura; de receios da juventude e descobrimento interior; poderia até mesmo ser um simples suco de massavéio cheio de porradinha e música maneira…
Mas, após treze episódios, só o que eu posso dizer sobre a série é que ela decidiu… Não ser nenhuma dessas coisas. É decepcionante o tamanho do desperdício que o animê inteiro acabou sendo, pois toda a construção de mundo, os visuais e as caracterizações fantásticas das personagens já conhecidas são ótimos. Mas nada é feito com elas. Absolutamente nada.

Os primeiros episódios começam fortes, com uma crescente interessante do primeiro ao terceiro. Somos apresentados ao mundo e as garotas: Ambos são bem similares ao que já conhecemos, mas tem suas claras peculiaridades. Vemos o uso de um dos arcos mais interessantes da série original como um ponto pivotal desse spin-off, e tudo se conecta de forma fantasiosa, mas satisfatória. No episódio três, finalmente somos apresentados ao grande conflito: “A Calamidade”. Esse fenômeno é o mistério a ser resolvido, e ele apareceu com uma ótima sequência de ação. Até aqui, meu hype estava lá no alto.

Só que, depois disso, o animê desistiu. Ele levantou bandeira branca e balançou o lencinho da paz. Você imaginaria que, após conhecermos o conflito principal, nós iríamos… Eu sei lá, desenvolvê-lo? Explicá-lo? Buscar formas de resolvê-lo? Fazer literalmente qualquer coisa com ele?
Infelizmente, o que se segue são dois meses de episódios completamente aleatórios e desconexos, que lembram apenas vagamente que essa história se passa num mundo de fantasia e que existe uma calamidade se espalhando pela cidade de Numazu. O roteiro voltou a ser o de uma série “principal” de Love Live, com conflitos episódicos ou arcos extremamente curtos, que se desenvolvem superficialmente e se encerram com um clipe musical.

Captura de tela do episódio 13 de "Yohane the Parhelion: Sunshine in the Mirror", mostrando Yohane com uma pena branca nas mãos
Bandeira branca, pena branca… Quase a mesma coisa. O simbolismo é o mesmo. (Reprodução: Crunchyroll)

Quando decide finalmente voltar a fazer alguma coisa com o tema proposto, lá pelo episódio 11, já é tarde demais. A essa altura do campeonato, eu já não me importava com o que acontecia. E eles não tinham mais tempo para fazer com que eu me importasse. A Calamidade se alastra, temos um clímax emocional entre a protagonista Yohane e sua cachorra-falante Lailaps, e a junção de todas as garotas numa emocionante canção acaba salvando o dia e a cidade. Mas nada disso importou. Eles gastaram tanto tempo com o famoso “nada acontece feijoada”, que não conseguiram desenvolver esses pontos. Não houve impacto nas revelações pois elas não foram trabalhadas ou sequer comentadas por grande parte da duração do animê.

Talvez o problema seja o meu ponto de vista. Já comentei várias vezes sobre como expectativas altas podem diminuir o proveito de algo, assim como expectativas baixas podem aumentar a diversão de uma coisa mediana. Será que eu que esperei demais de um spin-off de fantasia de Love Live? Eu que estava errado por assistir os três primeiros episódios, ver magia, tokusatsu e música reunidas em uma cena de combate bem coreografada e esperar algo tão bom quanto Symphogear? Talvez. Será que se eu tivesse, desde o começo, mantido minhas esperanças baixas, e esperado pelo pior, por um simples animê corriqueiro de Love Live, mas com uma “skin” medieval, eu teria aproveitado mais? Provavelmente.
Mas isso é apenas especulação. E eu não deixo de estar decepcionado.

Ainda assim, eu acredito que existe mérito em o que foi feito em “Yohane the Parhelion: Sunshine in the Mirror“. Eles podem não ter utilizado nem 1% do potencial que tinham, mas o simples fato de que isso existe, que foi aprovado e produzido, que foi ao ar semanalmente por três meses, já é um avanço. Mostra que eles estão dispostos a tentar ousar. Mostra que eles têm coragem para fazer algo diferente. Talvez não muito, mas é um começo. Como disse no título, é um minúsculo passo, sim, mas é um passo na direção certa. Acredito que o futuro da franquia está um pouquinho mais garantido.

Captura de tela do episódio 12 de "Yohane the Parhelion: Sunshine in the Mirror", O spin-off de Love Live, mostrando Mari
Ironicamente, aprender com o passado para garantir um futuro melhor é uma das lições que o animê tenta passar. Meta-comentário, talvez? (Reprodução: Crunchyroll)

O animê pode ter falhado em entregar uma história de fantasia intrigante, mas teve uma qualidade técnica altíssima, com belos visuais, excelentes músicas e coreografias tão boas quanto se espera de uma franquia de idols. Não que isso compense o enorme desperdício de potencial.
Olhando de forma positiva pra situação, e dando créditos ao que foi feito, o redator dá 2,0/5,0 para esse spin-off de Love Live!, e torce para que o próximo tenha mais do que quatro episódios decentes.

Você pode assistir “Yohane the Parhelion: Sunshine in the Mirror” na plataforma de streaming Crunchyroll, completo em 13 episódios.

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Quadrinhos

Solidão e Homenagens estão presentes nas ruas de Cidade

No ano passado a editora Comix Zone, lançou aqui no Brasil, aquela que viria se tornar uma obra obrigatória em todas as listas de melhores leituras de 2022. Cidade, que tem roteiro de Ricardo Barreiro e artes de Juan Giménez, realmente faz por merecer todas as honrarias. O roteiro tem ação, drama, reflexão sobre a vida, sobre à solidão e ainda sobra espaço para homenagens ao cinema, literatura e aos quadrinhos.

A trama de Cidade começamos acompanhando o jovem escritor Jean, que vive em Paris e depois de mais uma briga com sua namorada, resolve voltar para a casa caminhando. Ele entra em uma área desconhecida do seu bairro e, como um passe de mágica (ou castigo), acaba entrando no mundo fantástico e apocalíptico conhecido como A Cidade. Então ele conhece a ex-garota de programa Karen e iniciam uma saga para tentar encontrar uma saída do lugar.

Ricardo Barreiro coloca no roteiro um conceito genial de que no final das contas uma cidade, é composta de pessoas solitárias. A dupla de protagonistas, eram pessoas solitárias que sofriam com alguma coisa, seja depressão, tédio, ou abuso, antes de irem para o mundo da Cidade. Assim como outras personagens que encontram no caminho, como por exemplo, uma das melhores histórias do volume, o maestro que vive com os ratos.

O maestro “caiu” na Cidade e então vive com a companhia de milhares de ratazanas. Que o protegem contra os perigos, mas o afasta de toda presença humana e possível vida em sociedade. O que torna sua vida como um Deus entre os bichos, mas um pária entre os humanos. E nesse círculo o torna solitário.

Se pararmos para pensar, nossas vidas urbanas são um tanto assim. Andamos pelas ruas das cidade onde moramos, muitas vezes encontramos um ou outro conhecido, mas na maioria das vezes é solitário e com a mente e cara fechada por causa dos diversos problemas e perigos urbanos. E no meio disso, enquanto estamos dentro de um onibus, ou metrô ou em aplicativos de transportes, pensamos ou sonhamos em coisas fantásticas.

Em uma outra história, Bairro Castelo, apresenta um sistema feudal perfeito, onde todos seguem ordens já determinadas, dentro do local. Mas existe uma peste que ronda e mata os habitantes a esmo. Mas mesmo sabendo que a morte anda pelas ruas do local, as pessoas não saem de lá. Pois preferem viver no perigo e eminencia mortal, do que se aventurar fora dos muros em uma vida nova e arriscada. Isso leva a mais uma reflexão sobre nossas vidas em que preferimos muitas vezes vivermos em nossas vidas monótonas do que investir em algo novo.

Em meio a reflexões sobre a vida, uma viagem fantástica que reúne um imaginário entre viagens no tempo, sociedades milicianas, enchentes, monstros marinhos mitológicos, plantas carnívoras, críticas ao capitalismo (a história do mercado é incrível!), canibalismo e até um culto ao Cthulhu. E Maravilhosamente, tudo encaixa e o que pode parecer fantástico, faz total sentido no roteiro do Ricardo Barreiro.

A arte de Juan Giménez é sempre um espetáculo à parte. Cenários (principalmente os mais abertos) são deleites visuais, e dar ao leitor a visão e sensação da imensidão em que Jean e Karen estão enfiados. Muitas vezes, graças a mistura do roteiro e da arte, temos a perspectiva de estarmos dentro da Cidade, perdidos juntamente com eles.

Cidade é um prato cheio para quem gosta de um bom quadrinho, com grandes referências, reflexões sobre a vida e nós mesmos. E o final, por mais apoteótico e incrível que seja, é uma grande homenagem aos quadrinhos, principalmente aos argentinos. E por mais que estranho que possa aparecer, ele apresenta que talvez possa existir um lugar, ou jeito, de vivermos em uma sociedade sem as mazelas e ódio do mundo. E ele faz todo sentido.

Cidade tem formato 21 x 28.5 cm, 192 páginas e tradução da Jana Bianchi.

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“Bocchi The Rock!”: Amor, amizade e tecnicidades

Toda obra, seja qual for o tipo de mídia, funciona em duas partes: Ela é a junção de o que o autor ou autores criaram e entregaram, com a visão e perspectivas daqueles que a consomem. Cem pessoas terão cem experiências diferentes ao assistir um mesmo show, e parte da beleza da arte está justamente nisso.

Isso não quer dizer, porém, que a experiência não é moldada a partir do material. O papel dos criadores é tão importante quanto o de quem recebe, pois são eles que geram a moldura que será pintada por cada um. E molduras diferentes geram quadros diferentes.

Dessa forma, obras que são emolduradas com amor e entusiasmo estão fadadas a gerar reações positivas e incrivelmente animadoras por parte de seu público. “Bocchi The Rock!”, o animê dessa postagem, é um desses casos: Um show que transborda amor por parte de seus criadores e envolvidos, onde talentos e sonhos se transformam em personalidade e profundidade, sem perder o valor superficial.

São várias palavras para fazer uma introdução que diz “Minha nossa que animê bem produzido“.

Baseado num mangá 4-koma de mesmo nome, escrito por Aki Hamaji e publicado no Japão na famosa revista Time Kirara (mas ainda inédito no Brasil), “Bocchi The Rock!” é um animê recém-terminado com doze episódios. A série foi animada pelo estúdio CloverWorks, com produção de Shouta Umehara e direção de Keiichirou Saitou (guarde esses nomes pois vou citá-los mais tarde).

Segue o trailer, fornecido pela Crunchyroll, que tem os direitos de exibição da obra no Brasil:

“Bocchi The Rock!” é sobre a Bocchi, e sobre Rock’n’Roll. Claro, é o que o nome indica. Mas é muito mais que isso. Já que a Crunchyroll simplesmente não tem uma sinopse pro animê (não me pergunte o motivo, eu também não sei), deixa eu explicar com minhas próprias palavras: A protagonista, Hitori Gotou (Apelido: “Bocchi”), é uma adolescente com problemas sérios de ansiedade, que começa a tocar guitarra na – – esperança de se tornar popular. Por conta de uma série de coincidências, ela acaba entrando para uma banda e, como o narrador da sessão da tarde diria, se mete em altas confusões.

Mais do que apenas uma comédia descompromissada, o animê se esforça para passar uma mensagem: A “jornada” é tão valiosa quanto o destino, e o verdadeiro prêmio são os amigos que fizemos pelo caminho.

Piadas de lado, a amizade entre todo o elenco é o foco de uma história que usa as dificuldades sociais da protagonista como ferramenta para aproximar e expandir um genuíno afeto entre todos os envolvidos. Não só as garotas da banda, como a família da Bocchi, as funcionárias e o público da casa de shows, e até a bêbada que ela encontra na rua. Todo mundo se esforça para tentar tirá-la dessa “casca” introvertida, mas respeitando o seu ritmo.

Em vários momentos, a história poderia tomar atalhos ou tentar resolver as coisas do “jeito fácil“, mas o show faz questão de ir além e demonstrar que os sentimentos da Bocchi são importantes para os outros. Sem entrar em detalhes para não dar spoilers, mas um exemplo perfeito disso acontece quando uma personagem faz uma escolha na melhor das intenções, mas que acaba sendo um passo grande demais para a Bocchi dar de uma vez só. Ao invés de passar pano e descartar a piada como apenas uma piada, eles fazem a piada (é claro que fazem, ainda é uma comédia!), mas seguem com uma cena tocante de desculpas, onde a direção e a dublagem nos mostram o sentimento de culpa e a vontade de se redimir da personagem.

Ao mesmo tempo, a história vai nos mostrando como a existência da Bocchi, com todas as suas peculiaridades e excentricidades, também transforma para melhor as outras garotas da banda. A mensagem de que a amizade é uma troca de favores constante, sobre dar e receber, mesmo que você não perceba. A Bocchi não percebe que está ajudando suas amigas, mas o animê demonstra a mudança que ela causa. Todo mundo se esforça para melhorar, tanto para si próprio, como para ajudar a melhorar os outros, e esse ciclo autossuficiente de positividade e amizade é, na minha opinião, a parte mais bonita da história.

Captura de tela do episódio 8 de "Bocchi The Rock!" (Reprodução: Crunchyroll)
Minha parte favorita de “Bocchi The Rock!” é quando a Bocchi The Rock diz “Bocchi The Rock!” e rocka em cima de todo mundo (Reprodução: Crunchyroll)

Falando em coisas bonitas, a parte técnica do animê é uma beleza a ser comentada. Não digo necessariamente beleza visual, com cenários bonitos ou coisas do tipo. Embora não seja feio (longe disso, aliás), o espetáculo não é o ponto principal.

Você pode trabalhar o humor de diversas formas. Cada “gênero” de humor conta com ferramentas linguísticas, visuais, narrativas, etc, para gerar o efeito cômico que deseja. Saber aplicar o seu repertório técnico da forma certa, no momento certo, é um dos maiores segredos para uma comédia dar certo.

O que “Bocchi The Rock!” faz, outra vez, é ir além. Sendo um mangá 4-koma, ele já possui uma estrutura com um timing pré-estabelecido, onde cada piada tem seu tempo e sua cadência, como ditado pelos quatro painéis. A produção e direção do animê poderia ter ficado apenas nisso, mas decidiram expandir as possibilidades, trazendo diversos recursos visuais bem “fora da caixa” para ilustrar suas piadas.

Produtor Shouta Umehara e diretor Keiichirou Saitou, assim como o resto da equipe de produção, fazem escolhas ousadas e até mesmo absurdas, tudo em nome da comédia. Mudanças de estilo artístico; de mídia física; quebras de quarta parede e de paradigma… Se você acompanhou a internet nos últimos meses, deve ter visto ao menos uma cena bizarra envolvendo miniaturas de biscuit, pedaços de cartolina, ou bonecas de pano ou argila, apenas citando alguns. Esse tipo de humor descarado, extremamente “na sua cara“, faz com que a mensagem superficial do animê seja muito facilmente transmitida, para todos aqueles que não tem interesse em se aprofundar mais do que gostariam.

Captura de tela do episódio 10 de "Bocchi The Rock!" (Reprodução: Crunchyroll)
Eles vão jogar o humor na sua cara até que a sua cara fique assim (Reprodução: Crunchyroll)

E não são apenas insanidades artísticas que se destacam dentre as tecnicidades do show. A grande quantidade de músicas criadas e tocadas, todas com um nível ridiculamente alto de qualidade, são pontos óbvios a se comentar, mas o que eu gostaria de destacar é a cinematografia: A quantidade de cenas onde se vê a qualidade da direção é absurda. Os ângulos da câmera; o distanciamento; o foco; as sombras; o uso do cenário e de linguagem corporal. Tudo é usado com maestria como elementos de narrativa. Fazer o exercício de comparar como a Bocchi aparece durante uma apresentação, em relação a outras personagens, te mostra facilmente como uma boa direção ajuda a contar uma história, a dar personalidade e profundidade para uma cena.

A junção das duas coisas, amizade e tecnicidade, é que nos leva ao terceiro ponto: O amor. Dentro da obra, fica claro que as personagens criam um elo tão forte entre si pois elas amam umas às outras, e acima de tudo, amam a música e amam fazer música. O amor pela música é o que uniu essas quatro garotas tão diferentes, assim como todo o elenco de apoio, que em maior ou menor escala, se conheceu por causa dela.

Olhando por fora, também fica claro o amor da produção pela obra, com todas as indicações que demonstram que eles amam o que estão fazendo. Toda a dedicação de “ir além” e criar uma adaptação que supera os limites do material original e faz o animê crescer como uma entidade própria é só a ponta do iceberg. O que não vemos são os pequenos detalhes: Como as personagens são nomeadas em homenagem aos membros da banda Asian Kung-fu Generation, cuja autora do mangá é super fã; como a direção do animê aproveitou esse detalhe para nomear todos os episódios em referência a músicas deles; como eles se dedicaram para criar um ambiente que reflita a Shinjuku e Shimokitazawa (e outros lugares que elas visitam, como Enoshima) do momento atual, recriando cenários baseados no local real, quase que como um documentário urbano; como fizeram uma mini-série com a dubladora da Bocchi, ensinando-a a tocar guitarra, e que foi usado como referência para o próprio anime; como fizeram vários covers das músicas do show e disponibilizaram no YouTube logo após os episódios, junto com versões de estúdio e com letra… Bem, acho que deu para entender, né?

Captura de tela do episódio 12 de "Bocchi The Rock!" (Reprodução: Crunchyroll)
São os pequenos detalhes, que você pode não perceber conscientemente, que fazem cada cena se destacar (Reprodução: Crunchyroll)

Para encerrar, uma paráfrase de uma passagem do próprio animê: “Bocchi The Rock!” é específico, e certamente não é para todo mundo. Mas, para aqueles com quem a obra ressoa, é uma garantia de sucesso, onde você sente a paixão transbordando por todos os lados. Com amor, amizade e tecnicidade, o “show” é realmente um “Show” que te fará rir, chorar e se emocionar, se assim você quiser. Depois disso tudo, acho que fica fácil adivinhar que a nota do redator é 5/5, e que você pode esperar esse nome no topo da lista de melhores do ano (que deve sair em breve).

“Bocchi The Rock!” está disponível na plataforma de streaming Crunchyroll, completo em 12 episódios e legendado em português.

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A amarga doçura de “Lycoris Recoil”

Um dos principais fatores para o sucesso de um animê é o seu alcance. Afinal, se ninguém estiver assistindo, não há como vender nada. Por conta disso, vemos a grande maioria dos títulos sendo animados trimestralmente sendo, na verdade, adaptações de obras já conhecidas: Mangás; Light Novels; Videogames; Webtoons; etc. Com uma base de fãs já estabelecida, você garante um mínimo de engajamento antes mesmo dos materiais de marketing e divulgação, com a propagação natural que o “hype” gera. Justamente por isso, é raro quando um animê completamente original vira um sucesso tão absoluto quanto foi “Lycoris Recoil“.

Animado pelo estúdio A-1 Pictures, com roteiro de Asaura (Mesmo responsável por “Ben-To”) e dirigido pelo novato no cargo Shingo Adachi, Lycoris Recoil é um animê original de treze episódios, recém-finalizado nessa temporada de verão. A sinopse e o trailer, conforme concedidos pela Crunchyroll, seguem:

Se há paz no mundo, é graças à Lycoris, uma organização secreta de combate ao crime composta apenas por garotas. Suas agentes mais poderosas são a despreocupada Chisato e a talentosa e misteriosa Takina. Juntas, elas trabalham em um café, servindo bebidas e doces, cuidando de bebês, fazendo compras e ensinando japonês. Confira a vida caótica desta dupla improvável!

Ignorando a sinopse e trailer de sessão da tarde, o principal desafio para uma obra original é, então, tentar chamar atenção. Publicidade profissional faz seu trabalho mas tem também seu limite, e o boca-a-boca do público se torna uma ferramenta importante. Se o seu anime for bom, divertido e bonito, atingir a “massa crítica” necessária para fazer sucesso é possível, e os pontos negativos de não ter um conhecimento prévio se tornam positivos: Ao ter nas mãos um projeto estável e que pode se tornar o que a direção quiser, mantendo o elemento surpresa.

Afinal, você deixaria passar a recomendação pessoal de Hideo Kojima?

Um ponto interessante de termos fisgado o Kojimão nessa história, totalmente por acaso, é o fato de que Metal Gear Solid, a franquia mais famosa do diretor de jogos, tem um “problema” similar ao que encontramos em Lycoris Recoil: Interpretação.

Ao assistir Lycoris Recoil, uma pessoa pode facilmente chegar a conclusão de que o animê trata de uma distopia caótica de um capitalismo-tardio onde humanos são tratados (ainda mais) como peças descartáveis de sacrifício para os poderosos manterem sua posição de poder em troca de uma efêmera ilusão de paz utópica. Ou, interpretar o animê como uma paródia de “Duro de Matar”. A diferença, ao compararmos com Metal Gear, é que em Lycoris Recoil, ambas as interpretações não apenas são corretas, como te dão uma experiência absurdamente positiva e incrível.

Se você quiser encarar a obra como algo simples, terá a narrativa de um filme de ação estadunidense, incluindo lutas iradas e coreografadas com armas de fogo e artes marciais, e um grande foco no aspecto “familiar”, que sempre acontece nesse gênero. Agora, se preferir fazer uma análise mais profunda, vai encontrar uma história emocionante focada em um pequeno grupo vivendo em um mundo insano, e as dificuldades de conciliar o dia-a-dia mundano com a distopia secreta.

Tirinha contendo cena do episódio 8 de "Lycoris Recoil"
LycoReco é tão paródia de Duro de Matar que eles até mesmo citam o filme na cara dura

Acredito que, independente da sua leitura do show, o ponto mais forte de Lycoris Recoil é o seu elenco. Cada uma das personagens é cheia de carisma e personalidade, com tempo de tela o suficiente para entendermos o que elas são e ver o seu crescimento ao longo dos episódios. As duas protagonistas, é claro, são o destaque, com a Chisato e a Takina conseguindo entrar na minha lista de personagens prediletas em questão de minutos. Mas também vale apontar para o excelente trabalho feito para o principal vilão, Majima; e para o “Professor” Mika.

Em um mundo pós-Universo Cinematográfico da Marvel, eu acredito que as pessoas estão, de um modo geral, um pouco mais abertas a inconsistências de roteiro, buracos de narrativa e perguntas deixadas sem resposta. Desde que a obra seja divertida e entregue um entretenimento consistente e de qualidade, não há problema em não ser escrita e calibrada nos mínimos detalhes. Algumas coisas na história fizeram com que eu levantasse uma sobrancelha, questionando a situação ou continuidade, mas são detalhes tão irrelevantes que acabam nem pesando na hora de avaliar o conjunto da obra.

Inclusive, alguns desses questionamentos servem até para melhorar a ambientação: Já comentei antes sobre como “o mistério como ferramenta para a estética do desconhecido” é um conceito legal, mas que precisa ser usado com moderação, para não transformar “questões em aberto” em “história sem pé nem cabeça“. Em Lycoris Recoil, nós conhecemos o suficiente para entender tudo que está acontecendo, mas temos perguntas o bastante para fazer com que tudo soe maneiro e plausível.

Tirinha com uma cena do episódio 2 de "Lycoris Recoil"
Eles podem ter tirado um sarro do esteriótipo de “Hacker de filme de ação”, mas… Bem, acabaram em um outro esteriótipo

Acredito que se você colocasse um fã do MCU, que nunca assistiu um animê na vida, na frente de uma tela para assistir Lycoris Recoil, ele iria muito provavelmente gostar e se divertir com a obra. O fato de ser uma história completa e fechada – coisa rara entre animês – ajuda nesse quesito.

Seja perseguições de carro com explosões ou críticas sociais, “Lycoris Recoil” é o mais próximo que chegaremos de uma versão em animê de “Duro de Matar”, e um dos poucos casos onde um animê original não só se saiu bem dentro do nicho, como também pode ser facilmente recomendado para pessoas de fora dele. O redator ama filmes de ação, então 5,0/5,0 é a única nota aceitável para o show que é forte candidato para ser um dos melhores do ano.

“Lycoris Recoil” está disponível na plataforma de streaming Crunchyroll, completo em 13 episódios, com opções de áudio em japonês (com legendas em português) e dublagem brasileira.

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As indiscrições juvenis de “My Stepmom’s Daughter is my ex”

O ditado diz algo sobre “não julgar o livro pela capa“, mas convenhamos… Certas coisas tem uma capa que faz com que seja muito difícil não julgá-la. Eu entendo, já estive nessa posição, e acho que todo mundo pode ser acusado disso, ao menos um pouco. Especialmente quando se é fã de animês e light novels.

Com um nome tão esdrúxulo como “My Stepmom’s Daughter is my Ex” (traduzido para algo como “a filha da minha madrasta é a minha ex-namorada“), e com o histórico que “animês adaptações de Light Novels com nomes longos e estranhamente específicos” tem, fica complicado não ter ao menos uma pulga atrás da orelha.

O destino nos dá algumas gratas surpresas, de vez em quando, e a baixa expectativa serve de combustível para o divertimento. É o caso de “My Stepmom’s Daughter is my Ex”, que eu vou chamar apenas de “Tsurekano” daqui pra frente, uma abreviação do seu nome em japonês, “Mamahaha no Tsurego ga Motokano datta“.

Fui impressionado logo de cara, quando o show teve a coragem (ou, talvez, a audácia) de simplesmente se recusar a explicar sua premissa e partir para a ação logo de cara. Bem, quando se tem um nome tão descritivo quanto o de Tsurekano, um diretor deve se sentir confortável o bastante para assumir que o público entende os conceitos básicos do universo da obra e que não precisamos perder tempo com bobagem. Sendo assim, não vou nem me dar ao trabalho de postar a sinopse. Veja o trailer, se julgar necessário.

Quando saímos da superfície, paramos de encher o saco e brincar com a premissa e deixamos de zoar o título, o que encontramos é uma comédia-romântica surpreendentemente gentil, mas agridoce. Uma inocência infantil, com atitudes e pensamentos adolescentes, mas ligados por um amor maduro. Os protagonistas são dois bobos (e eu devo destacar, bastante bobos) perdidamente apaixonados, mas que se depararam com uma situação que os impede de se reaproximar por fatores externos. É quase um Romeu e Julieta moderno, só que muito, muito mais “excêntrico“.

Embora eu tenha chamado o animê de comédia-romântica não tem nem um parágrafo, o maior charme de Tsurekano, pra mim, foi a sua parte “dramática”. Com uma narração interessante, que picotou o passado dos dois em pequenos blocos, vamos entendendo aos poucos o que aconteceu para chegarmos até onde chegamos, e recebemos informações elucidativas nos momentos certos. Não é nenhum mistério multidimensional e extremamente complexo que apenas fãs de Ricky & Morty com alto QI conseguem desvendar. Inclusive, diria que é o oposto: É algo bem simples de entender. Mas o que torna a história tão intrigante de se acompanhar não é entender o que aconteceu, mas sim, descobrir como aconteceu.

É um conto tão antigo quanto andar pra frente: Um primeiro amor, um relacionamento que tem alicerces instáveis pela simples falta de experiência. O problema não é falta de carinho, mas falta de comunicação. Como eles poderiam conversar? Eles nem sabem que precisam! E mesmo que soubessem, não saberiam o como, o quando ou o por que. E isso não é um spoiler, pois como comentei, essa é a parte fácil de sacar, e está toda no passado. A gratificação está no presente, de ver o que mudou (e se mudou) entre eles, e como eles lidam com as mudanças que lhe foram impostas.

Captura de tela do episódio 1 de Tsurekano, mostrando Irido e Mizuto, com a legenda "Se eu não era assim antes, então certamente é sua culpa que sou agora."
Levar spoiler de coisas que você se importa é um dos principais motivos para virar o The Joker ™ nos dias de hoje (Reprodução: Crunchyroll)

Afinal, é, eu nem toquei no ponto que dá nome a série ainda, né? Eles se tornam irmãos adotivos. E, embora isso possa parecer mais uma desculpa fetichista do que qualquer coisa (e não nego que talvez seja, um pouco), é a parte mais importante para o desenvolvimento e crescimento do Mizuto (o garoto) e da Yume (a garota) na história: Apesar de ainda se amarem, eles também amam seus respectivos pais, que acabaram de se casar. É uma decisão de botar a felicidade dos adultos como prioridade à deles próprios, fingir e esconder o (ex-)relacionamento entre os dois para proteger a nova vida que os pais conseguiram após anos como viúvos. Equilibrar esses desejos é a corda-bamba que dá grande profundidade para o drama do animê.

Mas isso, talvez, seja olhando fundo demais pra Tsurekano. A superfície ainda existe e ainda é uma parte relevante do show. O aspecto “corriqueiro” da história ainda é um pouco capenga, que consegue divertir e tirar um riso aqui ou ali, mas ainda se apoia demais em estereótipos muito exagerados, piadas um pouco ríspidas e, como sempre, a insistência em falar de peitos.

O ponto mais fraco do animê é, de longe, o seu elenco secundário. As personagens que estão lá para serem “os amigos dos protagonistas” são insuportáveis e foram os responsáveis pela pior parte da temporada. A garota psicótica, Akatsuki, não só é uma pessoa ruim, como corrompe tudo ao seu redor. O arco onde ela tenta dar conselhos para a outra personagem secundária, Higashira, foi horrível por dar um grande foco para Akatsuki, e por tornar uma personagem até então bem interessante em uma piada desconexa e sem graça. Talvez sirva de consolo pensar que ela existe na narrativa como um exemplo do que a Yume poderia se tornar, caso não se desenvolvesse. Cruzes…

Captura de tela do episódio 7 de Tsurekano, mostrando Akatsuki, com a legenda "Estou falando desses poderosos melões que você tem aqui!"
Tá aí, mostrei todos os problemas de Tsurekano em uma print só. Se você aguentar isso aqui, o resto é tranquilo (Reprodução: Crunchyroll)

Confesso que só comecei a assistir por conta do elenco de voz, que conta com dois dos meus dubladores prediletos como protagonistas (Rina Hidaka como Yume, e Hiro Shimono como Mizuto), e estava totalmente preparado para um animê caótico e que fosse o equivalente a acompanhar um prédio em chamas ruíndo sob seu próprio peso, mas… Acabei curtindo a direção inteligente, o drama surpreendente por ser pé no chão mesmo com uma premissa absurda, as propagandas descaradas de outras light novels da Editora Kadokawa, as músicas dançantes e toda a parte técnica, que não é nenhuma oitava maravilha do mundo, mas que é consistente e dentro da faixa do aceitável, coisa que não acontece com frequência.

Uma pesquisa rápida te mostra que a adaptação da light novel não foi muito fiel, com um roteiro acelerado e várias cenas e pedaços cortados para caber quatro volumes em doze episódios. Mas pra quem já é macaco velho nessa área, isso não é surpresa. Animês adaptações de LNs tem como objetivo principal atrair pessoas para comprar o livro, e a qualidade do produto é um ponto secundário. O problema é quando a qualidade fica tão em segundo plano, que você acaba afastando as pessoas ao invés de atraí-las, como já aconteceu antes. Ainda assim, Tsurekano conseguiu ser interessante o suficiente como animê para cumprir seu papel de me interessar pela novel. Ela é inédita no Brasil, mas é publicada em inglês pela J-Novel Club. Certamente adicionarei a minha interminável lista de livros para ler.

Captura de tela do episódio 1 de Tsurekano, mostrando Mizuto
Eu despreocupadamente lendo minhas light novels com todos os livros na minha pilha de leitura ao meu redor, me julgando (Reprodução: Crunchyroll)

Acredito que há formas melhores de usar o seu tempo, mas “My Stepmom’s Daughter is my Ex” é divertido o bastante e específico o bastante para eu acreditar que é o animê certo para alguém por aí. O meio da temporada é um pouco complicado, mas o começo e o fim compensam esses dois ou três episódios ruins, e 3,5/5,0 parece uma nota justa para uma excelente propaganda de doze episódios.

E mais uma vez, comprovamos que uma expectativa baixa é a melhor coisa que um animê pode ter a seu favor.

“My Stepmom’s Daughter is my Ex”, ou “Tsurekano”, está disponível na plataforma de streaming Crunchyroll, completo em doze episódios, com legendas em português.

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Shikimori não é “apenas” um Slice of Life

Hoje, eu acordei mais cedo do que costumo acordar. Levantei, tomei banho, e comi cereal (colocando o cereal primeiro, e depois o leite, é claro, pois não sou maluco) enquanto assistia ao Jornal na televisão. Não foi uma manhã super animada, mas foi a minha manhã. Momentos do dia-a-dia podem não parecer especiais, justamente por fazerem parte do cotidiano: Tudo que vira mundano, perde a magia. Mas em certas circunstâncias, o mundano tem seu valor como uma lembrança; um desejo; um refúgio; ou simplesmente, uma esperança.

Toda essa introdução em tom poético para justificar o fato de que eu gosto de animês Slice of Life, mesmo sendo um gênero “chato” e que não agrada muita gente. Tudo bem, eu entendo, realmente é um grande “nada acontece, feijoada“. Mas não estou aqui para te convencer a assistir um show Slice of Life, pois isso não daria certo. Estou aqui para, caso você já goste do gênero, te indicar um excelente exemplar que acabou de acabar.

Baseado em um mangá de mesmo nome e com autoria de Keigo Maki, “Shikimori’s Not Just a Cutie” foi recém-adaptado para animê pelo estúdio Doga Kobo. O animê está disponível na Crunchyroll, enquanto o mangá é inédito no Brasil.

Se você chegou até aqui, eu não tenho mais motivos para enrolar, então vamos direto ao ponto: Não espere nada de extraordinário. A maior reviravolta que você vai encontrar nesse animê é descobrir que a Crunchyroll disponibilizou dois especiais com os dubladores japoneses comentando sobre os episódios. A “trama” simplesmente acompanha um grupo de adolescentes vivendo sua vida escolar, se divertindo e criando memórias juntos.

Apesar de ser “mais do mesmo” nesse quesito, “Shikimori” se destaca em outros, três em especial que eu gostaria de comentar, e que, na minha opinião, já valem completamente a recomendação: A situação romântica dos protagonistas; a qualidade do elenco de apoio; e o visual.

Em comédias-românticas escolares, a norma é uma relação complicada entre as personagens. Desentendimentos, confusões e muitos sentimentos reprimidos funcionam como base para o humor, e fazem com que o clímax da história seja o momento em que um casal se solidifica. Inclusive, acabei de escrever sobre um show que é exatamente assim, e faz isso muito bem: Kaguya-sama.

É claro, normas existem por um motivo. Nada se torna “a norma” se não for bom o suficiente para isso. Mas, de vez em quando, sair da norma é algo interessante de se fazer, seja pela experiência ou pela curiosidade. Em “Shikimori“, a história já começa com o casal em “pleno” relacionamento, e essa diferença já basta para gerar um tipo diferente de trama. Temos menos desencontros e mais momentos de afeto genuíno, do tipo que só existe quando se sai da norma.

Captura de tela do episódio 2 de "Shikimori's not just a cutie", mostrando Shikimori e Izumi
Imagens para postar com a legenda “eu e quem?” (Reprodução: Crunchyroll)

Entrando no segundo ponto, preciso comentar sobre o quão bons são os amigos e personagens secundários presentes na série. Isso já contrasta com o parágrafo anterior, pois “coadjuvantes excepcionais” é algo extremamente comum no mundo dos Slice of Life, e “Shikimori” não poderia ficar pra trás.

Eu poderia ficar o dia inteiro aqui falando sobre cada uma das personagens individualmente, mas vou poupar o meu tempo e o seu: Com um episódio dedicado a entender e aprofundar na vida de cada um deles, os colegas da Shikimori se tornam muito mais que apenas estereótipos ou ferramentas de roteiro, mas pessoas com motivações, sonhos e coisas acontecendo na vida, mesmo que fora da tela. Até mesmo terciários que aparecem uma única vez para uma única piada acabam sendo trabalhados e se tornando icônicos.

Captura de tela do episódio 9 de "Shikimori's not just a cutie", mostrando Hachimitsu vestida de detetive
As – esporádicas – quebras de quarta-parede da Hachimitsu foram uma das minhas partes prediletas do show, e nem precisa ser Sheroque Rolmes pra descobrir. (Reprodução: Crunchyroll)

Por fim, o terceiro ponto é possivelmente o mais marcante: Os visuais. Isso é algo que qualquer um consegue notar imediatamente ao começar a assistir o animê. Até pelo trailer (acima, caso não tenha visto ainda) você já tem total noção da ideia que permeia a fundação desse show.

Antes de ser um mangá, “Shikimori” começou com um web-comic, publicado no Twitter do autor. No mundo de 280 caracteres, as linhas do tempo voam, e um tweet que não chama atenção é facilmente perdido num oceano de piadas, discussões duvidosas, pornografia e notícias de desgraça. Por conta disso, quadros marcantes são essenciais. E obviamente que, ao ser transformado em animê, esse aspecto também viria para a mídia animada.

Acima de tudo, “Shikimori” é um espetáculo visual. A história é uma mera desculpa para gerar cenas cinematicamente impressionantes, com quadros belíssimos da protagonista que dá nome ao animê. A quantidade de vezes que eu pausei um episódio para apreciar a beleza do desenho é muito maior do que eu gostaria de admitir. Felizmente, essa beleza estética se estende aos demais níveis técnicos do show: Os cenários são tão bonitos quanto as personagens; a música, efeitos sonoros e vozes são charmosas e combinam com a situação; e a direção das cenas permite tirar o melhor de cada acontecimento.

Captura de tela do episódio 12 de "Shikimori's not just a cutie", mostrando um cenário noturno
Eu sou um cara simples, eu vejo luzes refletidas num corpo d’água, eu já acho lindo. (Reprodução: Crunchyroll)

Nem tudo são flores, porém, e o show possui seus defeitos. O maior e mais gritante deles, na minha opinião, é a ideia e o uso da sua “sinopse”: O protagonista, Izumi, é super-azarado, sempre sofrendo com todo tipo de desgraça aleatória; enquanto a protagonista, Shikimori, é super-habilidosa e consegue zelar pela segurança do namorado.

O conceito em si não é ruim, e funciona como mote substituto para o humor, no lugar dos clássicos desentendimentos românticos. Mas o uso dele é um pouco… como posso dizer… “Exagerado“, em especial nos primeiros episódios da temporada. Exagero é um dos pilares da comédia, mas quando se exagera no exagero, podemos chegar num ponto em que a coisa já perde a graça. Ao menos para mim, não chegou a ser algo que me fez torcer o nariz, mas ficou claro que conforme nos afastamos dessa insistência em bater na mesma tecla, e começamos a explorar novos horizontes, a obra ficou muito mais divertida e gostosa de acompanhar.

A segunda metade, em especial, conseguiu encontrar um equilíbrio perfeito onde ainda se apoiava na sua premissa, mas sem passar dos limites. O “azar” do Izumi e as capacidades quase sobre-humanas da Shikimori, quando combinadas com a qualidade do elenco de apoio, criaram o ápice que todo Slice of Life deseja: Situações de alta-tensão, mas de baixíssimo risco. Olhando de fora, minha afirmação lá do começo do texto se mantém: Realmente não há reviravoltas ou coisas extraordinárias. Mas tudo se organiza de forma a te fazer ficar empolgado com os mais simples dos acontecimentos, onde uma ligação telefônica faz seu coração saltar, ou uma simples jogatina te faz ficar na ponta da cadeira.

Captura de tela do episódio 10 de "Shikimori's not just a cutie", mostrando os cinco personagens principais
Se você é a Hachimitsu ou a Nekozaki enquanto assiste, depende de o quanto você gosta de feijoada. (Reprodução: Crunchyroll)

Sendo assim, “Shikimori’s not Just a Cutie” é um animê de nicho, mas que certamente agradará aqueles que buscam exatamente o que ele oferece. E para os que não buscam, ainda vale uma tentativa, nem que seja apenas como turista visual. Na opinião do redator, o show vale um 4,0/5,0 para quem está interessado em uma comédia-romântica pé no chão e mais focada no Slice of Life.

O animê está disponível na plataforma de streaming Crunchyroll, completo em 12 episódios. Também há opção de áudio dublado em português.

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“Kaguya-sama” e seus mistérios ultra-românticos

Algumas coisas são difíceis de se definir. São conceitos complexos que, se perguntado para cem pessoas, teremos cem respostas diferentes. O caso fica ainda pior quando tratamos de entretenimento, pois além de “diversão” ser subjetivo, nerd costuma ser muito chato com isso.

Pra hoje, a discussão é sobre o termo “clássico“. O que transforma uma obra em um clássico? O que é necessário para tal? A definição de dicionário diz apenas que é algo “exemplar” em seu gênero e que venceu o teste do tempo. E eu acredito que nisso, todos podemos concordar. Já os detalhes, fica para cada um preencher do seu jeito, e ajustar conforme sua própria necessidade.

Mudando totalmente de assunto, “Kaguya-sama: Love is War” é um mangá de autoria de Aka Akasaka, ainda em publicação com 26 volumes no Japão. No Brasil, ele é publicado pela Editora Panini desde fevereiro de 2021. A obra foi adaptada em animê no estúdio A-1 Pictures, e conta com três temporadas, sendo a última, “Kaguya-sama: Love is War – Ultra Romantic“, recém-terminada no final de junho.
E é sobre a animação que nós vamos falar. Especialmente da sua interação mais recente, mas não exclusivamente dela.

Comédias-românticas são um conceito que muitos conhecem, então basta dizer que “Kaguya-sama” é um animê desse gênero que a figura já irá começar a tomar forma.
O que a sinopse e a primeira temporada da série nos apresentam é uma genial representação de gênios: O fato de que todo mundo tem um ponto fraco, por mais que se tente escondê-lo. E que para os dois gênios que protagonizam essa obra, Kaguya Shinomiya e Miyuki Shirogane, os seus pontos fracos são exatamente o mesmo: Serem genialmente idiotas.

Toda a história de “jogos mentais” entre os dois, num incansável e genuinamente hilário Xadrez 5-D foi o que me prendeu e me fisgou. Era uma proposta diferente dentro do escopo de comédias-românticas, e que foi executada à perfeição, por dar destaque justamente ao que lhe tornava tão única: As tentativas fúteis e estúpidas de tentar prever a previsão do adversário, sempre com um “vencedor” ou “perdedor” sendo declarado ao final do combate.

Captura de tela do episódio 1 da primeira temporada de "Kaguya-sama: Love is War", mostrando Kaguya e Shirogane
Tudo contado pela icônica voz do “Narrador”, que sempre acaba sendo o personagem predileto de todos (Reprodução: Crunchyroll)

Com a segunda temporada, vieram novas personagens, novas dinâmicas e um novo tipo de roteiro. As batalhas foram ficando cada vez mais de lado, abrindo espaço para histórias focadas no desenvolvimento e crescimento das personagens já conhecidas, e expandindo o mundo da Academia Shuchiin muito além da sala do conselho estudantil.

E num clássico movimento feito para agradar gregos e troianos, a terceira temporada juntou os dois lados da moeda em um único pacote. Graças aos esforços do roteiro, da direção e do elenco como um todo, a junção acabou funcionando, e trazendo o melhor aspecto de cada uma das temporadas anteriores para essa última.
E vocês se surpreenderiam com quantas outras obras tentam fazer isso e fracassam miseravelmente.

Claro, a mudança um pouco súbita da primeira pra segunda temporada é um ponto complicado (não necessariamente ruim) da obra, mas que fãs de comédias-românticas sabem que sempre chega. O temido (ou amado) momento onde a história se torna dramática é um assunto que eu já comentei em detalhes antes, mas que em resumo, só é um problema se você não souber que ele existirá, e uma simples mudança de expectativas já resolve.

Particularmente, eu sou um cara que curte mais a comédia, e que sofre quando o drama começa a aparecer. Por conta disso, vejo a segunda temporada de “Kaguya-sama” como o ponto mais fraco da série. Mas isso diz muito sobre a qualidade geral da obra, pois mesmo em sua pior fase, ela ainda se mostrou sendo um dos melhores animês do ano em que saiu.

Captura de tela do episódio 9 da segunda temporada de "Kaguya-sama: Love is War", mostrando Ishigami
Como dizia meu professor de teatro, “A verdadeira comédia é a desgraça alheia”. Então sei lá né, até um draminha pode ser engraçado de vez em quando (Reprodução: Crunchyroll)

E já que estou aproveitando esse pedaço da postagem para fazer auto-promoção descarada (todas com motivos nobres, juro!), aqui vai outra: O problema de se prolongar demais.
Com o último episódio de “Ultra Romantic“, a minha principal pergunta foi: “Espera aí… O mangá de ‘Kaguya-sama’ ainda está em publicação, não está? Eles acabaram de anunciar uma continuação animada, não foi? Mas por QUÊ?

[spoiler]

Para uma história que começa por conta da rivalidade e da teimosia de dois gênios que se recusam a ceder, o único final que poderia acontecer é o que recebemos: Ambos cederam, mas nenhum deles cedeu. O resultado da batalha só podia ser o maior “empate” possível nessa “Guerra do Amor“.

Ultra Romantic” encerra a história principal de “Kaguya-sama” com uma das cenas de declaração mais cinematicamente incríveis que eu já vi na minha vida, onde o beijo serve como o mais poderoso dos pontos finais. O casal resolveu suas pendências, admitiram seus crescimentos, e planejaram o futuro. Não há mais nada a se dizer ou fazer aqui.[/spoiler]

Você pode se perguntar sobre todo o resto, e essa é uma pergunta extremamente válida. Afinal, passamos um bom tempo desenvolvendo as personagens secundárias, dando destaque para suas histórias e relações, e… O final da terceira temporada não fecha nenhuma dessas pontas soltas.

Captura de tela do episódio 6 da segunda temporada de "Kaguya-sama: Love is War", mostrando Miko
Reação da Miko ao ver as pontas soltas é exatamente a mesma que eu tive ao ver que anunciaram uma continuação depois de um final perfeito (Reprodução: Crunchyroll)

Mas é aqui que eu trago de volta o que eu apresentei lá na introdução do texto: Às vezes, só é preciso de uma definição básica, que o resto vai ser preenchido por cada um, do jeito que a pessoa preferir. A arte de “Kaguya-sama” e seu elenco de apoio está em te dar apenas informações o suficiente para você conseguir ter plena noção de como as coisas vão prosseguir. É claro, nenhuma delas está, de fato, concluída, mas Aka Akasaka já fez o tracejado para você. Justamente por ficarem “em aberto”, a conclusão dessas histórias ganha um charme extra. O seu charme extra, da sua interpretação.

Sabe aqueles memes onde temos um jogo de “ligue os pontos” que claramente mostra uma coisa, e alguém consegue transformar aquilo em outra, completamente diferente, mas sem fugir das regras e das linhas propostas? É a mesma coisa.

Captura de tela do episódio 13 da terceira temporada de "Kaguya-sama: Love is War", mostrando um chaveiro de coração
Se você já assistiu, sabe exatamente que cena é essa. E esse é o melhor exemplo que posso dar. O pontilhado lhe foi dado, mas como VOCÊ vai preenchê-lo? (Reprodução: Crunchyroll)

Dessa forma, eu consideraria “Kaguya-sama” como uma história encerrada. Eu não acompanho o mangá, então não faço ideia de o que acontecerá a seguir, mas seja o que for, irei encarar como algo isolado e separado do que tivemos até aqui. A minha única certeza é de que certamente, Kaguya-sama se tornará um dos “clássicos”, um exemplo de anime que muito provavelmente vencerá o teste do tempo e ficará por muitos anos num pedestal, e com todo o mérito para estar lá.

Tenho meus problemas com a obra, mas não deixo de vê-la como é. E seria não apenas injusto, como criminoso de minha parte não dar nota máxima para ela: Kaguya-sama é 5,0/5,0 para mim, e acho que você deveria ao menos dar uma chance para a obra.

O animê está disponível na plataforma de streaming Crunchyroll, com três temporadas que totalizam 37 episódios. Há tanto opção de áudio original em japonês (e legendas em português), como opção dublada em português.

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“In The Land of Leadale” e os desafios da inocência

Animê é uma mídia com uma grande flexibilidade. Isso permite que você tenha produções de sucesso em qualquer tipo de gênero ou temática que você possa pensar, com grandiosas cenas de ação ou elaboradas coreografias. Mas, às vezes, tudo que você precisa é o mínimo necessário. E se o intuito da obra e do espectador se alinharem, as coisas funcionam.

Baseado numa light novel de mesmo nome, “In the Land of Leadale” é uma animação recém-concluída que se encaixa exatamente nessa descrição. Desde o início, o animê já te deixa claro o que esperar dele: Mais um exemplo do popular sub-gênero de isekai, onde o objetivo é buscar uma vida tranquila e aconchegante que não foi possível no mundo real. 

Segue abaixo a sinopse e o trailer da série, ambos fornecidos pela Crunchyroll:

“Após um terrível acidente, Keina Kagami fica presa ao sistema de suporte de vida, e sua única distração é Leadale, um VRMMORPG. Um dia, seu suporte de vida é desligado, e Keina falece… mas acorda encarnada dentro de Leadale, 200 anos no futuro. Ela agora é a meia-elfa Cayna, detentora de raras habilidades e atributos apelões. Embora não conheça nenhum dos habitantes desta nova era do mundo, dentre eles aparentemente estão três de seus ‘filhos’?! Uma aventura tranquila cheia de risadas e lágrimas!”

Como já comentado várias vezes, “isekais” já estão saturados, de forma que é preciso quebrar os moldes e tentar conquistar o público com alguma coisa fora do comum. O que “Leadale” faz para combater o “mais do mesmo” das histórias de reencarnação é inverter a situação etária da protagonista. Cayna é uma criança no corpo de uma adulta. Além de ser diferente do que costumamos ver (já perdi a conta de quantos adultos em corpos de criança eu já vi…), isso acaba sendo a principal ferramenta para o charme do animê: A inocência e inexperiência.

Quantos de nós já não passamos por uma situação parecida? Bem, claro que não estou falando sobre reencarnar num jogo online (embora, caso você tenha passado por isso, me conte sobre nos comentários), mas sobre repentinamente perceber que se é um adulto.

Existe uma certa faixa de idade onde a sociedade espera que você seja um adulto pleno e funcional, ciente de tudo que faz e capaz de lidar com todas as responsabilidades atreladas à sua posição social. E muitas pessoas passam por esse momento sem realmente estarem preparadas para isso. É uma situação de ainda se sentir um adolescente num corpo de adulto, e tendo que se virar para aprender a viver, ou fazer o melhor que pode para fingir que sabe o que está fazendo.

Captura de tela do episódio 12 de "In The Land of Leadale"
Cayna passa por várias ressacas devido a sua situação. Algumas são morais, já outras… um pouco mais literais. (Reprodução: Crunchyroll)

O animê nos mostra uma Cayna que sofre exatamente desse mesmo problema, mas com alguns agravantes, que fazem com que a situação dela seja bem mais intrigante e empolgante de acompanhar. Tendo passado praticamente a vida inteira no hospital, a garota possui pouco convívio social, uma das ferramentas mais úteis na hora de driblar a inexperiência. Para piorar (ou melhorar), a personagem dela existe como uma espécie de mentora, uma pessoa que, em teoria, deveria ser profundamente sábia. O contraste entre a persona experiente e as ações inocentes da Cayna são o que tornam as interações dela com o mundo tão divertidas, fazendo com que as melhores cenas do animê sejam momentos onde estamos apenas acompanhando uma conversa e nada mais acontece.

Ainda bem que momentos calmos e sem movimento são o ápice do show, aliás, pois a produção técnica não é lá essas coisas… Não querendo soar negativo, mas a animação, direção e sonoplastia de “Leadale” são um exercício de perseverança. Tudo parece estar no limite de desmoronar o tempo inteiro, como um baralho de cartas na frente de um ventilador.

Captura de tela do episódio 4 de "in the land of leadale"
Alguns odeiam as tais “cenas de exposição”, mas aqui? As cenas de exposição SÃO o conteúdo! (Reprodução: Crunchyroll)

O mesmo pode ser dito da história. “Leadale” possui um esqueleto de trama, e não se preocupa em tentar preenchê-lo com músculos ou tecidos. Apenas os ossos são necessários para servir de base para o mundo, e a “aventura” se torna a convivência diária e as peripécias que a inocência de Cayna causam ao seu redor.

Isso não é necessariamente um problema, é claro, se você estiver ciente de que a proposta da obra é te entreter com seus diálogos, e não com seus visuais ou roteiro. Mas entendo quem acabe dispensando por não aguentar uma produção desastrosa, ou se importar com a falta de objetivo do show. Faz parte.

Com suas óbvias falhas e concretos acertos, “In the Land of Leadale” acaba como um exemplo razoável de um isekai relaxante, onde é preciso de certa paciência para lidar com todo o resto. Para o redator que vos digita, 3/5 é uma nota mais do que justa para esse animê que não é a última bolacha do pacote, mas certamente não deve ser prontamente dispensado.

In the Land of Leadale” está disponível na plataforma de streaming Crunchyroll, completo em 12 episódios. Ele possui opções em japonês com legendas em português, assim como uma versão dublada, que ainda está sendo lançada.

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“The Aquatope on White Sand” e o pecado de amar demais

Procurando um animê para toda a família? Algo que poderia muito bem passar na Sessão da Tarde, irritar o seu tio, fazer sua mãe chorar, e seu primo que é redator de um blog de cultura nerd reclamar sobre escolhas de roteiro que ele entende que não são feitas para um público-alvo como ele? Pois “The Aquatope on White Sand” é possivelmente o show para você!

Captura de tela do episódio 18 de "The Aquatope on White Sand", mostrando Kukuru entregando bonecos para várias crianças
“Essa garotada vai se meter em altas confusões enquanto se aventuram no incrível mundo dos aquários!” (Reprodução: Crunchyroll)

Antes de começarmos, porém, vai ser necessário entender com quem estamos lidando. “Aquatope” é mais um animê original da P.A. Works, estúdio conhecido por criar lindos cenários e histórias que destacam o comum como mágico e a magia como corriqueira. A direção é de Toshiya Shinohara, que também fez coisa parecida em “IRODUKU: The World in Colors”, e “Nagi-Asu: A Lull in the Sea”.

Isso faz com que um novo animê vindo deles tenha uma certa expectativa, de seguir a “fórmula P.A. Works”: Uma trama adolescente que tica todas as caixas na lista de “coming-of-age” da Wikipédia; uma parte técnica linda e que vai agradar todos os nerds das respectivas áreas; e a garantia de um sucesso cult entre os que não gostam tanto assim de mecha dos anos 70. E “Aquatope” é exatamente isso, surpreendendo por o quão nos eixos ele conseguiu seguir semana após semana.

Abaixo, a sinopse e o trailer do show, que estreou em julho deste ano e terminou sua exibição recentemente, conforme fornecidos pela Crunchyroll:

“Em um pequeno aquário localizado na ilha de Okinawa, trabalha Kukuru Misakino, uma jovem de 18 anos. Lá ela encontra Fuka Miyazawa, uma ex-idol que perdeu seu emprego em Tóquio e está desnorteada. Elas começam a passar os dias juntas no aquário, conhecendo melhor uma a outra, mesmo com a iminente crise financeira ameaçando fechar o estabelecimento. Em meio aos sonhos e à realidade, à solidão e à amizade, aos laços e aos conflitos, as duas amigas vão virar uma nova e brilhante página neste verão.”

O contraste entre a primeira e a segunda parte da história é um dos pontos mais interessantes de se assistir pelo simples ato de compará-los. Começamos com uma adolescência mágica e inocente, onde tudo se resume a uma única coisa em um pequeno espaço. A jovem Kukuru é um retrato do próprio Aquário Gama Gama: enraizado a um alicerce instável, mas que sobrevive com base na boa vontade e no apoio de diversas mãos amigas. É um lugar intrinsecamente sobrenatural, que consegue mostrar a magia que só existe nos olhos de alguém naquela faixa etária.

Então, na segunda metade, a vida adulta mostra como o mundo é muito maior – e mais cruel – do que um conto-de-fadas teen. A magia se esvai conforme o chamado das responsabilidades se sobressai a qualquer oportunidade de sonhar. O Aquário Tingaara pode ser maior, mais tecnológico e possuir muito mais espécies, mas ele não passa de uma casca vazia para quem não entende a função daquele lugar, ou para quem o vê como um substituto de algo insubstituível.

O próprio conceito de histórias coming-of-age é mostrar que, na vida adulta, você precisa correr atrás de criar a sua própria magia. Buscar satisfação pessoal – seja com seu trabalho, hobbies, amizades ou amor – é a mensagem que o gênero tenta passar, e que “Aquatope” tentou contar de forma tão agridoce.

Captura de tela do episódio 1 de "The Aquatope on White Sand", mostrando Fuuka no oceano
Não tente prender a respiração durante as cenas aquáticas desse animê! Eles respiram com magia, você não! (Reprodução: Crunchyroll)

Um dos comentários que eu mais fiz (e que mais vi sendo feito por outras pessoas) durante a exibição do animê foi o realismo com que ele retratou os ambientes de trabalho. Em uma empresa pequena e familiar, foi mostrada a contratação de parentes e amigos, mesmo que sem experiência ou qualificação para o cargo; e uma hierarquia nada meritocrática onde a garota de 18 anos consegue se tornar chefe simplesmente por ser neta do dono. Já na empresa da “cidade grande”, o que vemos é uma relação nada saudável entre funcionários; uma equipe de marketing que não se importa nem um pouco com a equipe técnica e que simplesmente joga a bucha para eles e sai andando; estagiários desinteressados e que estão vendo o circo pegar fogo e simplesmente vão embora 17h em ponto… São pequenos toques de coisas que vemos no dia-a-dia que dá credibilidade para o slice of life do show.

Outro ponto desse realismo contextual é sobre como a história se foca nas suas protagonistas, mas sem deixar de mostrar que o mundo ao redor delas é orgânico e que coisas estão acontecendo mesmo longe de seus olhos. Ao longo de todo o animê, vemos situações sendo comentadas, ouvimos boatos sobre acontecimentos relevantes de personagens secundários, histórias que parecem ser extremamente interessantes, mas que nunca são contadas. Como acompanhamos a jornada da Kukuru e da Fuuka, o roteiro apenas explicita o que tem contato direto com o desenvolvimento das duas. Pode ser frustrante para quem tinha interesse nesses arcos que aconteceram fora da tela, mas é uma escolha proposital para destacar ainda mais que, na vida real, você apenas se importa com o seu pequeno círculo, e raramente se envolve em problemas alheios.

Captura de tela do episódio 18 de "The Aquatope on White Sand", mostrando Fuuka, com a legenda: "Acho que o mais incomum é gente como você, que escolhe trabalhar porque gosta."
O animê não só mostra como o trabalho funciona, como entende o principal ponto sobre trabalhar: Que ninguém gosta de trabalhar (Reprodução: Crunchyroll)

Agora, um problema que todos deveriam se envolver, é o tema que pairou sobre toda a história do animê: A conscientização ecológica e ambiental. Estamos assistindo um show sobre criaturas marinhas, com um roteiro que se baseia nos oceanos. É óbvio que teríamos ao menos uma mensagem sobre isso, né?

Se me perguntar, acho até que abordaram pouco o assunto! Ele foi bem suave, quase invisível, mas presente, durante 90% da duração do animê, e só decidiram deixá-lo mais descarado na parte final. Sei que sou suspeito ao falar isso, por ser ambientalista de formação, mas acho que informar e interessar as pessoas em questões ambientais deveria ser feito com maior frequência. Se botar garotas fictícias para sofrer semanalmente por seis meses é o que vai ajudar a fazer a nova geração se importar com o destino do planeta, que façam mais histórias tristes!

Captura de tela do episódio 22 de "The Aquatope on White Sand", mostrando uma tartaruga marinha e um amontoado de lixo, com a legenda "Mês passado, a maré trouxe uma tartaruga enrolada em cordas"
União sinistra P.A. Works e Projeto TAMAR (Reprodução: Crunchyroll)

Sei que acabei de falar no parágrafo anterior sobre como as garotas sofrem e como a história é triste… Mas a verdade é que “Aquatope”, em sua essência, não é uma tragédia. O que nós temos é uma série de pequenos problemas, uma morte por mil cortes. Claro que alguns cortes são maiores e mais profundos que outros, mas todos eles acontecem não pela existência de um vilão, uma figura malvada ou um desastre inimaginável. Eles acontecem pelo excesso de amor das personagens, e é aí que a piada do título se torna real. O único erro das protagonistas é amar demais, se apegar demais, ter empatia demais.

Cada drama, na verdade, não passa de uma simples dificuldade corriqueira. Para alguém que não se importa, seria uma mera inconveniência. Mas, para quem é apaixonado por aquilo, a coisa se torna uma questão de vida ou morte. Vemos diversos tipos de dificuldades se tornando trabalhos hercúleos por motivos diferentes, mas todos relacionados ao amor: A dificuldade de espalhar o seu amor para outros; a dificuldade de se recuperar de um amor perdido; a dificuldade em encontrar seu amor… O show faz um excelente trabalho de mostrar cada personagem sofrendo por um motivo diferente, te permitindo entender o quanto cada um ama o que está perdendo (ou lutando por).

Captura de tela do episódio 23, mostrando Kukuru cercada por três pinguins
Acho que “lutar pelos pinguins fofinhos ownn cuticuti” é o drama mais fácil de se identificar que o show oferece (Reprodução: Crunchyroll)

A mensagem final que o animê deixa é que a vida continua, você olhando para ela ou não. O que assistimos nos vinte e quatro episódios é apenas um pedaço da vida das personagens: Elas viveram coisas antes, muita coisa que não vimos aconteceu no durante, e elas continuarão vivendo depois. A história de “Aquatopetem um começo, um ponto onde as coisas mudam drasticamente… Mas ela não tem um fim. Encerramos um capítulo e uma nova página se abre, mas essa ainda está em branco. E fica claro que cada uma das personagens tem em mãos a tinta para escrever o seu próprio futuro.

The Aquatope on White Sand” é perfeito para quem gosta de recortes de uma vida incomum e mágica, mas racional e realista, e quer ver o crescimento de uma garota cujo único pecado foi amar demais. Divertido e complexo, engraçado e trágico, com contrastes na medida certa e pontos o suficiente em aberto para te deixar curioso ou irritado, depende do seu ponto de vista. Como um todo, a nota do redator é 4,0/5,0 e mais um adendo de que eu me esforcei para não colocar uma comparação entre o animê e um pagode no final do churrasco, pois ambos são bem parecidos.

Você pode assistir “The Aquatope on White Sand” na plataforma de streaming Crunchyroll, onde o animê está completo com 24 episódios e possui legendas em português.