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Torre Entrevista | Paul Kirchner

Existem artistas que focam em apenas uma forma de exprimir sua arte; outros, preferem experimentar vários mercados. Por isso, acabam tendo uma carreira de certa forma peculiar no mundo das Histórias em Quadrinhos. Um deles é Paul Kirchner que, em sua recente passagem pelo Brasil, veio principalmente divulgar Ônibus, seu mais recente trabalho editado no mercado nacional, pela Risco Editora. Em entrevista exclusiva à Torre de Vigilância, conversamos não só a respeito de Ônibus, mas também uma retrospectiva de sua carreira em mais diversas formas de arte e planos para o futuro. Confira!

 

Ônibus é uma obra surreal sobre um veículo que, no cotidiano, transporta diferentes histórias pessoais dentro dele. De onde veio a ideia de tornar cenário de uma História em Quadrinhos um componente do nosso dia-a-dia?

Bem, o que acho que faz o surrealismo funcionar é colocar como palco algo que as pessoas podem facilmente identificar e fazer algo bem incomum com isso. Por isso, quando inicialmente alguém vê a premissa de uma HQ que mostra um cidadão comum pegando um ônibus, muitos podem pensar que algo entediante e previsível vem aí. A possibilidade de mexer com a normalidade da cena acaba sendo o mecanismo principal.

Ônibus, de Paul Kirchner. IMAGEM: Riscoeditora.com

Surrealismo sempre esteve entre os temas abordados da revista Heavy Metal, como em A Mão Verde, de Nicole Claveloux e Édith Zha. Como você vê o surrealismo especificamente nos quadrinhos? Em filmes, quadros e etc. é muito comum tirar várias interpretações deste movimento artístico, você pensa da mesma forma?

Também, mas o que gosto em adição ao surrealismo é sobre colocar mais uma camada de entendimento no campo psicológico que vai além da interpretação literal. Fazendo da forma surrealista, a mesma interpretação pode tornar-se mais atraente. Por exemplo: em uma das primeiras histórias que fiz de Dope Rider o personagem entra em um saloon e é confrontado por cowboys durões, mas o protagonista é basicamente um esqueleto e os antagonistas são lagartos do deserto. Se eu fizesse a história com humanos, em qualquer faroeste poderia ser encontrado um produto similar, mas eu quis brincar com todas as possibilidades. Especialmente neste meu período na revista High Times fazendo Dope Rider as histórias com frequência tinham temáticas que à priori pareciam ser simples no mundo do faroeste, como ser um forasteiro num lugar novo, se envolver em um problema enfrentado pelos habitantes da região e quererem te enforcar… assim é fácil. Mas quando se adicionam outros elementos, embora não autoexplicativos, faz com que o leitor pense mais a respeito do que está lendo. Apesar disso, muitas pessoas não entendem bem o que se é transmitido. Tenho um amigo que não tem muita imaginação e me diz: “Poxa, estas histórias não fazem sentido algum!” e eu respondo: “Você não faz ideia de quanto eu trabalho para dar vida à essas HQs. Se eu quisesse que o entendimento fosse instantâneo seria muito mais fácil para eu desenhá-las!” mas há muito esforço depositado.

Dope Rider, de Paul Kirchner. IMAGE: Lesea.fr

Além de quadrinista você já fez ilustração publicitária, design de bonecos… você não tem uma “arte dominante”. Como realizar vários tipos de arte influenciam você em outras mídias? Por exemplo: como fazer design te traz ideias para os quadrinhos?

Na verdade, é mais uma sequência de eventos do que tudo ao mesmo tempo. Quando comecei nos quadrinhos e conhecia um executivo de uma fabricante de brinquedos que me perguntou se eu gostaria de trabalhar na área. Na época, eu tinha prazos muito apertados para fazer meus quadrinhos e ainda por cima não estava sendo bem recompensado financeiramente, o que me fez procrastinar. Quando fui para o design, recebi novas atribuições que me ajudaram a otimizar o meu trabalho e desenvolver minha criatividade. Não era como, por exemplo, trabalhar em um banco. Nos brinquedos, queriam ouvir as minhas ideias e queriam que eu colocasse em prática a minha criatividade. Da indústria de brinquedos, fui para a publicidade porque queriam alguém que tivesse a capacidade de ilustrar campanhas, e aí que eu entrei: fazendo storyboards, o que considero bem parecido com fazer tirinhas de quadrinhos. Portanto, em determinados momentos todas essas mídias têm algo em comum. Mas também há diferenças: na publicidade eu tinha um trabalho fixo, não freelance como nas HQs. Mas as coisas mudaram na publicidade e decidi voltar a fazer mais quadrinhos.

Curiosamente, a próxima questão é justamente sobre isso: do meio dos anos 90 até por volta de 2010 você teve um grande hiato nos quadrinhos. O motivo foi justamente esse?

As coisas na publicidade se alteraram com o tempo e quando parei de ter um trabalho fixo na área comecei a desenvolver depressão. Além disso, na época em que eu fazia storyboards para publicidade, eu não tinha a mesma disposição para ao mesmo tempo desenhar HQs. Então, nessa época preferi escrever livros. Entretanto, na última década preferi voltar aos quadrinhos, fazendo HQs mais longas e tirinhas, como uma nova chamada Hieronymus & Bosch além de voltar com Dope Rider e contribuir novamente com a High Times. Não há como dirigir 100% nossas vidas. Às vezes as coisas acontecem; já outras vezes, não.

Neal Adams, por exemplo, foi um artista mais voltado ao mainstream, tanto em sua forma de contar histórias quanto de desenhar. Mesmo iniciando sua carreira junto a ele e Wally Wood, por que resolveu seguir um caminho diferente, uma vez que as suas HQs são de um gênero mais alternativo?

Eu não gosto tanto de super-heróis, é um universo que não me atrai com a mesma força que outros segmentos. Outro elemento é que eu sempre gostei de desenhar páginas em formato maior, no mínimo o dobro do tamanho o qual o material é escolhido para ser impresso, e nos quadrinhos estadunidenses quase sempre temos que desenhar a arte em A3, que é somente 50% maior que a versão impressa. Me sinto muito engessado desenhando dessa forma e isso acaba não me fazendo sentir confortável para extrair o melhor que posso da história. Então, esses foram alguns dos motivos.

Exemplo de arte original de Paul Kirchner, em formato A2 (42 x 58 cm). IMAGEM: zicbul.fr

Pelo seguimento mais padronizado mesmo? Mais algo a acrescentar?

Também há, por exemplo, artistas incríveis como Alex Toth em que várias histórias, apesar da arte deslumbrante, possuem narrativas mais insípidas, com narrativas que são mais do mesmo. Para mim, é uma pena ver casos de artistas como ele cujo conteúdo do roteiro de determinadas histórias não condiz com a qualidade de sua arte. Então, sempre preferi evitar isso e fazer minhas histórias por conta própria. Além disso, na grande indústria de quadrinhos, muitas vezes o personagem acaba pertencendo à editora, não importa o quanto você se dedicou a cria-lo. Por esses fatores, preferi ser o meu próprio patrão.

Fico feliz que anteriormente você tenha citado sua criação mais recente, Hieronymus & Bosch, pois é o tema da nossa última pergunta: é uma tira de página inteira cujo título é baseado no pintor homônimo, certo?

Sim. Há muitos anos sou fascinado pela arte de Hieronymus Bosch, minha favorita é O Jardim das Delícias Terrenas, uma pintura de grande paisagem dividida em três partes. Mais precisamente, a parte que mais gosto é a terceira, que retrata o inferno…

O Jardim das Delícias Terrenas, de Hieronymus Bosch. IMAGEM: Wikipedia.org

 

Conhece a banda Fleet Foxes? O primeiro álbum é justamente uma ilustração de Bosch!

Sim! Realmente muita gente se inspira nas pinturas dele. Ao criar Hieronymus & Bosch pensei em criar algo ambientado justamente naquele mundo. Começou de forma despretensiosa, porque percebi que era melhor eu fazer as coisas do meu jeito, usando minhas próprias fantasias. Por isso, o que eu trouxe de mais forte foi o nome dos personagens, que consistem em Hieronymus, um condenado à passar a eternidade nas profundezas do inferno, e Bosch, um pato de madeira que ele carrega a onde quer que vá. O período em que considerei apropriado em ambientar a história seria no Século XVI. Curiosamente, eu pesquisei o tipo de roupas que as pessoas usavam nesta época, mas muitas pinturas que retratavam o inferno no mesmo período as pessoas sempre apareciam nuas [risos]! Então pensei “Não, não funcionaria fazer uma tira tão miserável assim…” ainda mais porque a ideia que temos de inferno hoje em dia é bem diferente do período medieval. Naquela época, qualquer pisada fora da linha era sinônimo de sofrer por toda a eternidade, o que acho que não funcionaria em uma tirinha mais humorística. O Inferno que criei é mais baseado em frustração, irritação e humilhação, experiências que podemos viver em nosso cotidiano.

Curiosamente, o próprio pintor Hieronymus Bosch foi uma grande influência para expoentes da arte surrealista, como Max Ernst e Salvador Dalí! É só uma coincidência ou tem alguma relação com o seu próprio surrealismo?

Eu gosto muito do [René] Magritte e [Salvador] Dalí. Também fui influenciado por M. C. Escher. Adoro suas formas de perspectiva além de suas indiscutíveis qualidades referente à técnica. De Dalí eu me influencio mais pela admiração da arte, uma vez que o conteúdo das suas pinturas é mais levado ao campo dos sonhos, um tanto diferente dos meus.

Para finalizar, Hieronymus & Bosch possui um estilo de arte mais clássico, diferente dos seus trabalhos anteriores. Esse é o novo estilo que pretende trilhar ou no futuro pode adotar ou até retornar a um estilo diferente?

Me interesso em produzir histórias que o público pode acompanhar. Quando comecei essa tirinha foi muito estranho pois eu não tinha a mínima ideia de qual seria o público-alvo, quem gostaria de ler ou pagar para ter o material. Mas depois que eu já tinha uma quantidade expressiva de tiras eu fui contatado pelo site do Adult Swim, que tem um espaço destinado a quadrinhos. Com isso, passei a publicar as tiras por lá e fui muto bem remunerado. Ironicamente, isso foi uma “bênção” para uma tirinha ambientada no inferno. Mas agora voltei a fazer novas histórias para a High Times do já citado Dope Rider, o mesmo personagem que criei nos anos 70. Portanto, acho que não volto mais a fazer tirinhas de Hieronymus & Bosch, acho que já fiz tudo o que queria fazer com eles.

Mas o futuro do seu traço continua em aberto?

Creio que é necessário de certa forma disciplinar o seu subconsciente em um determinado caminho que é propício a te dar ideias. O que estou produzindo agora é o que tenho a possibilidade de obter novos planos. Na época em que dei  fim a Hieronymus & Bosch eu nunca mais tive ideias que se encaixavam nessa tira porque pensei “Ok, é um ponto final”. Já agora, voltei para Dope Rider e toda vez que deito em minha cama penso “Qual é o próximo passo para Dope Rider? O que ele pode fazer?” e daí florescem novas ideias. Eu não sei exatamente como essa coisa [de brotar novas ideias] funciona, mas ao menos sigo algumas dicas que funcionam [risos].


Fiquem ligados para mais matérias, artigos e entrevistas aqui mesmo na Torre de Vigilância! Até a próxima!

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Quase nada é o que parece ser em A Mão Verde

Com o que você sonhou hoje? Muitos precisarão de um bom tempo para responder a essa pergunta e mesmo assim terão dificuldades. A conclusão para tal questionamento em alguns casos pode até ser clara, mas a maioria dos relatos é imprecisa, nebulosa ou até impossível de se recordar. Sonhos podem significar muito ou serem apenas uma forma de nossas mentes experimentarem o que ainda não provamos na realidade, e muitas vezes sequer chegaremos a vivenciar.

A Mão Verde, lançamento da Comix Zone, bebe justamente nessa água: de navegar por correntes sinuosas em que não se sabe ao certo até onde vão chegar. Durante o período de maior experimentalismo psicodélico da História da humanidade, Édith Zha e Nicole Claveloux entregam diversas narrativas curtas, despretensiosas e de arte espetacular. Embora nenhum capítulo ultrapasse 10 páginas, sua técnica de desenho que mistura tinta guache e aerógrafo demonstram uma inovação para a época que a coloca em um patamar revolucionário de obras como Saga de Xam e Kris Kool.

IMAGEM: Amazon.com.br

Porém, mesmo com o seu primoroso traço e maestria no uso de cores, que conquista a atenção de todos os que encaram suas páginas, tal nova possibilidade de contar histórias mostra em seu cerne ainda uma inconsistência relativa ao conteúdo expresso. No primeiro capítulo, exatamente o que dá título ao livro, temos uma conversa de apartamento entre uma mulher e uma ave a respeito de um vegetal capaz de se comunicar com ambos; Em A Noite Branca, a mesma protagonista visita o museu em que aparentemente trabalha e conversa com vários dos itens expostos por lá; Já no tomo O Medo Azul, a ave residente do apartamento, cansada de sua vida encastelada, busca liberdade ao sair da moradia que funciona como uma espécie de gaiola para o personagem, mas seus planos não são bem-sucedidos e ele volta ao seu endereço habitual.

IMAGEM: Comix Zone

Grande parte das histórias, principalmente as cinco primeiras –publicadas na revista Metal Hurlant no decorrer do ano de 1978– são praticamente ininteligíveis, justamente nos capítulos em que a parceria entre Edith Zha e Nicole Claveloux está presente. O resultado, como o próprio prefácio da edição, assinado por Jean-Louis Gauthey afirma, entrega “páginas suntuosas de narrativa desconcertantes [sic]”. Assim, denota-se que não há o que ser compreendido em sua essência, e sim somente apreciar um conjunto de ideias expostas. Apesar disso, tais capítulos se completam em única narrativa.

As seis últimas, criadas apenas por Claveloux e publicadas originalmente no periódico Ah! Nana são a priori mais palatáveis, muito pela maioria destas serem baseadas em contos famosos, mas o expressivo surrealismo ainda está presente e torna histórias como Pranca de Nefe e A Imbecil e O Príncipe Encantado experiências diferentes até para os que já conhecem tais fábulas desde antes de aprenderem a ler.

IMAGEM: Comix Zone

Tamanha petulância é proposital por parte das autoras? Provavelmente nunca saberemos, uma vez que, assim como em nossos sonhos, nem tudo é feito para ter uma explicação precisa. Por exemplo, há quem até hoje tente entender alguma ideia central que conecte todo o conteúdo de Um Cão Andaluz, curta-metragem de Luis Buñuel e Salvador Dalí, quando, na verdade, os próprios autores em vida afirmaram que a película consiste apenas de ideias soltas e desconexas. Apesar dos pesares, a confusão encontrada em A Mão Verde acaba não comprometendo o prazer de apreciar a história, desde que não se espere grandes explicações no decorrer das páginas e assim cada leitor pode chegar a uma conclusão diferente do que foi lido.

A edição da Comix Zone, baseada claramente na versão publicada em 2019 pela editora Cornélius, segue o padrão da maioria dos títulos já lançados pela editora, com formato álbum 21×28,5 cm em capa dura, lombada e com um bookplate não autografado como brinde. Além disso, temos o já citado prefácio composto por nove páginas introdutórias com texto e ilustrações que cumprem de forma necessária sua função de apresentar ao público a biografia de duas autoras as quais, mesmo com suas inovações narrativas, ainda eram nomes inéditos no mercado brasileiro. A parceria entre as autoras ainda se repete em Morte Saison (Fora de Época, em tradução livre) que, assim como A Mão Verde, contém histórias curtas e foi relançado na França em 2020 também pela Cornélius.

A Mão Verde não é uma antologia de fácil leitura e não se deve esperar uma compreensão direta de seu conteúdo. A obra como um todo serve melhor como uma coletânea de ideias e possibilidades de se expressar, e por isso é aconselhável que sua leitura deva ser feita da forma mais despretensiosa possível, com o mesmo intuito que tentamos interpretar até mesmo nossos devaneios mais próximos da narcolepsia, por mais absurdos que pareçam ser.

A Mão Verde e Outras Histórias
Édith Zhan (roteiro)
Nicole Claveloux (arte)
Fernando Paz (tradução)
Audaci Junior (revisão)
Comix Zone
Capa dura
96 páginas
21×28,5 cm
R$89,90
Data de publicação: 03/2022

 

 

 

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Resenha | Isto Não é Um Assassino

Já habitual referência nas histórias em quadrinhos europeias, René Magritte aterrissou nos quadrinhos brasileiros de forma surpreendente. O pintor surrealista já havia sido retratado recentemente por aqui em Óleo Sobre Tela, lançado em outubro de 2018 por Aline Zouvi e agora, pela Sesi-SP Editora, revela o então desconhecido Hugo Aguiar e um lado antes oculto de Gustavo Machado.

O barulho de um raio pode causar medo; Uma imagem pode causar medo; O pensamento no desconhecido pode causar medo. E bem aqui está a estratégia traçada pela história: A ausência total de texto, inclusive de onomatopeias. Palavras surgem apenas em uma conversa inicial e interlúdios.

O protagonista é justamente Magritte e seus conturbados pensamentos são a obra do horror nessa HQ. Seus quadros voltam contra si e sua vida e não há como escapar de seu cachimbo que não é cachimbo ao seu reflexo no espelho em outra perspectiva. A quantidade de referências é absurda e várias delas são inclusive difíceis de reconhecer logo de cara para quem não acompanha arte. Não que seja um problema, pois todas são explicadas ao fim da edição.

Já veterano, Machado se tornou conhecido no meio como ilustrador dos Quadrinhos Disney, Trapalhões e Turma do Arrepio, esta última um dos poucos registros populares em suas obras relacionadas ao terror, mesmo que para o público infanto-juvenil. Aqui, sua arte surpreende e muito. Seu traço é tão diferente nesta HQ que facilmente sua identidade poderia se passar por um heterônimo. É uma grata surpresa aos que se acostumaram ao seu traço mais alegre.

Surrealismo não é feito para entender, mas para sentir. De Magritte à Glauber Rocha, tentar explicar o inexplicável se torna uma armadilha. Cada um tira sua conclusão das obras dessa escola ao fim das contas.

A história é curta. Aconselhada para leituras rápidas, mas que renderá pesquisas muito maiores a quem se interessar pela obra do pintor à partir de então.

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RESENHA | Black Dog – Os Sonhos de Paul Nash

Sonhamos e não recordamos. Esquecemos o que se passa no único momento que somos livres e ainda assim não temos nosso controle. Sonhos são materiais de estudos, nos intrigam e fazem buscar significado para algo que talvez não tenha mais nada a ser dito.

Dave Mckean já é conhecido por outros momentos que emergiu no R.E.M em suas conhecidas e consagradas colaborações com Neil Gaiman em Sandman, Mr Punch e Sinal e Ruído ou com Grant Morrison em Batman: Asilo Arkham. Aqui Dave está solo mas não necessariamente sozinho: Paul Nash é seu guia nessa nova caminhada dentro de sonhos. Nash foi pintor, fotógrafo e designer. Mckean não tem (e nunca teve) uma arte dominante e em Black Dog – Os Sonhos de Paul Nash alterna entre pinturas, fotografias, esculturas, narrativas gráficas… ambos têm muito em comum. O segundo acaba sendo o co-autor do primeiro.

Os capítulos dessa obra lançada no Brasil pela editora Darkside são de sonhos e análises destes à passagens da vida de Paul Nash, não seguindo necessariamente uma ordem cronológica. São 15 capítulos que mesclam de várias formas o resultado de sua experiência de vida desde seus primeiros anos até durante e depois da Primeira Guerra Mundial, onde se alistou como cabo e produziu suas obras mais icônicas, assim se tornando um artista oficial da Primeira Guerra Mundial pelo Reino Unido. Nash, mesmo sabendo dos riscos, agarrava as chances que tinha de visitar e até retornar a trincheiras e lugares devastados pela estupidez humana.

Mckean marca o papel como um psicólogo de Nash, um interlocutor que tenta interpretar suas visões, assim como o cão negro que o acompanha a cada vez que se aprofunda na desgraça e destruição. A arte de Mckean não deixa de se inspirar nas pinturas do correspondente artístico, várias vezes vemos cenários muito próximos aos que Nash produziu.

The Menin Road, de Paul Nash [1919]

Quando sonhamos é comum sentirmos algo que só está dentro de nossa mente. Podemos sentir dor, euforia, tristeza e outras reações que na verdade são “fictícias”. Essa mistura de artes em Black Dog expressa mesmo que de forma nebulosa o que acontece quando sonhamos. As páginas são repletas de paisagens intermináveis, imagens que não mostram até onde podemos chegar com sua contemplação. O passado do combatente aparece em remiscências de sua infância com seus pais (que mostra a origem do cão negro de seus sonhos), professores (que o calejaram para o que viria à seguir) e artistas que o influenciaram a ser o que se tornou. O capítulo 12, o mais interessante da publicação, narra a transformação do artista ao se deparar com a guerra, mostrando seu gradual fascínio pelo grotesco ao se aprofundar na trincheiras e convertendo o seu horror em filosofia.

A edição brasileira é primorosa. Seu formato que abriga 120 páginas em capa dura com 30 x 23 cm tem uma capa mais limpa que dá destaque ao título em alto relevo mais abaixo da ilustração da própria, diferente das edições francesa e norte-americana. Seu acabamento é superior inclusive à versão lançada pela Dark Horse Comics, que teve capa dura somente em uma edição limitada a 400 cópias e a edição regular em versão cartonada.

Cada um interpreta sonhos como melhor se extrai daquele momento. Há astrólogos especializados em interpretar estes, mas aqui o leitor tem a chance de dar sua própria cartada, de cada um dizer o que absorveu de cada capítulo e sonho (ou delírio?) expresso nessa obra. Assim, o resultado pode variar para cada observador e não necessariamente há uma conclusão certa ou errada. Então não tenha medo: Seja também um intérprete de Nash e Mckean.