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Violência Gratuita (1997): Escolhas perversas e conscientes

A obra cinematográfica existe por inúmeras influências. Sua existência e qualidade dependem da equipe criativa e técnica envolvida, da construção de seu argumento ao corte final na pós-produção. Esse desenvolvimento, que costuma levar muitos meses para ser concluído, precisa ser minucioso para construir um filme que seja reconhecido por seus espectadores. Contudo, a partir do momento em que há o lançamento em cinemas ou serviços de streaming, a obra é, necessariamente, apenas daqueles que a fizeram? Ou o seu público também exerce uma função fundamental na construção dessa história?

Difícil relacionar a qualidade de um filme a seus espectadores. Obviamente que a responsabilidade de se criar um bom conteúdo e, consequentemente, apresentar uma história, está nas mãos de seus idealizadores. Isto posto, quando chega na época de sua exibição, o filme passa por olhares distintos em públicos diferentes entre si. A crítica, as análises e as discussões assumem um papel de valor ímpar para com a concepção da obra no mercado cinematográfico. Quando a obra é exibida, ela se torna de todos, inteiramente influenciada pelos universos individuais, e pode acabar sendo reconhecida, ou depreciada, em poucos dias.

Violência Gratuita retrata o sequestro de uma família em uma região afastada, mas elitizada, da Áustria. Dois garotos vestidos de branco começam a torturar de maneira física e psicológica os familiares constituídos por um pai, uma mãe e seu filho, ainda criança – não podendo se esquecer do cachorro. Se o filme começa com uma trilha sonora clássica, se remetendo e construindo um clima serene e leve, a aparição do título do filme e a troca da música tranquila para outra absolutamente caótica e perturbadora transmite violência. E essa brincadeira com as trilhas remete a construção inteira da história, que aborda uma mistura sensorial inquietante.

Os agressores apresentam postura firme e segura, mas também de extrema educação e tranquilidade. Suas performances não condizem com o nível praticado por suas ações, já que, enquanto há cenas que explicitam a violência, a naturalidade de ambos só reflete a perversidade de seus psicológicos. Suas vestimentas, completamente brancas, se mostram uma escolha acertada do figurino, porque a cor de forma alguma reflete as intenções de seus personagens.

Enquanto a obra vai se desenrolando, e a trama ganha mais consistência, muito mais por sua ambientação, que oprime seus personagens em momentos de abuso e pressão psicológica, do que pelo roteiro, há um sentimento de incômodo crescente para com a situação. De forma alguma o roteiro é ruim ou medíocre, mas as intenções do filme dependem muito mais da forma como Michael Haneke desenvolve a narrativa e articula a fotografia. Exemplos disso: a insistência de manter quase o filme todo em um só cenário; a iluminação do cômodo que reflete certa melancolia; e o excesso de branco na constituição das cenas. O título brasileiro é muito preciso, a violência realmente é gratuita, e chegamos em determinada parte nos perguntando: qual a razão disso? Assistir a uma família sendo torturada? E a resposta é direta e aterradora: SIM.

Há a quebra da quarta parede em momentos pontuais do filme, onde o principal torturador conversa com a audiência, ou simplesmente dá um olhar – chega na alma -, mais significativo do que qualquer palavra proferida. Nessas passagens, entendemos que constituímos parte fundamental da narrativa da história. Não somos simples espectadores, somos cúmplices das escolhas criativas dos idealizadores.

Voltando ao começo do texto, o papel do público está totalmente ligado à obra. E Violência Gratuita representa essa ligação, mesmo que seja apenas uma expressão inconsciente. Nós precisamos ver o desfecho do filme, temos a necessidade de descobrir as conclusões reais da história, seja a morte inteira da família, ou sua salvação. Enquanto o desfecho não chega, ficamos atentos nas mais inescrupulosas ações dos agressores, e certas posturas do espectador podem traduzir valores morais e éticos.

Atualmente, vimos essa discussão ressurgir com a exibição de Coringa (2019), onde muitos alertaram sobre as posturas variadas do público para com as atitudes do personagem. Risadas com as cenas do anão tentando abrir a porta após um assassinato visceral cometido por Arthur, aplausos ao final enquanto o personagem anda pelo corredor com pegadas de sangue, provando sua inescrupulosa atitude etc. Nesse sentido, você não é culpado de ter algumas emoções contraditórias durante o filme, e, às vezes, o diretor está querendo que você as sinta. Porque o melhor do cinema é você se redescobrir e discutir seus próprios valores, olhando de forma ampla e abrangente como se dá o seu relacionamento com a sociedade contemporânea. Embora alguns confundam entretenimento com vazio intelectual e cultural, este produto entrega panoramas que evidenciam questões éticas e morais pertinentes.

Violência Gratuita, portanto, é uma experiência brutal e rígida, mas de importância incontestável. No cinema, estamos em um jogo onde aceitamos as condições impostas por roteiristas, diretores e artistas em geral, nos sentindo reféns das escolhas artísticas e de como elas reverberam na sociedade. A obra de Haneke não é só sobre liberdade criativa, mas como o público precisa assumir uma postura crítica para com o que está assistindo, amadurecendo o olhar e estabelecendo relações com sua própria realidade, julgando-a constantemente.

Por Thiago Pinto

‘’E quando acabar de ler a matéria, terá minha permissão para sair’’

-Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012)